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Requiem pelo Olimpismo

Ao que acontece na capital francesa não lhe chamem Jogos Olímpicos. É antes um megafestival desportivo internacional viciado sob os pontos de vista competitivo e ético muito antes de iniciado.

por José Goulão (PT)

Abril Abril - 29 de julho, 2024

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Créditos / @Olympics

Paz à sua alma, que aliás já pouco tinha de pura e virginal. Chamem-lhe o que quiserem, mas Jogos Olímpicos não. Podem ser os jogos da mesquinhez, os jogos da segregação, os jogos da guerra, os jogos da cobardia, os jogos da viciação, os jogos da exclusão, os jogos da humilhação, os jogos da negação, os jogos da ostentação, os jogos de qualquer coisa que nada tenha a ver com a nobreza do ideal pregado pelo barão Pierre de Coubertin e muito menos com o espírito dos rituais de paz e cultura da Grécia antiga; mas Jogos Olímpicos não.

O chamado «espírito olímpico» é, há muito, uma fraude, principalmente desde que foi assaltado como veículo promocional das marcas das mais poderosas transnacionais globalizantes. Apesar disso, o espaço dos atletas, dos técnicos, treinadores e outros intervenientes na dinâmica competitiva, dos juízes e árbitros, dos voluntários e também dos espectadores parecia imune à corrupção organizativa e patrocinadora.

Cultivavam a emoção, o espectáculo, a atracção, a amizade na rivalidade e a superação humana que o desporto, ou melhor, os desportos também proporcionam. Existem, claro, o doping, a batota, os jogos de influências, as gritantes diferenças de meios de preparação e competitivos, mas as fantásticas façanhas, quantas delas tornadas lendárias ao longo dos 128 anos dos chamados «Jogos Olímpicos da Era Moderna», alimentam memórias, enchem estádios, pavilhões e piscinas, fazem até com que sejam batidos recordes das audiências televisivas.

Também é verdade que vários episódios anteriores negando o chamado «espírito olímpico» e os princípios refundadores  das olimpíadas proclamados pelo barão Pierre de Coubertin e seus pares, na última década do século XIX, mancharam profundamente esta gigantesca reunião desportiva; uma «celebração da humanidade, plataforma para a paz e a compreensão», como a definiram os que quiseram recriar na modernidade os ideais de convívio, fraternidade, tradições, rituais e bons exemplos dos Jogos de há quase 3000 anos.

De Hitler ao nazi-banderismo ucraniano

A celebração dos Jogos de 1936 na Alemanha nazi, através dos quais o Comité Olímpico Internacional de então contribuiu para a promoção de Hitler, do seu segregacionismo e da sua estética imperial; o boicote montado pelos Estados Unidos de Reagan e respectivos súbditos na Europa Ocidental contra os Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, como início da neoliberalização do Movimento Olímpico; a contemporaneidade de várias edições dos Jogos com as guerras ocidentais desencadeadas pelo Ocidente na Jugoslávia, no  Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, sem que fosse encarada a declaração de qualquer «trégua olímpica»; o traiçoeiro e cobarde aproveitamento da concentração da atenção mundial na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 8 de Agosto de 2008, para o então regime americanizado da Geórgia invadir o território russófono da Ossétia do Sul, provocando uma chacina de mais de 2000 pessoas apenas durante as primeiras horas; a inexistência de uma declaração de trégua na guerra na Ucrânia agora que atletas de quase todo o mundo se juntam em Paris – todos estes acontecimentos são apenas alguns exemplos de como os poderes políticos dominantes internacionalmente espezinham a autonomia do Comité Olímpico Internacional e a intenção manifestada por Coubertin de que os Jogos sejam «uma celebração da linguagem universal que transcenda fronteiras e culturas». A arbitrária «ordem internacional baseada em regras» deitou as mãos aos Jogos, arrasa princípios, mina as melhores intenções e asfixiou o espírito olímpico.

No ano de 424 a.C., no luminoso século V de Platão, Aristóteles, Sócrates e outros lendários filósofos da Grécia clássica, pela primeira vez não foi declarada a «trégua sagrada» própria dos Jogos Olímpicos devido aos receios de uma invasão de Esparta, que afinal não aconteceu. A «trégua sagrada» olímpica foi concebida não apenas por razões místicas – os Jogos eram dedicados a Zeus –, mas também para que atletas, juízes e organizadores pudessem deslocar-se a Atenas e regressar em segurança aos seus lugares de origem.

Em 424 a.C. registou-se uma única excepção; a regra era a declaração de uma trégua de quatro em quatro anos. Nos tempos que correm os mentores olímpicos ignoram ostensivamente a tradição da trégua; a excepção de antanho transformou-se em regra na modernidade.

Os Jogos Olímpicos da Antiguidade Clássica, que se iniciaram no ano de 776 a.C., foram proibidos e extintos 1169 anos depois, em 393 da nossa Era, pelo imperador cristão romano Teodósio I, por serem um acontecimento «pagão». Vem de longe a tendência da «civilização cristã e ocidental» para adulterar e exterminar todos os acontecimentos criados dentro de um espírito e princípios que, na prática, contrariam a sua maneira de olhar o mundo, a sua incontida vocação dominadora, colonial e imperial.

Mesquinhez, segregação, exclusão

E chegámos aos Jogos de Paris 2024. Escutam-se as conversas, os comentários, as ladainhas, os lugares-comuns rotineiros, palavras amontoadas sobre palavras nas quais se omite deliberadamente e tudo se faz para apagar o pecado original desta edição: a exclusão dos atletas da Federação Russa e da Bielorrússia, com excepção dos que se declarem publicamente contra os seus presidentes e outros órgãos de poder livremente eleitos. Desportistas esses que, ainda assim, não poderão competir com o equipamento da sua selecção, escutar o hino e ver subir a bandeira do seu país no caso de ganharem as provas em que participam.

São muitas e variadas as aberrações desta decisão que humilha e fere de morte a «homenagem ao espírito humano e à sua capacidade de grandeza» que o barão Pierre de Coubertin definira como uma das regras de ouro dos Jogos Olímpicos por ele idealizados.

Num plano um pouco marginal, mas com uma significativa carga de perversidade, está o facto de os atletas russos e bielorrussos que participam nos Jogos não precisarem de inimigos se estes são os seus amigos na «civilização» do lado de cá. Ora, se os governos ocidentais, graças ao seu controlo do Comité Olímpico Internacional (COI), exigem aos atletas que afrontem Putin, Lukachenko e o poder de Moscovo e Minsk, por eles considerados ditatoriais, sabem que os cidadãos russos e bielorrussos presentes nas competições poderão ser alvo de supostas represálias ao regressarem aos seus países. Das duas uma: ou os políticos da NATO e da União Europeia sacrificam os atletas dos países proscritos aos seus objectivos de propaganda de guerra ou então nem eles próprios acreditam no que dizem quanto ao cariz antidemocrático dos sistemas políticos punidos.

A propósito deste comportamento sem um mínimo de coerência, suponhamos, por redução ao absurdo, que o COI assumia a independência que está nas suas normas e, partindo do princípio de que o jogo político assim viciado era incontornável, impunha sanções aos atletas de países como os Estados Unidos, a França, a Alemanha e a Ucrânia por serem também responsáveis pela guerra ucraniana, designadamente sabotando as possibilidades de negociações de paz, alimentando o conflito com armamento e violando compromissos assumidos, como os Acordos de Minsk. Neste quadro apenas seriam admitidos nos Jogos os atletas que se declarassem publicamente contra o regime expansionista e belicista norte-americano, contra a autocracia da NATO e da União Europeia, assente em órgãos antidemocráticos – porque não eleitos – como a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. A dimensão do atrevimento e do escândalo correspondente seria suficiente para exonerar o COI ou mesmo cancelar os Jogos.

Os «nossos» dirigentes já nem têm a noção do ridículo e opõem-se deliberadamente à própria Carta Olímpica, também rotundamente desrespeitada pelo COI.

O texto da Carta é claro, preciso, redigido de maneira a não ser passível de dúvidas em relação ao chamado «espírito olímpico». No capítulo 2 do documento, dedicado «à missão e ao papel do COI», estipula-se no parágrafo 5.º que este organismo deve actuar «para o reforço do Movimento Olímpico Internacional (MOI), manter e promover a sua neutralidade política e preservar a autonomia do desporto»; e no artigo 6.º exige-se ao COI que actue contra «qualquer forma de discriminação afrontando o Movimento Olímpico».

Pierre de Coubertin resumiu estes conceitos numa frase simples, grosseiramente violada pelos agentes que formataram os Jogos Olímpicos de Paris: «Nós (no COI) não somos conselheiros técnicos de política, somos apenas os curadores do ideal olímpico».

Não seria necessário ir mais longe para concluir que os Jogos Olímpicos de Paris são uma fraude.

O castigo imposto aos atletas russos e bielorrussos pelo Ocidente colectivo e o COI como sua correia de transmissão revela também a mesquinhez própria dos arrogantes, mas inseguros, desportivamente medrosos, que não têm capacidade nem coragem para fazer valer as suas razões e recorrem a constantes artimanhas, neste caso as mais primárias e denunciáveis, para impor a força através da arbitrariedade. Que interessa a estes falsificadores contumazes, na política e, por arrastamento, no desporto, que um dia, em 1925, o barão Pierre de Coubertin tenha dito que «os Jogos são globais, todos os competidores podem participar, sem debate»; ou que «os Jogos Olímpicos são para o mundo e todas as nações devem ser admitidas neles»?

Além de fraudulentos, devido à falta de respeito pelo olimpismo, os Jogos de Paris são igualmente uma manifestação de corrupção desportiva – e que não é insignificante.

A responsabilidade, naturalmente, não é dos atletas, que regra geral desejam competir sejam quais forem os adversários, mesmo os que potencialmente lhes são superiores. Por isso, gostam de desporto e o praticam ao mais alto nível.

A corrupção desportiva está no facto de serem afastados, sem qualquer infracção competitiva ou de outro tipo, alguns dos melhores atletas e equipas do mundo, o que desvaloriza as vitórias, retira prestígio e valor às medalhas, prejudica o espectáculo e influi na qualidade de algumas das provas individuais e colectivas. A Rússia é normalmente um país dos mais medalhados, com capacidade para se situar no primeiro lugar da classificação oficiosa por número de galardões. Entre 1994 e 2020 os atletas russos conquistaram 426 medalhas, 149 das quais de ouro, números que apenas são ultrapassados por competidores dos Estados Unidos. Um número relevante de troféus olímpicos será assim distribuído este ano por desportistas que, em circunstâncias normais, não os conquistariam. Isto significa viciação, corrupção competitiva.

Na gíria desportiva aplicada às vitórias com mérito ferido ou discutível costumam arrumar-se os assuntos incómodos dizendo que para a história o que conta é quem ganhou e não quem faltou, foi afastado ou ficou a queixar-se, por exemplo, de uma grande penalidade não marcada, ainda que legítima. Será assim? Ou o vencedor, pelo menos, lembrar-se-á de que competiu sem os principais rivais e a realidade poderia ter sido outra?

O genocídio é modalidade olímpica?

Os atletas russos e bielorrussos são alvo de restrições graves e anti-normas olímpicas porque os seus governos estão envolvidos numa agressão militar que tem como alvo o poder vigente na Ucrânia; o que acontece depois de o regime ucraniano nazificado pelo golpe de 2014 promovido pelos Estados Unidos e pela União Europeia – que derrubou um presidente eleito democraticamente – ter praticado uma agressão militar de mais de oito anos contra as populações de maioria russa dos territórios leste e sudeste do país e ter determinado a segregação cívica de todos os cidadãos que não sejam considerados ucranianos «puros».

As deliberações do COI sobre o assunto, tomadas sob pressão dos governos dos países ocidentais, decorre, mais uma vez, de uma política «diplomática» reconhecida e elogiada pelo ex-«ministro» não-eleito dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, Josep Borrell, numa prelecção aos alunos da Universidade de Oxford: o recurso a um critério de avaliação dos assuntos internacionais segundo dois pesos e duas medidas. O ex-«ministro», um fundamentalista do fascismo liberal, explicou que para a «civilização» ocidental a política de dois pesos e duas medidas é a arte «diplomática» de distinguir entre as violações do direito internacional que são «do nosso interesse» e as que são do «interesse dos inimigos». Ou o «nosso jardim» contra a «selva» que o cerca e ameaça.

A partir daqui tudo é possível: a participação olímpica de atletas de Marrocos, apesar de o seu governo praticar uma política de ocupação, violência e violações permanentes dos direitos humanos contra o povo soberano do Saara Internacional; e, sobretudo, que possam estar presentes em Paris os atletas de Israel, país responsável há 75 anos pelo genocídio e a limpeza étnica do povo palestiniano, cujos métodos são ilustrados pela acção de extermínio em curso em Gaza – um indício forte da tentativa para alcançar uma «solução final» do problema.

O comportamento do Estado sionista foi definido como «um genocídio» pelo Tribunal Internacional de Justiça, sem discordância do Tribunal Penal Internacional, mas a gravidade do significado destas posições em nada incomoda Israel, a União Europeia e os Estados Unidos, país que abriu agora as portas do Congresso para um discurso exaltando a criminalidade sionista, e ameaçando até Washington, proferido pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Em Paris, durante o ensaio para a cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos e um jogo de futebol ouviram-se assobios contra a presença sionista, mas esse é o lado para o qual o COI e o Ocidente colectivo dormem melhor – e sem problemas de consciência. Situação equivalente registou-se no último Festival da Eurovisão.

A participação de atletas israelitas, alguns deles – ao contrário dos russos – intervenientes activos no genocídio ao serviço das Forças de Defesa de Israel, é o golpe fatal naquilo que restava do olimpismo, uma demonstração cabal da hipocrisia dos dirigentes ocidentais e do COI, uma declarada falta de respeito pelos atletas que competem lealmente nos Jogos, um insulto à inteligência da opinião pública de todos os países do mundo.

O barão Pierre de Coubertin definiu os Jogos Olímpicos, relembra-se, como «a celebração da humanidade, uma plataforma para a paz e a compreensão».

O respeito pelas palavras e as ideias do fundador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna não é coisa que motive os actuais dirigentes olímpicos e os seus tutores. Coerência e palavras leva-as o vento; e o olimpismo foi liquidado pelo espírito de guerra e genocida de quem diz defendê-lo.

Um teste do Estado policial

Paris está em estado de sítio. Os cidadãos necessitam de cartões especiais para acederem a certas regiões da cidade, a lendária cultura secular parisiense foi cancelada através do encerramento dos museus e outros espaços de fruição humanista, o número de agentes policiais armados nas ruas é muito superior ao dos atletas participantes nos Jogos, por este andar será superior aos residentes na cidade, muitos deles em fuga para lugares onde a imagem de um ambiente de guerra passe apenas na TV; em suma, o medo tem medo do medo.

Os poderes neoliberais e autoritários da União Europeia não perdem uma oportunidade para testarem a montagem de mecanismos inerentes a um Estado policial. A violência urbana serviu de argumento ao governo sueco para definir áreas e bairros de acesso restrito em Estocolmo, guetos destinados sobretudo a comunidades imigrantes, autênticas cidades virtualmente muradas; os Jogos Olímpicos servem agora para os chamados «meios de segurança» exercitarem o uso da vigilância intensiva, palmo a palmo, considerarem cada cidadão um potencial delinquente, quiçá um agente de Putin, escrutinarem movimentações de pessoas, barrarem espaços devido a simples suspeitas, ou mesmo intuições. A arbitrariedade policial passou a ser a regra, o controlo das liberdades tornou-se lei.

Em Paris, como durante a pandemia de Covid, governos assumem estados de excepção, por vezes não declarados, com base em situações que consideram oportunas para a sua estratégia de neoliberalismo autoritário, principalmente as relacionadas com preocupações essenciais dos cidadãos, como a saúde pública e a segurança pública. Na capital francesa só não há confinamento imposto, mas acaba por ser voluntário devido ao ambiente ameaçador que se vive nas ruas. É a Cidade Luz mergulhada nas trevas do culto do medo.

Ao que acontece na capital francesa não lhe chamem Jogos Olímpicos. É antes um megafestival desportivo internacional viciado sob os pontos de vista competitivo e ético muito antes de iniciado; um acontecimento gigantesco com laivos de feira popular e de certame comercial financiado e patrocinado pela rentável ostentação do poder transnacional e sem controlo de velhos e novos-ricos para quem todo o mundo é seu. Pierre de Coubertin, há muito mais de um século, encarou o desporto como «uma escola de virtudes». Vejam no que isso deu, por obra da nada virtuosa «civilização ocidental».

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.

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