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Satyagraha na era "pós-verdade"

Os britânicos obrigaram os camponeses indianos a cultivarem índigo para a indústria têxtil na Inglaterra, ao custo de não cultivarem alimentos para si próprios.

Por Vandana Shiva | The Asian Age

Imediata - 4 de Março, 2017

http://imediata.org/?p=5388

2017 é o 100º aniversário do satyagraha do índigo, em Champaran. Ele se baseava na recusa de cultivar índigo. Os camponeses haviam repetidamente dito: “Preferimos morrer que cultivar índigo”.

Os britânicos obrigaram os camponeses indianos a cultivarem índigo para a indústria têxtil na Inglaterra, ao custo de não cultivarem alimentos para si próprios. Os camponeses passaram fome enquanto a Inglaterra crescia. Como o magistrado de Faridpur, em Bengala, R.W. Tower disse à comissão de queixas dos arrendatários cultivadores de índigo: “Nenhum baú de índigo chegou à Inglaterra sem estar manchado de sangue humano.” (Citado por Rajendra Prasad em "Satyagraha in Champaran").

De acordo com Mahatma Gandhi, “enquanto existir a superstição de que leis injustas devam ser obedecidas, existirá a escravidão”.

Como o próprio Gandhi reconhece, ele não “inventou” o satyagraha. Ele aprendeu essa prática com o povo da Índia. Conforme escreve no Hind Swaraj: “O fato é que, na Índia, a nação em seu todo geralmente usou a resistência passiva em todos os departamentos da vida. Nós deixamos de cooperar com nossos governantes quando eles nos desagradam. Esta é a resistência passiva”.

Movimentos de não-cooperação começaram onde quer que os britânicos tivessem tentado tributar as terras do camponês e as casas da população. O satyagraha de 1810-11 em Varanasi contra o imposto sobre as residências é o que conta com o melhor registro. Mas semelhantes movimentos de não-cooperação ocorreram em Patna, Bhagalpur e outras cidades.

Tendo aprendido com as pessoas como a Índia permaneceu democrática ao longo dos séculos através do poder da não cooperação, Gandhi utilizou o satyagraha primeiro na África do Sul em 1906, recusando-se de cooperar com as leis do regime de apartheid que impunham o registro obrigatório com base na raça. Os movimentos contemporâneos contra o apartheid – “separação” – com base na religião e na raça, são uma continuação do espírito de Gandhi, Nelson Mandela e Martin Luther King Jr.

Quando Gandhi retornou à Índia, da África do Sul, em 1915, foi chamado a Champaran por nossos lutadores pela liberdade – como Rajendra Prasad, que se tornou presidente após a independência da Índia – para fortalecer o movimento dos camponeses contra o cultivo forçado de índigo.

Em 1930, quando os britânicos introduziram as leis do sal para fazer do sal um seu monopólio, e tornando ilegal a produção de sal por parte dos indianos, Gandhi empreendeu a Marcha do Sal, caminhou até à praia de Dandi, pegou sal do mar e disse: “A natureza dá o sal de graça, precisamos dela para nossa sobrevivência. Continuaremos a fazer sal. Não obedeceremos as vossas leis”.

Como escrevi em Ecologia e Política da Sobrevivência: “O Satyagraha do Sal espalhou-se rapidamente para regiões florestais, e se tornou o satyagraha da floresta, contra a apropriação britânica de florestas comunitárias. Chipko teve suas raízes no satyagraha da floresta de 1930 em Tilari, no Garhwal”.

Satyagraha, a força da verdade, é mais importante do que nunca em nossa época de “pós-verdade”. Satyagraha foi, e tem sido sempre sobre o despertar de nossa consciência. Em abril de 2017, no aniversário do Satyagraha de Champaran, os movimentos empreenderão um satyagraha yatra, começando em Meerut, onde o primeiro movimento de independência contra a Companhia das Índias Orientais iniciou, em 1857. Nós visitaremos Varanasi para comemorar o movimento de 1810 contra o imposto sobre as residências, imposto pelos britânicos. Faremos uma peregrinação a Champaran no dia 17 de abril, dia em que Gandhi iniciou seu satyagraha contra o cultivo forçado de índigo. Juntaremos as comunidades valentes de Singur e Nandigram que pararam o roubo de terras através do satyagraha da terra. Depois de homenagear aqueles que participaram do Satyagraha do Sal de 1930, viajando pela estrada do sal em Odisha, concluiremos o yatra no Dia da Mãe Terra (22 de abril), no Banco de Sementes da Comunidade Navdanya em Odisha, que espalhou sementes de esperança através da Índia, após ciclones, após o tsunami e depois de repetidas secas. Vamos renovar nosso satyagraha da Terra, com um compromisso renovado para salvar e semear as sementes da liberdade. Sabemos que a liberdade para a Terra e todos os seus seres é inseparável da liberdade das pessoas. E são as leis mais elevadas para protegermos o planeta e defender nossos direitos e responsabilidades interconectados que nos dão a “coragem compassiva” para desafiar leis e políticas mesquinhas enraizadas na ganância, baseadas na violência.

O Satyagraha do Sal inspirou o Satyagraha da semente (bija satyagraha) de Navdanya e o movimento para a Liberdade da Semente.

Desde 1987, quando eu ouvi pela primeira vez corporações falarem de possuir sementes através dos direitos de propriedade intelectual, a minha consciência, minha mente não aceitou isso. E me comprometi em caráter vitalício para salvar sementes, e não para cooperar com sistemas de Propriedade Intelectual que criminalizam o armazenamento e a troca de sementes.

Bija satyagraha é um movimento popular para o ressurgimento da semente real, da inteligência dos agricultores para serem criadores e co-evoluirem com a inteligência da semente para a resiliência da diversidade, da qualidade. É um movimento que nasce das leis mais elevadas de nossos membros da comunidade da Terra – Vasudhaiva Kutumbakam – das leis mais elevadas de nosso dever de cuidar, proteger, conservar e compartilhar. O compromisso do bija satyagraha que nossos cultivadores tomam diz:

“Recebemos essas sementes da natureza e de nossos ancestrais. É nosso dever com as futuras gerações entregá-las na riqueza da diversidade e integridade com que as recebemos. Portanto, não obedeceremos a nenhuma lei, nem adotaremos nenhuma tecnologia que interfira com nossos deveres superiores à Terra e às gerações futuras. Continuaremos a salvar e compartilhar nossas sementes”.

O bija satyagraha contra a Monsanto e sua tentativa de patentear sementes e coletar royalties, o jal satyagraha contra a Coca-Cola em Kerala e em Doon Valley, contra a privatização da água em Déli, contra a aquicultura industrial em Tamil Nadu, Andhra Pradesh e Odisha, iniciado por mulheres, protegeram com sucesso o direito das pessoas à água potável. O sarson satyagraha, contra o despejo de óleo de soja geneticamente modificada em 1998 e a tentativa de introduzir a mostarda geneticamente modificada em 2015, o satyagraha para o Ghani de Gandhi trouxe para o centro das atenções o direito a alimentos seguros e saudáveis. Os satyagrahas dos povos tribais em Niyamgiri, e dos camponeses em Singur e Nandigram, pararam com a tomada de terras pelas corporações, desencadeada pela globalização. Estes são apenas alguns exemplos do poder contínuo do satyagraha contra a captura de recursos mais violenta e a tomada de riquezas pelas corporações globais gigantes em nossos tempos.

N.do T.: Satyagraha é um termo hindi formado de duas palavras: Satya, que pode ser traduzida como verdade; e agraha que significa firmeza, constância.

Tradução: Mario S. Mieli

Vandana Shiva é ativista ambiental da Índia, fundadora e diretora do Navdanya Research Foundation for Science, Technology, and Ecology.

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