Sanções, arma brutal de um império em apuros
Enfraquecidos diplomaticamente, EUA apelam a sua supremacia financeira e naval para submeter países “desobedientes”. Lista, pouco conhecida, inclui Irã, Venezuela e mais 18. Ilegal, ação mata dezenas de milhares — mas é ineficaz
por Medea Benjamin e Nicolas J. S. Davies
Outras Palavras - 3 de julho, 2019
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Enquanto segue sem resposta o mistério sobre quem foi responsável pela derrubada dos dois petroleiros no Golfo de Oman, está claro que o governo Trump vem sabotando os carregamentos de petróleo iraniano desde o dia 2 de maio, quando foi anunciada a sua intenção de “reduzir a zero as exportações de petróleo do Irã, privando o regime de sua principal fonte de renda”. O movimento teve como alvo a China, a Índia, o Japão, a Coréia do Sul e a Turquia, todas nações compradoras de combustível iraniano, que agora enfrentam as ameaças dos Estados Unidos, caso continuem a comprar. Os militares estadunidenses podem não ter explodido fisicamente os navios que carregavam petróleo iraniano, mas suas ações têm os mesmos efeitos e deveriam ser consideradas atos de terrorismo econômico.
O governo Trump está também cometendo um assalto massivo ao petróleo, com a apreensão de $7 bilhões de dólares de ativos de petróleo da Venezuela — impedindo que o governo de Maduro tenha acesso ao seu próprio dinheiro. De acordo com John Bolton, as sanções à Venezuela afetarão o equivalente a US$11 bilhões em exportações de petróleo em 2019. O governo Trump também ameaça as companhias de navegação que transportem petróleo venezuelano. Duas companhias, uma com base na Libéria e outra, na Grécia, já foram atacadas com penalidades por transportarem combustível da Venezuela para Cuba. Sem furos em seus navios, mas com sabotagem econômica, no entanto.
Seja no Irã, na Venezuela, Cuba, Coreia do Norte ou qualquer um dos 20 países sob o castigo das sanções norte americanas, o governo Trump está utilizando seu peso econômico para tentar pressionar mudanças de regime ou mudanças políticas importantes em países do mundo todo.
Mortíferas
As sanções dos EUA contra o Irã são particularmente brutais. Assim como têm falhado completamente em avançar nas metas de mudança de regime estadunidense, elas têm provocado tensões crescentes com os parceiros comerciais dos EUA pelo mundo e submetem os cidadãos comuns do Irã a uma dor terrível. Embora comida e medicamentos sejam teoricamente isentos de sanções, as sanções dos EUA contra os bancos iranianos, como o Parsian Bank, maior banco privado do Irã, tornam quase impossível processar pagamentos de bens importados, que incluem comida e medicamentos. A consequente escassez de remédios no Irã, certamente, vai causar milhares de mortes que poderiam ser evitadas — e as vítimas serão pessoas comuns, trabalhadores, não aiatolás ou ministros do governo.
A mídia tradicional norte americana tem sido cúmplice dos EUA apoiando o pretexto de que as sanções são uma ferramenta não-violenta para gerar pressões em governos específicos, com o intuito de forçá-los a uma espécie de mudança democrática de regime. As reportagens americanas raramente mencionam o impacto mortal que atinge pessoas comuns. Em vez disso, culpam os governos alvo, exclusivamente, pelas consequentes crises econômicas.
O impacto fatal das sanções é claríssimo na Venezuela, onde as punições econômicas já dizimaram uma economia que vinha se recuperando das quedas no preço do petróleo, da sabotagem da oposição, da corrupção e das más políticas governamentais. Um relatório anual conjunto sobre a mortalidade na Venezuela em 2018, feito por três universidades venezuelanas, concluiu que as sanções dos EUA foram as grandes responsáveis por pelo menos 40 mil mortes adicionais naquele ano. A Associação Farmacêutica da Venezuela reportou a falta de 85% dos medicamentos substanciais e básicos em 2018.
Se não fosse pelas sanções americanas, a recuperação global dos preços do petróleo em 2018 teria conduzido, pelo menos, a uma pequena melhora da economia venezuelana e das importações de comida e remédios. Em vez disso, as sanções financeiras estadunidenses impediram a Venezuela de rolar suas dívidas e privou a indústria petroleira de dinheiro para peças, reparações e novos investimentos, levando a uma queda ainda mais dramática na produção de combustível do que nos anos anteriores — em que o petróleo estava com preços baixos e havia depressão econômica. A indústria petroleira gera 95% dos ganhos da Venezuela no exterior, portanto, ao estrangular essa indústria e ao proibir a Venezuela de pegar empréstimos internacionais, as sanções aprisionaram o povo venezuelano numa espiral econômica que não deixa de afundar — como era previsto e como era sua intenção.
Um estudo feito por Jeffrey Sachs e Mark Weisbrot para o Centro de Pesquisa Econômica e Política (Center for Economic and Policy Research), intitulado “Sanções como punição coletiva: o caso da Venezuela”, denunciou que o efeito combinado das sanções americanas de 2017 e de 2019, levam a projetar uma espantosa queda de 37,4% do PIB real da Venezuela em 2019, após uma queda de 16,7% em 2018 e de uma redução dos preços do petróleo em mais de 60% entre 2012 e 2016.
Na Coreia do Norte, tantas décadas de sanções, juntamente com extensos períodos de seca, deixaram milhões de pessoas (dos 25 milhões de habitantes da nação) desnutridas e miseráveis. As áreas rurais, especificamente, sofrem com escassez de medicamentos e de água limpa. Penas ainda mais severas, impostas em 2018, bloquearam a maior parte das exportações do país, reduzindo a capacidade do governo de comprar comida importada e, assim, mitigar a escassez.
Ilegais
Um dos elementos mais notáveis das sanções norte americanas é seu alcance extraterritorial. Os EUA atacam os negócios dos países do terceiro mundo com penalidades por “violarem” as suas sanções. Quando os EUA abandonaram o acordo nuclear de forma unilateral e impuseram as sanções, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos se gabou de ter punido mais de 700 indivíduos, entidades, aeronaves e embarcações fazendo negócios com o Irã, tudo isso num só dia: 5 de novembro de 2018. Referente à Venezuela, a agência Reuters relatou que, em março de 2019, o Departamento de Estado “instruiu companhias de comércio de petróleo e refinarias do mundo inteiro a cortar as negociações com a Venezuela caso não quisessem ter que enfrentar as sanções por si sós, mesmo que essas transações não fossem proibidas nas sanções publicadas pelos EUA”.
Uma fonte da indústria do petróleo se queixou à Reuters: “É assim que os EUA operam hoje em dia. Eles criaram as regras e ainda querem te chamar para explicar que também existem regras não escritas que eles querem que você siga”.
Oficiais norte americanos dizem que as sanções irão beneficiar as populações da Venezuela e do Irã, pressionando-os a se rebelarem e derrubarem seus governos. Como o uso da força militar, os golpes e as operações secretas para derrubar governos estrangeiros têm se comprovado catastróficos no Afeganistão, Iraque, Haiti, Somália, Honduras, Líbia, Síria, Ucrânia e Iêmen, a ideia de utilizar a posição política dominante dos EUA e o dólar nos mercados financeiros internacionais como uma forma “delicada” de poder para conseguir “mudanças de regime”, pode convencer os formuladores de políticas de ser uma forma mais fácil de coerção para conquistar aliados públicos dos EUA, apreensivos e cansados da guerra.
Mas passar do estilo de “choque e pavor” dos bombardeios aéreos e das invasões militares para os assassinos silenciosos das doenças preveníveis, subnutrição e pobreza extrema está longe de ser uma opção humanitária, e não mais legítima do que o uso da força militar sob o direito internacional humanitário.
Denis Halliday era um assistente da Secretaria Geral da ONU, que serviu como Coordenador Humanitário no Iraque e que renunciou à ONU em forma de protesto pelas sanções brutais que foram impostas ao Iraque em 1998.
“Sanções abrangentes, quando impostas pelo Conselho de Segurança da ONU ou por um Estado a um país soberano, são uma forma de guerra, uma arma branca que pune cidadãos inocentes, inevitavelmente”, afirma Denis Halliday. “Se elas são estendidas deliberadamente, mesmo quando suas consequências fatais são conhecidas, sanções podem ser consideradas genocídio. Quando a embaixadora estadunidense Madeleine Albright declarou no programa “60 minutes”, da CBS, que matar 500 mil crianças iraquianas para tentar derrubar Saddam Hussein “valia a pena”, a continuidade das sanções da ONU contra o Iraque chegaram à definição de genocídio”.
Atualmente, dois relatores especiais da ONU, indicados pelo Conselho de Direitos Humanos, são autoridades sérias e independentes que denunciam o impacto e a ilegalidade das sanções norte americanas sobre a Venezuela, e suas conclusões gerais se aplicam igualmente sobre o caso do Irã. Alfred de Zayas visitou a Venezuela em 2017, logo após a imposição das sanções financeiras por parte dos EUA, e redigiu um extenso relatório sobre o que encontrou por lá. Ele notou impactos significativos, dada a dependência de longo-prazo da Venezuela no petróleo, a má governança e a corrupção, mas ele também condenou fortemente as sanções dos EUA e a “guerra econômica”.
“Os bloqueios e sanções econômicas dos tempos modernos são comparáveis aos cercos nas cidades medievais”, escreveu De Zayas. “As punições do século XXI pretendem não só deixar de joelhos uma cidade, mas países soberanos”. O relatório de De Zayas recomenda que a Corte Internacional de Crimes investigue as sanções dos EUA contra a Venezuela como um crime contra a humanidade.
Um segundo relator especial da ONU, Idriss Jazairy, publicou uma declaração contundente em resposta à falida tentativa de golpe na Venezuela, apoiado pelos EUA em janeiro. Ele condena a “coerção” por poderes externos como uma “violação de todas as normas do direito internacional”. “Sanções que desencadeiam fome extrema e falta de medicamentos não são a resposta para a crise da Venezuela”, afirmou Jazairy, “…precipitar uma crise econômica e humanitária… não é o fundamento para a solução pacífica de disputas”.
As sanções também descumprem o Artigo 19 da Carta de Organização dos Estados Americanos (OAS Charter), o qual proíbe explicitamente intervenções “por qualquer motivo, nos assuntos internos ou externos que qualquer outro Estado”. Ele acrescenta que “proíbe não só as forças armadas, mas também qualquer outra forma de interferência ou tentativa de ameaça contra a personalidade do Estado ou contra seus elementos políticos, econômicos e culturais”.
O Artigo 20 da Carta é igualmente pertinente: “Nenhum Estado deve usar ou encorajar o uso de medidas coercitivas de caráter econômico ou político para pressionar a vontade soberana de outro Estado e, disso, obter vantagens de qualquer tipo”.
Nos termos do direito norte americano, tanto as sanções de 2017 como as de 2019 na Venezuela se basearam em declarações presidenciais sem fundamento de que a situação lá havia criado uma suposta “emergência nacional” nos EUA. Se as cortes federais norte americanas não tivessem tanto medo de segurar o poder executivo em questões de política externa, tudo isto poderia ser desafiado e muito provavelmente descartado por uma corte federal inclusive mais rápida e facilmente do que o caso de uma “emergência nacional” na fronteira mexicana, que, pelo menos geograficamente, está conectada aos EUA.
Ineficazes
Tem mais uma razão crítica para poupar a população do Irã, da Venezuela e de outros países-alvo dos impactos mortíferos e ilegais das sanções econômicas dos EUA: elas não funcionam.
Vinte anos atrás, enquanto as sanções econômicas cortavam em 48% o PIB do Iraque num período de 5 anos, e estudos relevantes documentavam seu custo humano genocida, elas já falhavam em tirar do poder o governo de Saddam Hussein. Dois assistentes da Secretaria Geral da ONU, Denis Halliday e Hans Von Sponeck, renunciaram a cargos sênior em protesto contra a ONU, em vez de fazer com que se cumprissem essas sanções assassinas.
Em 1997, Robert Pape, então professor no Dartmouth College, tentou resolver as questões mais básicas sobre o uso de sanções econômicas para conseguir mudanças políticas em outros países, por meio da recompilação e análise de dados históricos em 115 casos em que havia se tentado fazer isso, entre 1914 e 1990. Em seu estudo, intitulado “Por quê as sanções econômicas não funcionam”, ele conclui que sanções só tiveram êxito em 5 casos — de um total de 115
Pape também trouxe à tona uma questão provocadora e importante: “se sanções econômicas raramente são eficazes, por quê os Estados continuam aplicando-as?”
Ele sugeriu três respostas possíveis:
- “Tomadores de decisões que impõem sanções sistematicamente, superestimam as perspectivas de sucesso coercitivo das sanções”;
- “Líderes que contemplam até o último recurso para forçar um país, normalmente acreditam que a imposição de sanções antes, irá melhorar a credibilidade de ameaças militares futuras”;
- “Impor sanções costuma render aos líderes maiores benefícios políticos domésticos do que se se recusassem a impor sanções ou do que se recorressem à força”.
Acreditamos que a resposta seja provavelmente uma combinação de “todas as alternativas”. Mas acreditamos firmemente que nenhuma combinação dessas ou de quaisquer outras explicações racionais possam jamais justificar o genocídio humano como consequência das sanções econômicas no Iraque, na Coreia do Norte, no Irã, na Venezuela ou em qualquer outro lugar.
Enquanto o mundo condena os recentes ataques aos navios petroleiros e tenta identificar o culpado, a reprovação global deveria também ir para o paíse responsável por esta guerra mortal, ilegal e ineficiente no coração da crise: os Estados Unidos.
Medea Benjamin é cofundadora do CODEPINK e do grupo de advocacia em defesa do comércio justo, Global Exchange. É autora do livro Drone Warfare (“Guerra dos Drones”, da OR Books, 2012) e possui um importante papel no Green Party (“Partido Verde”). Possui mestrado em Saúde Pública e em Economia. Ganhadora dos prêmios U.S. Peace Memorial Foundation’s Peace Prize, Gandhi Peace Award e Martin Luther King Jr. Peace Prize.
Nicolas J. S. Davies é autor do livro Blood On Our Hands: the American Invasion and Destruction of Iraq (“Sangue em nossas mãos: a invasão estadunidense e a destruição do Iraque)”. Também escreveu capítulos do Obama at War.
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