As origens da Corticeira Amorim estão nos anos 70 do século XIX, na associação entre as famílias Amorim e Belchior, fabricantes de rolhas para vinho do Porto. Em 1890, a sociedade desfaz-se. Durante quase um século, os clientes das rolhas Amorim são os ingleses que dominam aquela produção vinícola.
A empresa familiar viveu altos e baixos, do grande incêndio em 1944, quando contava já mais de trezentos operários, até aos anos 1950, quando a guerra da Coreia fez quadruplicar o valor dos stocks. Em 1963, a Corticeira verticaliza a produção, aproveitando as sobras para o fabrico de granulados e aglomerados. Os irmãos Américo, José, António e Joaquim juntam-se ao tio, Henrique Amorim, que não tem descendentes. A empresa instala-se na quinta de Mozelos, comprada à família Van Zeller.
Durante dez anos, a empresa produz aglomerados sem alvará do governo mas também sem contratempos desagradáveis. Henrique Amorim tem o amparo de dois importantes caciques da ditadura na região: Veiga de Macedo, também natural da Vila da Feira e ministro das Corporações e da Previdência (1955-1961), e Albino dos Reis, o «dono» de Oliveira de Azeméis, presidente da Assembleia Nacional entre 1945 e 1961 e presidente do Supremo Tribunal Administrativo durante vinte anos.
Negócios a Leste, antes e depois do 25 de abril
Em 1948, entra no quotidiano dos Amorim uma criança refugiada austríaca, Gerhard Schiesser, trazida para Portugal pela Cáritas e acolhida pela família, ficando depois em Mozelos até 1967. Nessa altura, Américo Amorim, que já dirige a internacionalização da empresa, devolve o jovem Schiesser a Viena, onde instala um escritório discreto sob o nome do empregado. Neste entreposto, a cortiça não é rotulada «made in Portugal»: a exportação para países banidos – Egito, Índia, China e todo o “bloco de leste” - conta com o fechar de olhos do governo. Amorim vai estendendo a sua ponte para o outro lado da guerra fria.
Em 1975, Américo Amorim passa pelos mesmos apuros de muitos outros proprietários rurais e é expropriado em três mil hectares de montado. Mas essa circunstância não bloqueia a sua acumulação: «Mesmo quando tive as herdades ocupadas, mantive sempre boas relações com as UCP. Emprestava-lhes os meus tratores e tudo. Ia lá falar com eles. Sempre os visitei, sempre os convidei a vir cá acima ver as minhas fábricas», declara Amorim em entrevista a Maria Filomena Mónica (“Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa”, 1990). Segundo um ex-governante da época do PREC, citado pelo Expresso (31.12.1988), para Amorim, «o negócio da cortiça só se manteve devido a “arranjos” que incluíam o transporte da matéria-prima, durante a noite, para escapar aos fiscais do Estado, em conivência com as UCP e o PCP local». Amorim não renega a sua política dos anos quentes da reforma agrária: «Ao longo do tempo, mantive-me sempre em contacto com os alentejanos e com as UCP. Não tenho qualquer problema em falar e jantar com os comunistas. Podemos mesmo ir a boîtes juntos, não me faz qualquer impressão» (entrevista a MFM).
Passado o 25 de Novembro, regressa à compra de herdades e faz negócios chorudos com grandes proprietários que, com a reforma agrária ainda presente, estão dispostos a vender barato. Amorim assume que, contra o ciclo vivido na época pelo capital português, o seu grupo deu «um grande salto, muito significativo mesmo, de 1976 para 1980».
Ao longo de todo este tempo, a URSS e o leste europeu nunca deixaram de constituir um mercado estratégico para a família. Américo Amorim afirma que apoiou a instalação em Portugal dos primeiros diplomatas do Bloco de Leste a chegar a Portugal depois do 25 de Abril. A Hungria é onde a cooperação vai mais longe, com a abertura, em 1984, da Hungarocork, em sociedade com duas empresas estatais. Uma opção que Américo Amorim explica pela necessidade de assegurar «uma participação mais activa nos planos quinquenais [da Hungria], de modo a influenciar a manutenção dos consumos de cortiça» (Filipe Fernandes, “Empresários do Século XX”, 2003).
Da cortiça para os grandes negócios
O salto de Amorim até ao lugar de homem mais rico de Portugal faz-se pela mão do Estado, na vaga privatizadora e no acesso a fundos europeus. Foi assim que, além de dono da única multinacional portuguesa líder mundial no seu setor, com 35% da cortiça mundial e trinta fábricas em mais de 100 países, Amorim torna-se banqueiro, patrão da Galp, um dos maiores senhorios de Lisboa e dos mais poderosos investidores em grandes superfícies comerciais. Tem dezenas de hotéis em Portugal, Cuba ou Moçambique. Alia-se à Sonae no empreendimento de Tróia. Possui um casino e tem interesses noutros, com a Estoril-Sol de Stanley Ho.
Em 1991, no início da privatização do Jornal de Notícias, Américo Amorim organiza uma “cooperativa de editores” para controlar as ações reservadas a profissionais da comunicação social. Cavaco comenta o assunto e diz que não acredita que Amorim se envolva num negócio tão pequeno nas vésperas da privatização da Petrogal. O primeiro-ministro tinha escolhido outro dono para o DN e o JN, o coronel Luís Silva, genro do banqueiro João Bordalo, co-fundador do BPA nos anos 1940 (Expresso, 2.2.2013). O facto é que, em 1992, Amorim estava entre os vencedores da primeira fase de privatização da Petrogal. No consórcio Petrocontrol perfila-se grande parte da burguesia que se relança nas privatizações: da mais velha - Espírito Santo, Mello, Champalimaud - à mais recente - Amorim, Monteiro de Barros, Belmiro de Azevedo. No final da década de 90, a Petrocontrol vende os seus 25% da Galp à ENI, a petrolífera estatal italiana. As mais-valias da venda, mais de 500 milhões de euros, são isentas de impostos por um favor especial do ministro Pina Moura, do PS.
A fortuna de Amorim também fermenta sob o efeito da “coesão” europeia. O empresário chega a sentar-se no banco dos réus, acusado de falsificação de documentos, fraude e desvio de dinheiro do Fundo Social Europeu entre 1985 e 1988. Década e meia mais tarde, a Comissão Europeia ainda exigia uma indemnização que hoje atingiria meio milhão de euros, acrescidos de treze anos de juros. Entre as irregularidades detectadas estava o facto de quase 10 milhões de euros destinados à formação profissional de jovens entre os 18 e os 25 anos sem qualificação terem alegadamente sido pagos a trabalhadores no ativo do grupo Amorim. Mas o advogado Proença de Carvalho acabou por conseguir que, ao fim de 11 anos, o Tribunal da Relação do Porto desse os crimes por prescritos. A notícia desse dia é um desabafo: «o processo acaba por ser o espelho fiel do emaranhado de trâmites e decisões em que se enredam os nossos tribunais, que tem criado a sensação que os ricos e poderosos passam ao lado do escrutínio da justiça» (Público, 30.09.2000).
Banqueiro intermitente
Amorim é um dos fundadores do BCP, em 1985. Quando Jardim Gonçalves reforça o seu poder com a blindagem dos estatutos e limita o direito de voto a 10%, Américo Amorim, com 20% das ações, vende a sua quota ao Banco Central Hispano. Com esses 300 milhões de euros, funda a Real Seguros e o Banco Português de Negócios. Mas quando outro ex-Secretário de Estado de Cavaco, Oliveira e Costa, se liga ao BPN, em 1997, Amorim já está vendedor dos seus 25%.
Nesse ano, novo negócio milionário: venda à Vodafone, por 100 milhões de euros, da licença da Telecel, que Amorim comprara seis anos antes por 15 milhões de euros, associado aos Espírito Santo, aos Mello e à Centrel. De regresso à banca, funda com Horácio Roque o Banco Nacional de Crédito (BNC). Amorim acabava de ser preterido por Guterres na privatização do Banco de Fomento Exterior. Um desaire que ainda consegue anular formalmente em tribunal, demasiado tarde, quando o BFE já estava absorvido pelo BPI. O Expresso conta (2.2.2013) que Amorim “telefonou indignado ao primeiro-ministro. Guterres confortou-o, prometendo que seria compensado numa futura operação. A Galp estava mesmo condenada a ficar para Amorim”.
Cronologia
O périplo de Amorim pela banca portuguesa, espanhola e africana
1981 - SPI (depois BPI)
1985 - BCP
1995 - BPN
1997 - BNC
2003 - Banco Popular (Espanha)
2005 - BIC (Angola/Portugal)
2008 - Banco Carregosa
2011 - Banco Único (Moçambique)
2012 - Banco Luso-Brasileiro (Brasil)
Negócios ruinosos com o Banif e o Estado
Em 2003, o BNC é integrado no Banco Popular. Amorim, torna-se o maior acionista individual da instituição espanhola, com 7,8%. A parceria com Horácio Roque continua na Finpro, fundo de capital com aplicações em grandes infraestruturas de vários países. Além do presidente do Banif (35,7%) e de Amorim (25,4%), a Finpro conta com capital... do próprio Estado - Segurança Social (10%) e CGD (17,2%). A privatização da ANA e a construção do aeroporto da Ota acabam por passar-lhe ao lado, tal como a compra da Aquapor, que disputou às Águas de Portugal em 2008. Nesta época, a Finpro chegou a fazer aquisições internacionais acima de 500 milhões de euros. "O dinheiro é como as cerejas. Aparece sempre", referia então Américo Amorim (Público, 6.8.2007), mal reparando na crise financeira internacional que eclodia.
Numa auditoria de 2010, o Tribunal de Contas criticou a participação da Segurança Social na Finpro como “controversa, não só pelos atributos do investimento ‘per si’, pois trata-se de um investimento muito arriscado pela alavancagem associada, mas tendo em conta o processo de investimento que o originou e que a norteia". Mas o mal estava feito e as vacas magras instalavam-se nos mercados de crédito. As dívidas da Finpro atingiam 250 milhões, metade à CGD. Em 2014, é declarada insolvência e a Finpro de Amorim e Banif surge entre os maiores devedores à Caixa Geral de Depósitos. Estes e outros créditos ruinosos chegariam à ribalta no quadro da recapitalização da CGD, mas ninguém perguntou a Amorim pelo tal dinheiro que “aparece sempre”.
O melhor parceiro da filha do presidente de Angola
Américo Amorim não foi o primeiro a fazer negócios com o regime de José Eduardo dos Santos. A banca privada portuguesa ou o grupo Espírito Santo/Escom estavam há muito no país, mas Amorim é até hoje o mais direto e assumido parceiro português dos negócios de Isabel dos Santos, a filha do presidente.
Começam pela Galp, em 2005, numa privatização sem consulta ao mercado. A venda da quota detida pela REN (então pública) ocorre como mero ato da gestão, sem passar pelo processo normal na venda de um ativo estatal. A opção do primeiro-ministro bloqueia as pretensões da ENI italiana. José Sócrates declara que agiu “de forma patriótica” ao impedir “que a Galp passasse - como estava tudo preparado - para mãos italianas" (DN, 20.9.2009).
Na fundação da sociedade Amorim Energia, os 45% de Luanda estão sob controlo da estatal Sonangol. No ano seguinte, segundo a revista Forbes, 40% desta quota fica com Isabel dos Santos, o equivalente a 7% da Galp, no valor de uns mil milhões de dólares.
A Amorim Energia tinha pago 1700 milhões de euros por um terço da Galp. Em 2013, essa quota inicial valia em Bolsa mais de 4000 milhões. Só na primeira meia dúzia de anos após a compra, Amorim e os seus sócios angolanos tinham recuperado em dividendos mais de 700 milhões de euros, a partir de lucros declarados na Holanda, onde os dividendos não pagam imposto. A “solução patriótica” de Sócrates notou-se pouco nos cofres públicos.
Com a entrada na Galp, a mulher mais rica de África multiplica parcerias com Amorim. Constituem em 2005 o banco BIC Angola, onde a filha do presidente detém um quarto do capital e Amorim outro tanto. Têm negócios na construção (Imoluanda) e, em 2007, dominam a maior cimenteira de Angola, a Cimangola, através de um esquema que o Expresso investigou. Alegando razões estratégicas, o governo de Luanda comprou os 49% detidos na Cimangola pela Cimpor portuguesa por 56 milhões de euros. Para isso, pediu um empréstimo ao BIC e, em seguida, entregou a quota a uma sociedade dos donos do banco, Amorim e Isabel dos Santos, ficando o Estado angolano com os mesmos 40% que já detinha. Em 2010, Amorim vendeu a sua parte da cimenteira a uma empresa do marido de Isabel do Santos, Sindika Dokolo.
O BPN oferecido a Amorim e dos Santos
Instalado em Portugal desde 2008, o BIC foi dirigido por Mira Amaral, ex-ministro de Cavaco Silva, cujo maior feito à cabeça do banco é a instalação de uma ampla rede de balcões do BIC a partir da compra ao Estado português dos despojos mais valiosos do Banco Português de Negócios (BPN).
Apesar da gestão delinquente - que levou à ruinosa nacionalização do banco, cujo impacto nas contas do Estado ainda hoje não está totalmente definido - em 2011, duas avaliações, encomendadas à Deloitte e à Caixa BI, indicaram ao governo Passos Coelho que o BPN ainda incluía ativos que podiam ser vendidos por 110 milhões de euros. A rede de balcões e a parte recuperável do negócio bancário não eram negligenciáveis.
Mas estas avaliações foram escondidas pelo governo e só viram a luz do dia muito mais tarde, no inquérito parlamentar à reprivatização. O governo apressou-se a eliminar todos os outros candidatos (incluindo o Montepio) e a vender o BPN por apenas 40 milhões, um desconto de mais de 60% a favor do BIC de Amorim e Isabel dos Santos. Os compradores escolheram os ativos que quiseram conservar e o Estado ficou com os custos de todos os litígios e despedimentos dos trabalhadores dispensados pelo BIC, que ainda encaixa 25 milhões de um alegado “excedente” identificado no fundo de pensões dos trabalhadores do BPN.
Na sequência da privatização, o BIC venderá o BPN aos acionistas do próprio BIC. A operação é feita através de um crédito que depois é “anulado” por diminuição do capital do banco - o Estado capitalizara o BPN com 600 milhões de euros, mais do que o estritamente necessário (Visão, 17.10.2013). O BPN foi portanto oferecido a Isabel dos Santos e Américo Amorim. Este último sairá do BIC logo em 2014, vendendo os seus 25% aos sócios angolanos.
Sócio dos Gebuza em Moçambique
Em Moçambique, Amorim é um bom parceiro da família do ex-presidente Gebuza. Além do Banco Único de Moçambique, onde é o segundo maior acionista, associado à Visabeira, Amorim está ligado ao círculo do ex-presidente da República, Armando Gebuza, também num vasto empreendimento agrícola no Corredor de Nacala, 14 milhões de hectares muito férteis no norte de Moçambique. Amorim, Paes do Amaral e Espírito Santo são alguns dos grupos portugueses acusados pela União Nacional de Camponeses de Moçambique e pela ONG espanhola Grain, de terem criado um esquema - o Projeto Prosavana - para se apossarem daquelas vastas extensões de território sem sequer indemnizar os agricultores moçambicanos deslocados.
No caso da Agromoz, são denunciados também Armando Guebuza e o seu filho Mussumbuluko e a empresa Insitec, que a embaixada dos Estados Unidos em Maputo descrevia (http://www.esquerda.net/artigo/qual-o-papel-da-cgd-no-esc%C3%A2ndalo-da-venda-da-hidroel%C3%A9ctrica-de-cahora-bassa), nos telegramas divulgados pela Wikileaks, como “veículo de investimentos do antigo presidente Guebuza".
O Grupo Amorim afirma que cumpriu "todos os requisitos legais com o processo de obtenção de terras estipulado pela Lei de Moçambique, assim como é possuidor de registos legais de todos estes processos". Segundo a União Nacional de Camponeses de Moçambique, o governo, ainda sob a presidência de Armando Gebuza, concedeu à AgroMoz um Direito de Uso e Aproveitamento de 9000 hectares na região de Lioma.
"Em 2012”, regista o relatório, “representantes da AgroMoz chegaram ao posto administrativo de Lioma, às pressas obtiveram direito às terras com algumas autoridades do Governo e começaram a desalojar das terras mais de mil camponeses da aldeia de Wakhua", sendo que "os camponeses despejados receberam uma compensação mínima, entre 2000 e 6500 Meticais (65 a 200 dólares, 57 a 175 euros)".
O capital procura os seus herdeiros, como sempre
Amorim é o homem mais rico de Portugal - uma fortuna de mais de 3000 milhões de euros, segundo a revista Exame - mas a sua não é nenhuma das “grandes famílias” do Estado Novo. A raiz da sua fortuna - a Corticeira - conviveu com a ditadura ao longo de décadas mas se deu o salto foi porque soube adaptar-se às circunstâncias políticas do pós-25 de abril. Entre imobiliário e banca privada, telecomunicações, turismo e energia, Amorim soube realizar enormes mais-valias nas permanentes mudanças de setor e de posição em cada setor, sem nunca perder o pé da atividade multinacional na cortiça. Projetou-se nas oportunidades abertas pela mão do Estado, no ciclo privatizador da integração europeia e, mais recentemente, no centro do “triângulo dourado” Angola-Brasil-Portugal, aliado às famílias do poder angolano e moçambicano.
Na hora de se retirar, Amorim confirma a prática dos capitalistas do seu tempo: ao longo dos anos, nenhum resistiu a apresentar-se moderno, valorizando em palavras, para a sua sucessão, um futuro recrutamento por “mérito profissional” em vez da clássica transmissão da gestão juntamente com a propriedade. Mas, na hora da despedida, Amorim, Belmiro ou Soares dos Santos deixaram mesmo os herdeiros ao comando do negócio. Como sempre.
Jorge Costa é Deputado e dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
Este artigo foi escrito com base em capítulos dos livros “Donos de Portugal”, “Os Donos Angolanos de Portugal”, “Os Burgueses” e “Privataria”, dos quais Jorge Costa é co-autor.
http://www.esquerda.net/content/os-grandes-negocios-de-amorim/46049