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A falsa lenda de Paul Volcker

por F. William Engdahl | New Eastern Outlook

Resistir.info - 14 de dezembro, 2019

https://www.resistir.info/eua/volcker_14dez19.html

Paul Volcker, ex-governador nos anos 80 do banco central dos EUA, o Federal Reserve, morreu aos 92 anos. Os grandes media estão a escrever elogios ao banqueiro que "matou a inflação" após as crises do petróleo e dos preços dos alimentos nos anos 70. Mas o verdadeiro legado de Volcker é muito menos positivo. Ninguém fez mais para provocar o disfuncional sistema financeiro cheio de dívidas que temos hoje do que o ex-economista do Chase Manhattan Bank que passou a maior parte de sua vida ao serviço da mais poderosa família de oligarcas da América.


Paul Volcker e o Presidente James Carter

Dois grandes eventos definem o verdadeiro legado da Volcker. O primeiro foi em Agosto de 1971, quando ele era um alto funcionário do Tesouro dos EUA no governo Nixon. O segundo foi como presidente do Fed no governo Jimmy Carter, desde Outubro de 1979. Ambos definem os acontecimentos que levaram à desindustrialização dos Estados Unidos e ao colapso económico da maior parte do mundo em desenvolvimento, principiado há quatro décadas atrás.

A ruptura com o ouro
Durante a década de 1960, começou uma grave crise de subinvestimento na a economia dos EUA. Indústrias de classe mundial construídas durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, do aço ao alumínio e aos carros de Detroit, precisavam urgentemente de modernização e investimento. A Europa reconstruiu sua indústria após a devastação da guerra e, especialmente, a Alemanha e a França estavam a competir com os EUA no mercado mundial, com a sua indústria de ponta, muitas vezes mais avançada. Suas economias obtinham superávites em dólares com as suas exportações. O problema era que esses dólares não eram mais apoiados pela economia mais forte do mundo.

No início da década de 1960, quando a Europa começou a crescer a taxas superiores às dos Estados Unidos, estava a ficar claro para muitos que algo tinha que ser mudado no arranjo fixado em Bretton Woods. Mas Washington, sob a crescente influência da poderosa comunidade bancária de Nova York, liderada pelo Citibank e pelo Chase Manhattan Bank de David Rockefeller, recusou-se a seguir as mesmas regras que impusera a seus aliados em 1944. Bancos de Nova York começaram a investir no exterior em novas fontes de maiores lucros. Esse vasto fluxo de saída de capital de investimento vital transformou a década de 1960 numa sucessão de crises monetárias internacionais cada vez mais graves.

Bancos internacionais de Nova York estavam a ganhar enormes lucros ao deixarem de investir no futuro dos Estados Unidos. Entre 1962 e 1965, corporações americanas na Europa ocidental obtiveram um retorno entre 12 e 14%, de acordo com um Relatório Presidencial ao Congresso de Janeiro de 1967, o dobro do que obteriam com investimento na indústria dos EUA. No final da década de 1960, os bancos centrais europeus mantinham grandes excedentes em dólares do comércio e dos investimentos e eram instados por Washington a não resgatá-los por ouro como permitido pelo [Acordo de] Bretton Woods.

O presidente francês Charles de Gaulle, seguindo o conselho de seu estratega económico Jacques Rueff, criticou o governo Johnson por ignorar o acordo de Bretton Woods de 1944, recusando-se a reavaliar o preço do ouro em dólares. Rueff havia proposto uma desvalorização de 100% do dólar para restaurar a justiça e a estabilidade da ordem monetária. A Wall Street e o governo de Washington rejeitaram qualquer coisa desse tipo. Reduziria o poder dos bancos internacionais dos EUA.

Bretton Woods estabelecia um padrão ouro para trocas (Gold Exchange Standard) que fixava todas as moedas ao dólar americano e apenas o dólar ao ouro ao preço fixo de US$35, o qual era mantido desde a Grande Depressão na década de 1930. Em 1944, os EUA eram de longe o líder industrial mundial e detinham a grande maioria do ouro dos bancos centrais; de modo que Bretton Woods era relutantemente aceito pelos outros países. Mas na década de 1960, ao explodirem os défices orçamentais dos EUA, causados principalmente pelos custos crescentes da guerra no Vietname, eles de facto exportaram a inflação do dólar para aliados dos EUA. A partir de meados dos anos 60, os principais países, liderados pela França e depois pela Alemanha, começaram a exigir que o Federal Reserve dos EUA resgatasse seus excedentes comerciais em dólar pelo ouro do Fed de Nova York, o guardião do ouro do governo dos EUA.

Em 1959, o passivo externo dos Estados Unidos ainda se aproximava do valor total de suas reservas oficiais de ouro. Em 1967, o total de passivos externos dos EUA havia subido para três vezes a reserva de ouro a US$35 por onça [troy]. Os bancos europeus e outros bancos centrais começaram a resgatar seus dólares e exigir ouro ao governo dos EUA. Em 1967, a França decidiu trocar suas reservas em dólar e em libra esterlina por ouro, abandonando o arranjo voluntário do pool gold de 1961 do Grupo dos 10. Em 1971, com Nixon como presidente, a crise do dólar estava cada vez mais insustentável, pois o ouro oficial caíra para apenas 25% do passivo externo dos EUA. Se todos os detentores de dólar exigissem ouro, os EUA não poderiam resgatar. Com os preços do ouro nos mercados mundiais a subirem dia a dia, os detentores de dólares exigiam ouro dos EUA pelo papel[-moeda]. Jacques Rueff continuou a pedir um preço do ouro de US$70, argumentando que isso acalmaria a especulação e permitiria aos EUA resgatarem os saldos do Eurodólar no exterior, causando graves danos económicos aos EUA. Isso tornaria as exportações industriais dos EUA muito mais competitivas e dispararia um renascimento da indústria americana, como ele bem argumentou.

Ao invés disso Nixon seguiu o conselho de seu Departamento do Tesouro e, notavelmente, o do subsecretário de Assuntos Monetários Internacionais, Paul Adolph Volcker. Volcker chegara ao Tesouro vindo do cargo de vice-presidente do Chase Manhattan Bank, de David Rockefeller. Os caminhos de David Rockefeller e de Volcker iriam cruzar-se continuamente nas décadas seguintes.

Em 15 de Agosto de 1971, Nixon anunciou a suspensão formal da conversibilidade do dólar em ouro, colocando efectivamente o mundo totalmente em um padrão de dólar fiduciário (fiat dollar standard) sem lastro ouro. Ele rasgou unilateralmente o acordo do tratado de Bretton Woods e o mundo foi forçado a engolir as enormes consequências negativas das taxas de câmbio flutuantes.

Quatro meses depois, num compromisso conhecido como Acordo Smithsonian, a que Nixon chamou de "o acordo monetário mais significativo da história do mundo" (sic), os Estados Unidos desvalorizaram formalmente o dólar nuns meros 8% em relação ao ouro, colocando o ouro em US$38, em vez dos US$35, uma jogada sem sentido. A Wall Street havia derrotado o cidadão comum e a indústria dos EUA. Isto foi o início real da desindustrialização americana em favor do que posteriormente seria chamado de "globalização". Anos depois, Volcker chamaria seu papel na suspensão da conversibilidade do ouro, "o evento único mais importante da sua carreira".

Em 1973, o secretário de Estado de Nixon, Henry Kissinger, outro protegido do Rockefeller, orquestrou eventos que irromperam na Guerra do Yom Kippur em Outubro de 1973, uma guerra que foi realmente manipulada para desencadear um embargo de petróleo da OPEP que elevaria o preço da mais valiosa mercadoria do mundo em 400% num prazo de meses. O dólar, embora poucos entendessem, passou de uma divisa com lastro ouro para uma divisa com lastro no petrodólar. Washington garantiu que a OPEP venderia petróleo apenas em dólares, um pacto que se manteve até Saddam Hussein rompê-lo décadas depois. O papel de Paul Volcker, em Agosto de 1971, de dissociar o dólar do ouro, foi fundamental para a estratégia da Petrodólar. A Arábia Saudita, o Irão e outros membros da OPEP reciclavam seus enormes ganhos em petrodólares para Londres, onde o Chase Manhattan e outros bancos de Nova York e Londres o atribuíam a países em desenvolvimento a baixas taxas de juros "flutuantes".

Presidente do Fed 'mata' inflação
Em 1979, o dólar estava numa nova crise, pois o derrube do xá no Irão levou a um segundo grande aumento no preço do petróleo e a uma crise no dólar. Um perturbado Jimmy Carter foi convencido pelo seu bom amigo David Rockefeller a nomear Paul Volcker como governador do Fed a fim de acalmar os mercados e estabilizar o dólar. Volcker deixara Washington em 1974 para se tornar presidente do Federal Reserve de Nova York. Ele também foi um dos membros fundadores da altamente influente e pouco conhecida Comissão Trilateral de David Rockefeller, juntamente com Zbigniew Brzezinski e um produtor de amendoim da Geórgia chamado Jimmy Carter. Carter devia sua Presidência a David Rockefeller e encheu seu gabinete com membros da Trilateral.

Quando Volcker assumiu o controle do Federal Reserve, em Outubro de 1979, desencadeou um choque monetário que levou as taxas de juros do Fed a 20% em semanas e mergulhou a economia americana no mais grave colapso desde a década de 1930. Ele alegou que era necessário "expulsar a inflação para fora do sistema". Volcker atribuiu a culpa da inflação aos sindicatos e pequenos produtores que estavam simplesmente a lutar para acompanhar a ascensão dos preços da energia e dos alimentos.

Quando em 1971Volcker convenceu Nixon a romper com o ouro, isso disparou o primeiro aumento da inflação pós-1945 pois o valor do dólar afundou, tornando mais altos os preços das importações. Nixon tentou impedi-lo com o controle dos preços dos salários em 1971. Isso restringiu a actividade comercial, diminuindo o crescimento.

Antes de Carter se tornar presidente em 1977, Nixon ordenara ao Fed que se livrasse dos efeitos do petróleo e dos alimentos no Índice de Preços no Consumidor. O resultado foi o número falso conhecido como "núcleo da inflação" ("core inflation") , menos petróleo e alimentos. Nas suas acções sobre taxas de juros após Outubro de 1979, Volcker nunca mencionou que a verdadeira inflação proveio das maquinações de David Rockefeller na década de 70 com a OPEP. Em vez disso, ele argumentou que o problema era o aumento do padrão de vida da população. Ao defender sua controversa terapia de choque monetário, Volcker disse notavelmente a David McNally do New York Times: "O padrão de vida americano deve declinar".

Declínio certamente ocorreu, pois a economia foi mergulhada em profunda recessão de 1980 a 1982, com o desemprego acima de 10%, com o aprofundamento de bancarrotas na construção, agricultura e indústria. Em 1982, as altas taxas de juros do dólar haviam devastado toda a economia mundial devido ao primado do dólar. Isso desencadeou o que ficou conhecido como a crise da dívida do Terceiro Mundo, desde o México, Argentina, Brasil, Jugoslávia, Polónia e outros países. A política de taxas de juros de Volcker combinada com sua dissociação do dólar em relação ao ouro preparou o cenário para o que foi a maior de todas a inflações, a inflação mundial de 1971 até hoje. Entre 1971 e o início dos anos 90, logo após Volcker deixar o Fed, o volume de dólares em circulação mundial expandiu-se mais de 2.500%, pois o ouro já não limitava mais a criação de dólares.

Paul Volcker deve ser recordado, mas por aquilo que ele realmente fez e não pela mitologia inventada pelos seus apoiantes na Wall Street. Toda a sua carreira, assim como a do seu associado de longa data, Kissinger, esteve ligada aos Rockefellers. Volcker deixou o Fed em 1987 e foi nomeado para o Trust Commitee do Rockefeller Group. Ele foi membro desde longa data dos grupos Bilderberg e Trilateral Commission, fundados por Rockefeller, bem como presidiu a empresa de investimentos da Wall Street, Wolfensohn & Co., de James D. Wolfensohn, que posteriormente se tornou presidente do Banco Mundial. Se traçarmos as acções reais de Paul Volcker desde 1971 entenderemos melhor as origens da crise da economia mundial nos dias de hoje.

Frederick William Engdahl é jornalista, conferencista e consultor para riscos estratégicos. É graduado em política pela Princeton University; autor consagrado e especialista em questões energéticas e geopolítica da revista online New Eastern Outlook. Trabalhou como economista e jornalista free-lance em New York e na Europa. Começou a escrever sobre política do petróleo, com o primeiro choque do petróleo na década de 1970. Tem sido colaborador de longa data do movimento LaRouche. Seu primeiro livro foi A Century of War: Anglo-American Oil Politics and the New World Order, onde discute os papéis de Zbigniew Brzezinski, de George Ball e dos EUA na derrubada do xá do Irão em 1979. Em 2007, completou seu livro Seeds of Destruction: The Hidden Agenda of Genetic Manipulation. Seu último livro foi: Gods of Money: Wall Street and the Death of the American Century (2010).

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