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Benvindos ao inferno: A cidade mineira de La Rinconada, no Peru

por Andre Vltchek | RT

Resistir.info - 27 de março, 2019

https://www.resistir.info/peru/rinconada_mar19.html


A majestosa aproximação de La Rinconada – através do lixo © Andre Vltchek

Enquanto o Ocidente ataca a Venezuela, um país que melhorou a vida de muitos de seus cidadãos, são ignorados os horrores que ocorrem no Peru e em outros países “pró-mercado” na América Latina.

La Rinconada, fica a mais de 5 000 m acima do nível do mar, é a maior instalação mineira do mundo; uma cidade do ouro, uma concentração de miséria numa comunidade de cerca de 50 mil habitantes, muitos dos quais estão envenenados pelo mercúrio. Um lugar onde inúmeras mulheres e crianças são violadas regularmente, onde a lei e a ordem colapsaram há já bastante tempo, onde jovens são enviadas para depósitos de lixo para “reciclar” resíduos terrivelmente malcheirosos e onde quase todos os homens trabalham em condições brutais, tentando economizar algum dinheiro, mas onde a maioria simplesmente arruína a sua saúde, mal conseguindo manter-se viva.

Decidi viajar para La Rinconada precisamente nestes dias, quando a Venezuela socialista luta pela sua sobrevivência. Dirigi-me até lá enquanto as elites europeias na Bolívia tentavam caluniar o enormemente popular e bem-sucedido presidente da Bolívia, Evo Morales, enquanto as eleições se aproximam.

Como em tantos lugares no turbo-capitalista e pró-ocidental Peru, La Rinconada é um tremendo aviso: a Venezuela e a Bolívia eram assim antes de Hugo Chávez e Evo Morales. É para onde Washington quer que toda a América Latina retorne.


Benvindo à concessão mineira “La Mona” © Andre Vltchek

Como aquelas enormes favelas sem esperança que cercam Lima, La Rinconada deveria ser um apelo para a luta. Há uns cinco anos pensámos que a América Latina nunca mais voltaria a ser desta forma. Achávamos que sim, antes que as forças de extrema-direita em Washington conseguissem reagrupar e implantar velhos dogmas da Doutrina Monroe nas linhas de frente, contra a independência e o socialismo latino-americanos.


Um casal de habitantes © Andre Vltchek

Um motorista recusou-se a levar-me para La Rinconada, sozinho. Para mim, quanto menos pessoas envolvidas, melhor. Mesmo no Afeganistão, trabalho sozinho, apenas com meu confiável motorista pashtun. Mas aqui é diferente: a reputação de La Rinconada é que “você pode entrar, mas nunca conseguirá sair”. Sou informado sobre a nova máfia que lá opera e sobre a situação de segurança totalmente deteriorada. No final, não tive escolha a não ser aceitar uma tripulação de dois homens: um motorista e uma pessoa “familiarizada com a situação relacionada com as minas peruanas”.

Saímos da cidade de Puno pela manhã, passando pelas magníficas margens do Lago Titicaca, que a 3 812 metros de altitude, é o lago navegável mais alto do mundo, compartilhado pelo Peru e pela Bolívia.

“Do lado peruano, o lago está sendo envenenado por mercúrio”, explicou Freddy, um especialista em mineração. “La Rinconada e suas minas de ouro ainda estão muito distantes, mas o rio Ramis agora está a trazer água contaminada de toda a área, particularmente da cidade mineira de Ananea, diretamente para o lago”.


A natureza nada vale para os escavadores de ouro © Andre Vltchek

Existe uma espécie de auto-estrada entre Puno e Juliaca, um “centro de atividade comercial” na região; na verdade, uma desordenada e poeirenta cidade cheia de favelas. Logo a seguir a Juliaca, encontramos apenas miséria rural.

Trabalhei no Peru durante a chamada ‘Guerra Suja’, travada entre duas guerrilhas comunistas (o maoísta Sendero Luminoso e o marxista MRTA pró-cubano) e o Estado peruano, que terminou oficialmente em 1992. Desde então, a miséria rural do Peru não mudou: moradias feitas de terra, os rostos desesperados dos aldeões e quase nenhum serviço social permaneceu.


Mineiros fazem uma pausa para descanso © Andre Vltchek

Do outro lado da fronteira, na Bolívia socialista, a vida no campo melhora continuamente. Mas não aqui; não no Peru. Assim, dezenas de milhares de homens ansiosos estão “indo para cima”, atingindo alturas tremendas, arriscando suas vidas e arruinando a sua saúde, por pelo menos uma pequena probabilidade de encontrar ouro e escapar à miséria endémica.

“Minha esposa salvou-me”, disse um motorista que, dois dias antes, me havia levado da fronteira boliviana de Desaguadero até à cidade peruana de Puno: “Eu estava totalmente falido. Nós acabávamos de ter um bebé. Eu não tinha ideia do que fazer. E assim, disse a minha família que ia para La Rinconada”.


Um inferno de zinco e alumínio © Andre Vltchek

Minha esposa levantou-se e disse: “Se você for, nunca mais voltará. E se fizer isso, você não será mais o homem que eu amo. Você fica em Puno e trabalha aqui. Eu também vou trabalhar. Haveremos de conseguir alguma forma de nos arranjarmos. Você não sabe: La Rinconada é uma sentença de morte”. Eu fiquei. Ela estava certa. Vi pessoas que foram e regressaram totalmente destruídas”.

Está a ficar frio. O nosso carro, com a suspensão muito deteriorada vai subindo aos solavancos, mas apesar de tudo vai indo. Quanto mais subimos, mais frio fica. Começou a chover, depois parou. A vista é magnífica, mas a paisagem está coberta de lixo. O rio está cheio de sujidade. Os lamas comem lixo, carros estão a ser lavados nos rápidos do rio e uma aldeia parece estar abandonada, transformada em cidade fantasma. Depois de mais de quatro horas de condução, de serpentear loucamente por desfiladeiros, as primeiras minas aparecem no horizonte. Mais sujidade, maquinaria primitiva e uma cidade mineira – Ananea.


As ruas da cidade © Andre Vltchek

A Sra. Irma, dona de um restaurante local, prepara café forte e folhas de coca embebidas em água quente, o melhor remédio para a doença da altitude. Ela é tagarela, percebendo que não representamos nenhum perigo:

“Às vezes, os mineiros de La Rinconada fogem para aqui. Ananea está um pouco abaixo e é mais seguro. Nós temos água. Lá, tudo é envenenado; por mercúrio e outras coisas horríveis. Você conhece a regra de como eles trabalham lá: durante 29 dias eles trabalham de graça e então, um dia por mês, eles podem apanhar o que encontram. É uma aposta: se tiverem sorte, ficam ricos durante um dia. Ou acham muito pouco ou nada. E mesmo se o conseguirem, à noite, pode ser-lhes roubado.”

Ela parece velha, maternal, compassiva, preocupada. Já viu de tudo, parece. Nós pagamos e continuamos a viagem.


A paisagem urbana © Andre Vltchek

Então, vemos: lagos enormes, amarelados, acastanhados, com fluxos que escorrem à superfície de compridas mangueiras azuis. Tudo está arruinado e envenenado. Freddy diz que há algumas novas tecnologias que poderiam ser usadas para extrair ouro, mas os mineiros daqui usam mercúrio, já que é mais barato. Máquinas primitivas estão funcionando, assim como na ilha indonésia de Kalimantan/Bornéu; lá, a mineração ilegal está envenenando rios poderosos, aqui está nivelando montanhas inteiras, criando grandes lagos e paisagens lunares a cerca de 5 000 metros de altitude.

Os guardas estão obviamente muito descontentes com a nossa presença. Ainda assim, consegui filmar e fotografar, e depois ainda nos dirigimos mais para cima. As pilhas de lixo aparecem. Atrás deles, duas imensas montanhas cobertas de neve. E uma irónica placa metálica: “Bem-vindo a La Rinconada, não despeje lixo”.


Cemitério coberto de lixo © Andre Vltchek

Tenho visto muito, em todos os continentes, mas La Rinconada é verdadeiramente “única”. Montanhas e vales estão pontilhados de barracas de metal com estruturas improvisadas. A sujeira está por todo lado. Não há abastecimento de água. A electricidade é escassa. O lixo cobre até as humildes campas de um cemitério local.

Na praça principal, o consumo de bebidas fortes prossegue. É perigoso fotografar aqui. Escondo-me; uso o zoom. Dois garimpeiros estão deitados de bruços, e alguém está a atirar comida para as suas bocas abertas, como se estivessem alimentando animais num jardim zoológico.


Mineiros caídos de bebados são alimentados à mão na praça principal © Andre Vltchek

A prostituição é desenfreada. As crianças fazem trabalhos estranhos. Num dos depósitos de lixo, pergunto a duas garotas sobre sua idade. “25”, vem a resposta pronta. Eu acho que 15, no máximo. Mas seus rostos estão cobertos.

“Quão perigoso é isto aqui?” Pergunto a um dos mineiros. Ele responde prontamente: “Muito perigoso, mas não temos escolha”.

“As pessoas sofrem acidentes no trabalho? Morrem?”

“Claro. Isso acontece com muita frequência. Todos assumimos riscos. Algumas pessoas sofrem ferimentos horríveis, outras morrem. Se não puderem ser tratadas, são levados para Ananea e, se tiverem sorte, para um hospital de Juliaca. Outros são deixados aqui para morrer. É a vida. Alguns são salvos, outros não.”

Será que condenam o capitalismo, o extremamente selvagem sistema pró-mercado adoptado no seu país?

Ouço a mesma resposta fatalista: “É a vida”.


Estas jovens afirmam ter 25 anos de idade © Andre Vltchek

Que sabem eles sobre a Bolívia? Sobre as grandes mudanças do outro lado da fronteira? Saberão que a cerca de 30 quilómetros daqui, “como o condor voa”, no lado boliviano, há a intocada reserva nacional? Alguns sabem que agora é muito melhor “lá”, na Bolívia. Mas eles não associam isso ao socialismo ou às políticas independentes e a favor das pessoas do presidente Evo Morales. E sabem muito pouco sobre a Venezuela.

Tudo o que sabem é que mal sobrevivem no Altiplano Andino e que estão a lutar pelas suas vidas aqui em La Rinconada.


A parte superior de La Rinconada © Andre Vltchek

Como na Indonésia, outro país de regime capitalista selvagem pró-ocidental, as pessoas aqui estão muito preocupadas com seus problemas fundamentais no imediato; eles não podem ser perturbados com pensamentos “abstractos” sobre o ambiente ou a ausência de lei.

“Não é apenas mercúrio”, disseram-me. “Tudo aqui está misturado: venenos relacionados à mineração, merda, lixo urbano…”

A altitude atinge-me fortemente: 4 000 metros em Puno é ruim; mais de 5 000 aqui é fatal. Duas pessoas seguram-me enquanto filmo à beira de uma ravina, para não cair.

De alguma forma, de uma maneira muito distorcida, reconheço que as vistas ao meu redor são lindas, impressionantes. Eu estou impressionado. Impressionado com a capacidade de os seres humanos sobreviverem sob quase todas as condições.


Após a mineração, restam as crateras © Andre Vltchek

Aqui praticamente tudo é ilegal. Mas centenas de milhões são produzidos e lavados.

As pessoas não ganham nada; quase nada. Um mineiro faz de 800 a 1.000 soles (cerca de 250 a 300 dólares) por mês. Empresas privadas e governo corrupto ganham milhares de milhões. Mais uma vez, a América Latina está ficando mais pobre. Mas o Ocidente não está pressionar para uma “mudança de regime” no Peru, no Paraguai ou no Brasil. É assim que é suposto ser. É assim que Washington gosta.

Outro mineiro ousa falar comigo: “A maior parte do ouro vai para o exterior. Mas antes que isso aconteça… Se os gangues não nos roubam, os mineiros, à noite, muitas vezes assassinam pequenos intermediários, aqueles que compram ouro directamente a nós”.

Você tem medo?

“Toda a gente aqui tem medo”, confirma. “Assustado e doente. Isto é o inferno”.

“É como uma guerra…” digo eu.

“É uma guerra”, concorda.

Mas quase ninguém vem aqui para relatar e investigar. A vida de um pobre peruano não vale nada; nada mesmo. Filmei, documentei… É tudo que posso fazer por eles. E pela Bolívia e pela Venezuela.


A árdua batalha pela vida © Andre Vltchek

Enquanto trabalho, sinto que o inferno está próximo, está aqui. Não é abstracto, religioso: é real. Mas poderia e deveria cessar.

Tradução de DVC

Andre Vltchek é filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu guerras e conflitos em dezenas de países. Seus livros mais recentes são o romance Aurora e duas obras de não ficção: Exposing Lies Of The Empire e Fighting Against Western Imperialism . Seu sítio web é andrevltchek.weebly.com.

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