O Bulletin of the Atomic Scientists moveu o ponteiro do Relógio do Juízo Final para apenas dois minutos antes da meia-noite. Seria tentador converter tudo em bate-boca sobre flechas e ramos de oliveira, se o cenário não fosse tão aterrador.
O presidente Ronald Reagan dos EUA e Mikhail Gorbachev, secretário-geral da URSS, assinaram o Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance [ing. Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty (INF)] em 1987.
A Arms Control Association apreciou muito. “O tratado marcou a primeira vez em que as superpotências concordaram com reduzir os respectivos arsenais nucleares, eliminar uma categoria completa de armas nucleares e utilizar inspeções abrangentes in situ para verificação.”
Três décadas depois, o governo Trump quer retirar-se unilateralmente do Tratado Nuclear ‘Médio’.
No início da semana, o presidente Trump enviou a Moscou o seu conselheiro para segurança nacional John Bolton, para dar a notícia oficialmente ao presidente Vladimir Putin da Rússia.
Na discussão de questões extremamente graves, como as implicações de se dissolver o Tratado Nuclear ‘Médio”, a perpetuação de sanções anti-Rússia, o risco de não se prorrogar um novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas [ing. START Treaty] e da instalação, nas palavras de Putin de “alguns elementos do escudo de mísseis no espaço sideral”, o presidente russo partiu, digamos assim, para flechas e azeitonas:
“Que me lembre, há uma águia careca no brasão dos EUA: numa garra segura 13 flechas, na outra, um ramo de oliveira, com 13 azeitonas, símbolo de política de paz.[1] Pergunto eu: a águia de vocês comeu as azeitonas e ficou só com as flechas?”
Resposta de Bolton: “Não lhe trouxe nenhuma azeitona.”
‘Nova realidade estratégica’?
Agora já se sabe que o raciocínio do governo Trump para se retirar do Tratado Nuclear ‘Médio’ explica-se, nas palavras de Bolton, por “uma nova realidade estratégica”. O Tratado Nuclear ‘Médio” está sendo descartado como “tratado bilateral, em mundo multipolar de mísseis balísticos”, que não leva em conta as capacidades dos mísseis de China, Irã e Coreia do Norte.
Mas tem um probleminha. O Tratado Nuclear ‘Médio’ limita mísseis com alcance entre 500 km e 5 mil km. China, Irã e Coreia do Norte não são ‘ameaça’ aos EUA por causa desses mísseis. O Tratado Nuclear ‘Médio’ só tem a ver com o teatro de guerra europeu.
Assim sendo, não surpreende que a reação em Bruxelas e nas grandes capitais europeias tenha sido de mal disfarçado horror.
Diplomatas da União Europeia (UE) disseram a Asia Times que a decisão dos EUA foi “um choque” e “a última palha no lombo da UE, dado que põe em risco nossa própria existência, expondo-nos à destruição nuclear por mísseis de curto alcance” – que jamais chegariam ao território continental dos EUA.
A causa “China” – que a Rússia está vendendo a Pequim tecnologia avançada de mísseis – simplesmente não cola na Europa, cuja absoluta prioridade é a segurança europeia. Diplomatas da UE estão comparando à possibilidade – que era mais do que real no ano passado – de que Washington poderia atômico-bombardear a Coreia do Norte unilateralmente. Coreia do Sul e Japão, nesse caso, seriam “dano colateral” nuclear. O mesmo pode acontecer à Europa, no caso de tiroteio nuclear entre EUA e Rússia.
Nem é preciso dizer que descartar o Tratado Nuclear ‘Médio’ pode até acelerar o fim de toda a aliança ocidental pós-2ª Guerra Mundial, abrindo caminho para 1930s remix infernalmente potencializado.
E o relógio continua lá, tiquetaqueando
Relatos que devem ser examinados criticamente, nos mínimos detalhes, garantem que a superioridade dos EUA sobre as capacidades militares da China encolhem rapidamente. Mesmo assim a China não é usina de produção de tecnologia militar de ponta, comparada à Rússia e seus mísseis hipersônicos estado-da-arte.
A OTAN pode ser relativamente forte no front dos mísseis – mas ainda não daria conta da Rússia, numa potencial batalha na Europa.
O perigo supremo, em termos do Relógio do Juízo Final, é a obsessão, entre algumas facções de neoconservadores nos EUA, de que Washington venceria, em guerra nuclear localizada tática “limitada” contra a Rússia.
É o ‘raciocínio’ que jaz por trás de expandir o mais possível a capacidade de primeiro ataque dos EUA, para o mais perto que consigam chegar das fronteiras ocidentais da Rússia.
Analistas russos destacam que Moscou já está – “não oficialmente” – aperfeiçoando o que seria sua própria capacidade para primeiro ataque naquelas regiões fronteiriças. Qualquer simples desconfiança de que a OTAN tente iniciar uma contagem regressiva na Polônia, nos Bálticos ou no Mar Negro pode ser suficiente para empurrar a Rússia a atacar.
Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin refutou imediatamente a conversa de Trump e Bolton, de que a Rússia estaria violando o Tratado Nuclear ‘Médio’: “Tanto quanto compreendemos, os EUA tomaram uma decisão, e iniciarão os procedimentos formais para se retirarem desse tratado em futuro próximo.”
Quanto à decisão dos russos, tudo que é preciso saber é parte da intervenção detalhada de Putin no Valdai Economic Forum. Essencialmente, Putin não trouxe qualquer notícia extraordinária –, mas claro lembrete de que Moscou atacará em resposta a qualquer provocação que se configure como ameaça ao futuro da Rússia.
Os russos, nesse caso, “morreriam como mártires” e a resposta a qualquer ataque seria tão rápida e tão brutal que os atacantes “morreriam como cachorros”.
A linguagem dura pode não ser precisamente diplomática. Mas reflete a total exasperação contra os conservadores norte-americanos capazes de se fazerem de vendedores ambulantes da absurda noção de uma guerra nuclear “limitada”.
A linguagem muito dura também reflete a certeza de que, seja qual for o grau de escalada em que trabalhem o governo Trump e o Pentágono, não neutralizará os mísseis hipersônicos russos.
Tudo isso considerado, não surpreende que os diplomatas da União Europeia, tentando aliviar o próprio desconforto, reconheçam que tudo aí, no fim, tem a ver com a doutrina da Dominação de Pleno Espectro e a necessidade de manter em operação o massivo complexo militar-industrial-de vigilância dos EUA.
Mesmo que o relógio continue a tiquetaquear cada vez mais perto da meia-noite.*******
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Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..
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http://sakerlatam.es/estados-unidos/quem-se-beneficia-do-fim-do-tratado-nuclear-medio/