Plutocracia.com

Bookmark and Share

Rodovia Pamir: a estrada do teto do mundo

“Essas são as antigas Rotas da Seda às quais os Talibã jamais conseguirão chegar.”

por Pepe Escobar, da Rodovia Pamir, Tadjiquistão | Asia Times

Bacurau - 19 de dezembro, 2019

https://bbacurau.blogspot.com/2019/12/rodovia-pamir-estrada-do-teto-do-mundo.html

Parte 1 de 2


Diretamente da Antiga Rota da Seda: uma caravana de camelos no Corredor Wakhan afegão. Foto: Pepe Escobar / Asia Times

Pode-se dizer que essa viagem é, dentre todas as viagens por terra, em todo o planeta, a viagem definitiva. Marco Polo viajou essa viagem. Todos os lendários exploradores da Rota da Seda também a viajaram. Viajar pela Rodovia Pamir, ida e volta, com um inverno rigoroso a se aproximar, podendo apreciar a viagem plenamente, em silêncio e solidão, não oferece só um mergulho histórico nas volutas da antiga Rota da Seda, mas oferece também uma rápida visada do que o futuro pode estar trazendo, sob a formato das Novas Rotas da Seda.

É viagem embebida da magia da história antiga. Os tadjiques traçam a própria história desde raízes ancestrais, nas tribos sogdianas, bactrianas e partas. Indo-iranianos viveram na Báctria (“país de mil cidades”) e na Sogdiana, dos séculos 6º-7º a.C. ao século 8º d.C., e constituem até 80% da população da república, muito orgulhosos da própria herança cultural persa e aliados de povos falantes do idioma tadjique no norte do Afeganistão e na região em torno de Tashkurgan, em Xinjiang.

Prototadjiques e ainda antes deles, sempre estiveram nas franjas de incontáveis impérios – dos aquemênidas, dos cuchanos e sogdianos aos greco-bactrianos, do emirado de Bucara e até da URSS. Hoje muitos tadjiques vivem no vizinho Uzbequistão – que passa atualmente por um boom econômico. Por efeito do traçado alucinado de fronteiras feito por Stálin, as lendárias Bucara e Samarcanda – cidades quintessencialmente tadjiques – tornaram-se uzbeques.

O território da Báctria incluiu terras que são hoje o norte do Afeganistão, o sul do Tadjiquistão e o sul do Uzbequistão. A capital foi a lendária Bactra, como a conheciam os gregos, que levava o título informal de “mãe de todas as cidades”.


Montanhas Pamirs Ocidentais: Estrada modernizada pela China, Rio Pyanj; Tadjiquistão à esq., Afeganistão à dir.; ao fundo, o Hindu Kush. Foto: Pepe Escobar

Todos lembramos que Alexandre o Grande invadiu a Ásia Central em 329 a.C. Depois de ter conquistado Cabul, marchou para o norte e cruzou o rio Amu-Darya. Dois anos depois, derrotou os sogdianos. Entre os prisioneiros capturados estava um nobre bactriano, Oxyartes e sua família.

Alexandre tomou por esposa a filha de Oxyartes, a linda Roxanne, a mulher mais bela de toda a Ásia Central. Depois fundou a cidade de Alexandria Eskhata (“A mais distante”), que é hoje Kojand, no norte do Tadjiquistão. Na Sogdiana e na Báctria, Alexandre construiu 12 Alexandrias, aí incluídas a Alexandria Ariana (hoje Herat, no Afeganistão) e a Alexandria Margiana (hoje Mary, antes Merv, no Turcomenistão).

Em meados do século 6º, todas essas terras foram divididas entre os caganatos turcomenos, o Império Sassânida e uma coalizão de reis indianos. O que jamais mudou foi a ênfase na agricultura, no planejamento de cidades, no artesanato, comércio, forjaria, cerâmica, mineração e manufatura do cobre.

A rota de caravanas pelas montanhas Pamirs – de Badakshan até Tashkurgan – é material do qual se constroem lendas no ocidente. Marco Polo descreveu-a como “o local mais alto do mundo”. De fato: as Pamirs são conhecidas entre os persas como Bam-i-Dunya (que se traduz, apropriadamente como “teto do mundo”).

Os picos mais altos do mundo podem estar nos Himalaias. Mas nas montanhas Pamirs está o mais alto cruzamento orográfico da Ásia, do qual se irradiam as cordilheiras mais altas do mundo: do Hindu Kush a noroeste, de Tian Shan a nordeste e as montanhas Karakoram e Himalaias a sudeste.

A maior encruzilhada de impérios

As Pamirs são o limite sul da Ásia Central. E, para encurtar a discussão, são a região mais fascinante de toda a Eurásia: é absolutamente selvagem, coberta de montanhas vertiginosas, picos cobertos pela neve, rios que correm por fendas e gretas, geleiras imensas – espetáculo maior que a vida, em branco e azul, com sobretons de cinza pétreo.

É também a mais impressionante encruzilhada de impérios – inclusive o lendário Grande Jogo russo-britânico do século 19. Não surpreende: imaginem uma encruzilhada em altitude, onde se encontrem e cruzem-se Xinjiang, o Corredor Wakhan no Afeganistão e Chitral no Paquistão. Pamir pode significar “alto vale ondulante”. Mas as montanhas Pamirs Orientais, sem sinal de existência humana, bem poderiam estar na lua – cruzadas por menos pessoas que carneiros de Marco Polo de chifres curvos, íbex e iaques.

Incontáveis caravanas de mercadores, unidades militares, peregrinos religiosos também tornaram conhecida a Rota da Seda das Pamirs como “a estrada das ideologias.” Exploradores britânicos como Francis Younghusband e George Curzon alcançaram o Oxus superior e mapearam desfiladeiros de altitude rumo à Índia britânica. Exploradores russos como Kostenko e Fedchenko andaram pelo Alai e os altos picos das Pamirs norte. A primeira expedição russa chegou lá em 1866, comandada por Fedchenko, que descobriu e emprestou o próprio nome a uma imensa geleira, das maiores do mundo. Impossível andar para lá, com o inverno já tão próximo.

E há então os lendários exploradores da Rota da Seda, Sven Hedin (em 1894-5) e Aurel Stein (1915), que exploraram aquele legado histórico.


Caminhão-contêiner chinês, avança pelas curvas das montanhas Pamirs Ocidentais. Foto: Pepe Escobar

A versão Rodovia Pamir da Rota da Seda foi efetivamente construída pela União Soviética entre 1934 e 1940, seguindo, como seria de prever, as pegadas das antigas caravanas. O nome da região ainda é soviético: Oblast Autônomo Gorno-Badakhshan [ing. Gorno-Badakhshan Autonomous Oblast]. Para viajar pela rodovia, é preciso obter autorização desse GBAO.

Por não menos de 2.000 anos – de 500 a.C. até o início do século 16 – caravanas de camelos transportavam não só seda, do Oriente para o Ocidente, mas também objetos de bronze, porcelana, lã e cobalto. Há nada menos que quatro diferentes ramos da Rota da Seda no Tadjiquistão. As antigas Rotas da Seda foram uma apoteose de conectividade: ideias, tecnologia, arte, religião, enriquecimento cultural, em duas mãos. Os chineses, com refinada capacidade para ver a história, identificaram, não por acaso, como base conceitual/filosófica das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada, um “legado comum de humanidade”.


Vila afegã junto ao rio Pyanj River, com o Hindu Kush ao fundo. Foto: Pepe Escobar

China modernizou? Vamos viajar

Nas vilas de Gorno-Badakhshan, estendendo-se ao longo de deslumbrantes vales de rios, por séculos a vida andou lado a lado com agricultura de irrigação e criação de gado em pastagens sazonais. Conforme avançamos rumo às pedregosas Pamirs Orientais, a história vai-se transformando numa epopeia: como o povo das montanhas chegou, afinal, a se adaptar à vida em altitudes de 4.500m.

Nas Pamirs Ocidentais, a estrada foi modernizada pela China – e quem poderia ser? A qualidade é equivalente à Rodovia Karakoram ao norte. As empresas construtoras chinesas vão avançando lentamente na direção das Pamirs Orientais – mas a pavimentação de toda a rodovia pode ainda levar anos.


Os chineses estão chegando: obras da modernização da rodovia nas Pamirs Ocidentais. Foto Pepe Escobar

O rio Pyanj traça uma espécie de enorme arco em torno do território de Badakhshan no Afeganistão. Veem-se vilas absolutamente lindas pousadas nas colinas do outro lado do rio, incluindo algumas belas casas e com SUV estacionados, em vez de um burro ou de uma bicicleta. Agora há algumas pontes sobre o Pyanj, financiadas pela fundação Aga Khan, que substituem as antigas tábuas, suspensas sobre penhascos vertiginosos.

De Qalaykhumb até Khorog e depois dali diretamente até Ishkoshim, o rio Pyanj demarca a fronteira afegã ao longo de centenas de quilômetros – passando por álamos e campos perfeitamente demarcados e tratados. E entra-se no lendário vale Wakhan: um longo – desabitado – braço da Antiga Rota da Seda, com os espetaculares picos cobertos de neve do Hindu Kush ao fundo. Mais para o sul, uma trilha de poucas dezenas de quilômetros, está Chitral e Gilgit-Baltistão, no Paquistão.

O Wakhan não poderia ser mais preciosamente estratégico – disputado, ao longo do tempo, por pamiris, afegãos, quirguizes e chineses, semeado de qalas (fortalezas) que protegiam e cobravam pedágio das caravanas de comércio da Rota da Seda.


A fortaleza Yamchun, do século 3º a.C., conhecida como “Castelo dos Adoradores do Fogo”. Foto: Pepe Escobar

A estrela das qalas é do 3º século a.C., a fortaleza Yamchun – castelo medieval ‘de livro ‘, que originalmente mediu 900m de comprimento por 400m de largura, pousada numa encosta praticamente inacessível, protegida por dois cânions de rio, com 40 torres e uma cidadela. O lendário explorador da Rota da Seda, Aurel Stein, que esteve aqui em 1906, a caminho da China, confessou-se embasbacado. A fortaleza é conhecida, localmente, como “Castelo dos Adoradores do Fogo”.

Badakhshan pré-islâmico era zoroastrista, cultuava o fogo, o sol e espíritos dos ancestrais, e, ao mesmo tempo, praticava uma específica versão badakhshanida de Budismo. De fato, encontramos em Vrang restos de cavernas escavadas por budistas dos séculos 7º e 8º, e que podem ter sido também, no passado, local de cultos zoroastristas. O monge errante do início da dinastia Tang, Xuanzang, esteve aqui, no século 7º. Descreveu os monastérios e, significativamente, anotou uma inscrição budista que ali encontrou: “Narayana, vitória.”

Ishkoshim, por onde Marco Polo passou em 1271 a caminho do Wakhan superior, é a única passagem de fronteira pelas Pamirs para o Afeganistão, aberta a estrangeiros. Falar de “estradas” do lado afegão é exagero. Mas ainda se veem velhas trilhas da Rota da Seda, só encaráveis com um valente jipe russo, que vai avançando até Faizabad e, adiante, para Mazar-i-Sharif.

Essas são as partes às quais nunca chega aquele Hindu Kush de mentiras contadas aos norte-americanos durante 18 anos e um trilhão de dólares de guerra contra o Afeganistão. Única paisagem que a “América” vê está nos filmes blockbusters de Hollywood, em DVDs a 30 centavos cada.

Foi muita sorte ter encontrado a vida real: uma caravana de camelos, diretamente da antiga Rota da Seda, seguindo uma trilha do lado afegão do Wakhan. Eram nômades quirguizes. Há cerca de 3.000 quirguizes nômades no Wakhan, que gostariam de voltar à sua terra natal. Mas acabam por se perder num pântano de burocracia – supondo-se que consigam passaportes afegãos.

Essas são as antigas Rotas da Seda às quais os Talibã jamais conseguirão chegar.

Parte 2: Pela Rodovia Pamir, coração da Terra Central

Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga

Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..

https://bbacurau.blogspot.com/2019/12/rodovia-pamir-estrada-do-teto-do-mundo.html


Concorda? Discorda? Comente e partilhe as suas ideias
Regras da Comunidade

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do site.

| Capa | Pesquisar | Artigos | Termo de Responsabilidade | Contacto |