Caro Refaat,
Não estamos em silêncio. Estamos sendo silenciados. Os estudantes estadunidenses que, durante o último ano acadêmico, montaram acampamentos, ocuparam prédios, fizeram greves de fome e se manifestaram contra o genocídio, foram recebidos neste outono com uma série de regras que transformaram os campi universitários em gulags acadêmicos. Entre a minoria de acadêmicos que ousaram se pronunciar, muitos foram sancionados ou demitidos. Profissionais da saúde que criticam a destruição em massa de hospitais, clínicas e os assassinatos direcionados de trabalhadores da saúde em Gaza foram suspensos ou demitidos das faculdades de medicina, com alguns enfrentando ameaças de revogação de suas licenças médicas.Jornalistas que relatam o massacre em massa e expõem a propaganda israelense foram tirados do ar ou demitidos de suas publicações. Empregos foram perdidos por causa de postagens nas redes sociais. O pequeno punhado de políticos que condena os assassinatos viu milhões de dólares serem gastos para afastá-los de seus cargos. Algoritmos, shadow banning, desmonetização e deplatforming – tudo isso eu experimentei – são usados para nos marginalizar ou banir em plataformas digitais. Um sussurro de protesto, e somos apagados.
Nenhuma dessas medidas será revertida quando o genocídio terminar. O genocídio é o pretexto. O resultado será um enorme passo em direção a um estado autoritário, especialmente com a ascensão de Donald Trump. O silêncio se expandirá, como uma grande nuvem de gás sulfuroso. Engasgamos com palavras proibidas. Eles mataram você. Estão nos estrangulando. O objetivo é o mesmo. Apagamento. Sua história, a história de todos os palestinos, não deve ser contada.
Os sionistas e seus aliados não têm coisa alguma em seu arsenal além de mentiras, censura, campanhas difamatórias e violência, os instrumentos brutos dos condenados. Mas eu tenho em minhas mãos a arma que, no final, os derrotará: seu livro, If I Must Die: Poetry and Prose [Se Eu Devo Morrer: Poesia e Prosa].“Estórias ensinam a vida,” você escreveu, “mesmo que o herói sofra ou morra no final.”
Escrever, você dizia aos seus alunos, “é um testemunho, uma memória que sobrevive a qualquer experiência humana, e uma obrigação de se comunicar conosco mesmos e com o mundo. Vivemos por uma razão: para contar histórias de perda, sobrevivência e esperança.”
Faz um ano desde que um míssil israelense atingiu o apartamento no segundo andar onde você estava abrigado. Você vinha recebendo ameaças de morte há semanas por contas israelenses online e por telefone. Já havia sido deslocado várias vezes. No final, fugiu para a casa de sua irmã no bairro de Al-Sidra, na Cidade de Gaza. Mas você não escapou de seus caçadores. Foi assassinado junto com seu irmão Salah, uma criança dele, sua irmã e três filhos dela.Você escreveu seu poema “If I Must Die” [Se Eu Devo Morrer] em 2011. Ele foi republicado um mês antes de sua morte. Foi traduzido para dezenas de idiomas. Você o escreveu para a sua filha, Shymaa. Em abril de 2023, quatro meses após a morte dela, Shymaa foi assassinada em um ataque aéreo israelense junto com seu marido e seu filho de dois meses, seu neto, que você nunca conheceu. Eles haviam buscado refúgio no prédio da organização de caridade internacional Global Communities.
Você escreve para Shymaa:
Se devo morrer,
você deve viver
para contar a minha história
para vender as minhas coisas
para comprar um pedaço de pano
e alguns barbantes,
(faça-o branco, com uma longa cauda)
para que uma criança, em algum lugar de Gaza,
olhando para o céu
esperando pelo seu pai que partiu em uma explosão —
e não se despediu de ninguém
nem da sua carne
nem de si mesmo —
veja a pipa, a minha pipa que você fez, voando lá em cima
e pense por um momento que um anjo está lá
trazendo o amor de volta.
Se devo morrer,
que traga esperança,
que seja um conto.
Você se juntou aos poetas martirizados. O poeta espanhol Federico García Lorca. O poeta russo Osip Mandelstam. O poeta húngaro Miklós Radnóti, que escreveu os seus versos finais em uma marcha da morte. O cantor e poeta chileno Víctor Jara. O poeta negro Henry Dumas, morto pela polícia de Nova York.
Você se junta aos palestinos martirizados, aos pais, filhos, esposas, maridos e crianças que, como você, foram arrancados de suas famílias e de nós. Eles e você são a memória viva.
Seus assassinos, que controlam as narrativas e os artefatos da história, não são os donos do passado. Eles têm o poder da força, mas você tem o poder do espírito. Eles são os sepultadores; você é o semeador. Suas palavras resistem.
Os poetas martirizados falam com uma intensidade particular. Suas palavras são pressentimentos, prenúncios de seus próprios destinos. Eles canalizam o sofrimento humano universal, expressando-o em uma beleza pura, vulnerável e atemporal. Eles mantêm a fé na vida mesmo enquanto se dirigem para a morte.
Seus assassinos queriam apagar o seu trabalho. No entanto, cada poema que você escreveu é um grito de indignação, uma celebração da dignidade humana e um chamado à resistência.
Você era uma ameaça porque, como você escreveu, “poesia é arma e poesia é vida”.
Lembro-me de como você ria quando conversávamos. Você zombava dos seus opressores. Você estava determinado a viver. Você dizia que a sua vida era sagrada, mas não mais sagrada do que a vida dos outros. Você se recusou a odiar. Você confiava no poder da verdade.
Você disse que o que mantinha você e a sua família vivos era a capacidade de criar beleza, de preservar a poesia, as músicas e as danças palestinas.
Você resistiu ao apagamento que, ao longo de décadas, procurou destruir a memória palestina, reescrever a sua história, confiscar as suas propriedades e vilarejos, demolir as suas casas e escolas, roubar os seus poetas e escritores e transformar os palestinos em estranhos na terra onde viveram por milênios.
O poeta martirizado palestino Mahmoud Darwish escreveu:
Levante o peso da sua terra para que o pássaro dos pássaros possa pousar.
A terra da sua terra é mais leve do que uma pena.
Com o peso de suas mãos, proteja o seu pão da aridez do rio.
Você escreveu para preservar a alma de seu povo.
Em seu poema “Before I Die” [Antes Que Eu Morra], você escreve:
Antes de morrer,
Quero ver a minha mãe sorrir
ao sair do banheiro
me perguntando se algum dia
poderei pagar as contas de água e luz.
Seus assassinos não são apenas os seus assassinos, mas os assassinos de todos os poetas, todos os sonhadores, todos os que amam e celebram a vida.
Estamos sob ataque, você e eu. Mas o ataque é maior que nós. Ele é contra a humanidade. Ele visa destruir a nossa capacidade de resistir, a nossa dignidade e a nossa capacidade de sonhar.
Você me ensinou a não ceder ao ódio. Você me ensinou a escrever para preservar a memória. Você me ensinou que “o homem pode ser destruído, mas não derrotado”.
Você está conosco, Refaat. Está sempre conosco.
Chris Hedges,
Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prémio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.
https://www.brasil247.com/blog/carta-para-refaat-alareer