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Queima, neoliberalismo, queima!

por Pepe Escobar | Strategic Culture Foundation

Bacurau - 23 de outubro, 2019

https://bbacurau.blogspot.com/2019/10/queima-neoliberalismo-queima.html

O neoliberalismo está em fogo –, literalmente ardente. E do Equador ao Chile, a América do Sul, mais uma vez, aponta o caminho. Contra a cruel prescrição dessa ‘austeridade’ [é ARROCHO] tamanho-único, do FMI, que usa armas de destruição econômica em massa para esmagar a soberania nacional e promover a desigualdade social, a América do Sul finalmente parece pronta para reivindicar que lhe seja devolvido o poder de forjar a própria história.

Três eleições presidenciais estão em jogo. A Bolívia parece ter sido resolvida no domingo passado – embora os suspeitos de sempre ainda gritem “Fraude!” Argentina e Uruguai votarão no próximo domingo [Evo Morales foi declarado oficialmente eleito, 24/10/2019 (NTS)].

A reação contra o que David Harvey definiu esplendidamente como acumulação por expropriação é e continuará sendo dura. Mais dia menos dia, há de chegar ao Brasil – que, no pé em que está, continua a ser destripado por mortos-vivos ainda pinochetistas. O Brasil ressurgirá, por imensa que tenha de ser a dor. Afinal, os excluídos e humilhados em toda a América do Sul estão finalmente descobrindo que carregam um Coringa dentro de si.

Chile privatiza tudo

A questão que a rua chilena nos grita: “O que é pior, evasão de impostos ou invasão do metrô?” É tudo questão de se fazer a matemática da luta de classes. O PIB do Chile cresceu 1,1% no ano passado, enquanto os lucros das maiores empresas cresceram dez vezes mais. Não é difícil descobrir de onde arrancaram a descomunal diferença. A rua chilena grita e demonstra o modo como foram privatizados água, eletricidade, gás, saúde, atendimento médico, transporte, educação, até o salar de Atacama e até as geleiras.

É acumulação por expropriação clássica, porque o custo de vida tornou-se insuportável para a vasta maioria de 19 milhões de chilenos, cuja renda mensal média não excede US $ 500.

Paul Walder, diretor do portal Politika e analista do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE) observa que, menos de uma semana depois do fim dos protestos no Equador – protestos que forçaram o abutre neoliberal Lenin Moreno a suspender um aumento no preço do gás –, foi a vez do Chile, que entrou em um ciclo muito semelhante de protestos.

Walder define corretamente o presidente do Chile, Sebastian Piñera, como o peru em um banquete que se arrasta e envolve toda a classe política chilena. Não é de admirar que a rua chilena enlouquecidamente furiosa não faça diferença entre governo, partidos políticos e polícia. Piñera, previsivelmente, criminalizou todos os movimentos sociais; enviou o exército para as ruas para repressão sem limites; e impôs um toque de recolher.

Piñera é o sétimo na lista dos mais ricos bilionários do Chile, com ativos avaliados em US $ 2,7 bilhões, espalhados em companhias aéreas, supermercados, TV, cartões de crédito e futebol. É uma espécie de Moreno turbinado, um pinochetista neoliberal. O irmão de Piñera, José, foi de fato ministro no governo de Pinochet, e o homem que implementou o sistema privatizado de assistência social do Chile – fonte essencial de desintegração social e desespero. E tudo se interliga: à época, o atual ministro das Finanças do Brasil, o Chicago-boy Paulo Guedes, morava e trabalhava no Chile. Agora quer repetir no Brasil o mesmo experimento absolutamente desastroso.

O resumo da ópera é que o “modelo” econômico que Guedes quer impor no Brasil já colapsou totalmente no Chile.

O principal recurso do Chile é o cobre. As minas de cobre, sempre, historicamente, foram propriedade dos EUA, mas foram nacionalizadas pelo presidente Salvador Allende em 1971. Daí o plano do criminoso de guerra Henry Kissinger para eliminar Allende, que culminou no primeiro 11/9, inaugural, em 1973. Em seguida, a ditadura de Pinochet reprivatizou as minas. A maior de todas, “Escondida”, no deserto de Atacama – que responde por 9% do cobre do mundo – pertence à gigante anglo-australiana Bhp Billiton.

O maior comprador de cobre nos mercados mundiais é a China. Pelo menos dois terços da renda gerada pelo cobre chileno não se destina ao povo chileno: pertence a multinacionais estrangeiras.

O desastre argentino

Antes do Chile, o Equador já estava semiparalisado: escolas inativas, falta de transporte urbano, falta de alimentos, especulação desenfreada, sérios distúrbios nas exportações de petróleo.

Sob a pressão nas ruas de 25.000 indígenas mobilizados, dos povos originais, o presidente Lenín Moreno covardemente deixou vazio o poder em Quito, transferindo para Guayaquil a sede do governo. Os povos indígenas assumiram o governo em muitas cidades importantes. A Assembleia Nacional sumiu, desaparecida por quase duas semanas, sem nenhuma vontade de tentar, que fosse, resolver a crise política.

Ao anunciar estado de emergência e toque de recolher, Moreno estendeu um tapete vermelho para as Forças Armadas – e Piñera repetiu o procedimento no Chile. A diferença é que, no Equador, Moreno aposta em dividir para governar: povos originais, em confronto uns contra outros e o em confronto com o restante da população. E Piñera recorre à força bruta.

Além de aplicar as mesmas velhas táticas de aumento de preços para obter mais fundos do FMI, o Equador também exibiu a articulação clássica de governo neoliberal, grandes empresas e o proverbial embaixador dos EUA (nunca falta!), neste caso Michael Fitzpatrick, que até 2018 foi secretário assistente para assuntos do Hemisfério Ocidental encarregado da região andina, Brasil e Cone Sul.

O caso mais claro de falha neoliberal total na América do Sul é a Argentina. Há menos de dois meses, em Buenos Aires, vi os efeitos sociais cruéis do peso em queda livre, inflação de 54%, uma emergência alimentar de fato e o empobrecimento de setores sólidos da classe média. O governo de Mauricio Macri literalmente queimou a maior parte do empréstimo de US $ 58 bilhões do FMI – ainda há US $ 5 bilhões por chegar. Macri está pronto para perder as eleições presidenciais: os argentinos terão que pagar essa conta descomunal.

O modelo econômico de Macri só poderia ser o mesmo de Piñera – na verdade de Pinochet, modelo no qual os serviços públicos são administrados como business. Conexão crucialmente importante entre Macri e Piñera é a ultraneoliberal Freedom Foundation, patrocinada por Mario Vargas Llosa, que pelo menos ostenta a qualidade redentora de ter sido, faz muito tempo, romancista até que decente.

Macri, milionário, discípulo de Ayn Rand e incapaz de demonstrar empatia por seja quem for, é essencialmente um zero, um nada, pré-fabricado por seu guru equatoriano Jaime Duran Barba, como produto robótico de dados minerados, redes sociais e grupos focais. Análise hilária de suas inseguranças pode ser encontrada em La Cabeza de Macri: Como Piensa, Vive y Manda el Primer Presidente de la No Politica, de Franco Lindner.

Dentre inúmeras confusões e negociatas, Macri está indiretamente ligado ao HSBC, conhecida fabulosa máquina de lavar dinheiro. O presidente do HSBC na Argentina era Gabriel Martino. Em 2015, foram descobertas no HSBC suíço quatro mil contas argentinas no valor de US$3,5 bilhões. Essa espetacular fuga de capitais foi arquitetada pelo banco. Mas, essencialmente, Martino foi salvo por Macri e tornou-se um de seus principais conselheiros.

Cuidado com os empreendimentos dos abutres do FMI

Todos os olhos agora devem estar na Bolívia. Até o momento em que este artigo foi escrito, o presidente Evo Morales havia vencido, no primeiro turno de votação, as eleições presidenciais de domingo – obtendo, com pequena margem, a diferença de 10% no número de votos, que se exige da candidatura vitoriosa, se não obtiver os 50% mais um dos votos. Morales conseguiu alcançar essa diferença no final da contagem dos votos, quando os votos das zonas rurais e do exterior foram todos contados, e a oposição já começara a sair às ruas para pressionar. Não surpreendentemente, a OEA – servil aos interesses dos EUA – já declarara “falta de confiança no processo eleitoral”.

Evo Morales representa um projeto de desenvolvimento sustentável, inclusivo e, traço crucialmente importante, autônomo em relação às finanças internacionais. Não admira que todo o aparato do Consenso de Washington odeie as tripas de Evo. O ministro da Economia, Luis Arce Catacora, foi direto ao ponto: “Quando Evo Morales venceu sua primeira eleição em 2005, 65% da população era de baixa renda, agora 62% da população tem acesso a uma renda média”.

À oposição, sem projeto algum, exceto privatizações violentas, e sem qualquer preocupação com as políticas sociais, resta gritar “Fraude!”. Tudo isso contudo ainda pode sofrer virada muito grave nos próximos dias. Nos subúrbios ricos da zona sul de La Paz, o ódio de classe contra Evo Morales é o esporte favorito: o presidente é chamado de “índio”, “tirano” e “ignorante”. Os cholos do Altiplano são rotineiramente definidos pelas elites brancas proprietárias de terras nas planícies como uma “raça do mal”.

Nada disso altera o fato de que a Bolívia é agora a economia mais dinâmica da América Latina, como destacou o importante analista argentino Atilio Boron.

A campanha para desacreditar Morales, que sem dúvida será mais cruel a cada dia, faz parte da guerra imperial 5G, que, segundo Boron, encobre totalmente “a pobreza crônica que a maioria absoluta da população sofreu por séculos”, de um estado que sempre “manteve a população em situação de total carência de proteção institucional” e de “pilhagem da riqueza natural e do bem comum “.

É claro que o fantasma dos fundos abutres do FMI não desaparecerá na América do Sul como por encanto. Por mais que os suspeitos de sempre agora pareçam, via relatórios do Banco Mundial, “preocupados” com a pobreza; que os escandinavos deem o Prêmio Nobel de Economia a três acadêmicos que estudam a pobreza; e ainda que Thomas Piketty, em Capital et Ideologie (Seuil, 2019; trad. ao esp.; ainda sem tradução ao português) tente desmontar a justificativa hegemônica para a acumulação de riqueza.

O que ainda permanece absolutamente proibido para os guardiões do sistema mundial atual é investigar realmente o neoliberalismo de linha-dura como a causa raiz da hiperconcentração da riqueza e da desigualdade social. Já não basta oferecer Band-Aids. As ruas da América do Sul estão em fogo. Começou a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou bater.

Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga

Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..

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