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Triste Ocidente, ao que chegaste!...

Trump parece ser mais ameaçador nas questões chinesa e do Médio Oriente, mas a política externa do Partido Democrático não lhe fica atrás em agressividade e irresponsabilidade.

por José Goulão (PT)

Abril Abril - 5 de novembro, 2024

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Créditos / NBC News

Ouve-se e lê-se que o actual episódio das eleições presidenciais norte-americanas é o acto eleitoral mais importante de sempre no país, quiçá da história mundial.

Uma alarvidade. Mais uma vez o império a olhar para o próprio umbigo e os satélites ansiosos em saber se irão prestar vassalagem a uma tal Kamala Harris, um megafone palavroso, ou ao conhecido Donald Trump, um narcisista populista e fascista que joga com o mundo como se fora um canastrão imitando a genial cena de Charlot em O Grande Ditador.

Esta é a escolha «democrática» por excelência. O modelo de selecção dos «representantes do povo» que todos os «países civilizados», os privilegiados membros da elite do Ocidente colectivo, deverão seguir para não serem marginalizados dentro desse sagrado Olimpo. Assim funciona a «democracia liberal», outrora «democracia ocidental», a única que é aceite no quadro da «ordem internacional baseada em regras», isto é, o direito internacional vergado aos interesses, arbitrariedade e expansionismo do império. Chegámos ao momento em que, no Ocidente, se designa o chefe nominal do império com um happening no qual se procede à selecção de um de dois imbecis: uma ignorante, oca, funcionando como um disco partido mas perigosa devido ao aparelho que a manipula; e um ignorante, visivelmente sociopata e perigoso pelo que é e pela tacanhez, alienação e violência potencial das camadas de uma sociedade doente que o apoiam.

O duelo eleitoral norte-americano entre Kamala democrática e Donald republicano define como poucos as virtudes da nossa «democracia liberal». Impõe a «liberdade» de escolha dos eleitores entre candidatos indicados por um dueto de partidos que em pouco ou nada diferem na acção prática e são ambos emanações do chamado complexo militar, industrial e tecnológico, o verdadeiro poder nos Estados Unidos e seus satélites ocidentais; uma fusão entre o poder estatal e corporativo que, no que nos diz directamente respeito, se manifesta através do termo «Blob» – criado durante a administração de Obama e que traduz o consenso bipartidário sobre a necessidade de uma robusta presença militar dos Estados Unidos em todo o mundo, também conhecido como «as regras de Washington». Figuras de proa associadas ao conceito de «blob» são Hillary Clinton e Bill Gates – e está tudo dito. 

Sem receito de deturpar a realidade, o sistema político assente nesta fusão entre o Estado e as grandes corporações funciona, na prática, como partido único com duas tendências miméticas que há muito cortaram relações com os eleitores a não ser nas encenações idiotas, mas de encher o olho à maneira de Hollywood, que se multiplicam em épocas como esta, de «campanha eleitoral».

Repare-se agora como este modelo tem vindo a ser exportado paulatinamente para todos agentes da «democracia liberal» através do Ocidente: duas correntes políticas com «vocação de governo», sociais-democratas e conservadores, inocuamente divergentes em questões sociais e absolutamente convergentes no sistema desumano económico e financeiro neoliberal, o neoliberalismo, à qual está submetida toda a actividade política. Entre a «democracia liberal» e o sistema de partido único existe uma irmanação prática, cada vez mais penetrada pela envolvente fascista à medida que se agudizam os irreversíveis problemas económicos e sociais.

Jogo viciado

O pretenso duelo entre Kamala e Donald mais não é do que o cumprimento de um ritual em ciclos quadrienais que, um após o outro, vai trocando as caras (nem sempre) que serão protagonistas da tragicomédia levada à cena, com obsessão doentia, pelo monstro tentacular em que se transformou o aparelho global de info-propaganda formatado como infotainment, a informação como entretenimento alienante.

Apesar da contumácia do sistema e do envenenamento massivo das populações, há sinais animadores de que, embora a  prazo mais ou menos longo, o feitiço poderá virar-se contra o feiticeiro. Imagine-se que, nos Estados Unidos, o prestígio dos jornalistas já é mais baixo do que o dos congressistas, segundo a empresa de sondagens Gallup, insuspeita quanto à sua inserção nos ambientes de poder. Na simplicidade da sua formulação, a conclusão gallupiana diz tudo sobre a decrepitude do regime maravilha e santuário da «democracia liberal», da «nossa civilização», do jardim ameaçado pela barbárie que, por sinal, ganhou forma ainda mais demoníaca na recente cimeira dos BRIC realizada em Kazan, provocatoriamente na Rússia.

Diz-nos a sondagem que o prestígio dos congressistas, isto é, dos políticos «escolhidos» pelos eleitores para os representarem, é tradicionalmente conhecido por traduzir o nível mais baixo de credibilidade, o que só enobrece o prestígio desta espécie de democracia; pois imaginem que os jornalistas, camada pela qual os norte-americanos pareciam ter ainda algum respeito, conseguiram ultrapassar os «eleitos» nesse trambolhão para o abismo do desprezo. Nada que nos espante ou nos deveria surpreender: é uma das desgraças do nosso dia-a-dia também em terras lusas, por vocação própria e também como subsidiárias do miserável cenário europeu e ocidental em geral. A osmose imperial é rápida e letal nos terrenos estratégicos da info-estupidificação.

Por maioria de razão, em relação aos congressistas, a respeitabilidade dos presidentes estará certamente num nível rasteiro. Daí que o duelo entre Kamala Harris e Donald Trump nada tenha de «mais importante» em relação a tantos outros. Não é por Joseph Biden, o presidente em exercício, se ter retirado de cena por ter finalmente assumido (ou assumiram por ele) as suas insuficiências físicas e cognitivas, que os Estados Unidos deixaram de funcionar. O aparelho estatal-corporativo está sempre em actividade, governa 24 horas por dia porque assim o determinam as urgências permanentes e globalistas dos seus interesses, cujo cumprimento é assegurado por entes descartáveis que julgam viver ou ter encontrado o «paraíso das oportunidades» antes de serem lançados no lixo.

O combate entre Kamala e Donald, como acontece nas sessões de wrestling, é viciado por definição, embora nas lutas em ringue não se conceba que haja tentativas de eliminar um dos competidores a tiro. Daí que sejam de esperar, como tudo indica tenha acontecido regularmente, suspeitas quanto à transparência da votação, confusões pouco recomendáveis entre voto electrónico, voto presencial e votação pelo correio. Desconfiança ampliada ainda pela circunstância de representantes das candidaturas não estarem presentes nos actos de contagem. A que parangonas estaríamos sujeitos se anomalias como estas acontecessem – o que não se verifica – na Venezuela, na Bolívia, na Rússia, na África do Sul, em Angola e por aí adiante. Porém, nada disso deve incomodar-nos, cabe-nos somente desmentir com veemência os indícios de tramóia: a nomeação cíclica do presidente dos Estados Unidos é o acto supremo da «democracia liberal», tem selo de garantia haja o que houver, é o modelo que todos devemos – melhor dizendo, temos – de seguir.

Poderá argumentar-se, como fazem sempre as almas que não permitem desconfianças quanto à perfeição e a superioridade da «nossa civilização» e respectivos mecanismos democráticos, que não existem provas desta viciação, as suspeitas não passam de especulação, de mau perder dos derrotados, ou mesmo das fake news ou das malfadadas teorias da conspiração.

Sejamos claros: acham que há transparência na discriminação e diferenças de tratamentos de partidos durante as pré-campanhas e as campanhas eleitorais? Não existem partidos que, por definição, têm «vocação» para governar enquanto os outros, meros figurantes, estão condenados a assegurar um pluralismo inócuo? Os meios financeiros dos candidatos e candidaturas são justos e equilibrados? Os financiadores dos partidos e dos candidatos são pessoas e entidades interessadas apenas no funcionamento claro e límpido da democracia e jamais tencionam cobrar a jusante as recompensas acordadas e que justificaram os investimentos feitos a montante? E a insidiosa info-propaganda cobre equilibradamente as ocorrências eleitorais, dá voz e oportunidades por igual a todos os concorrentes ou apenas aos «vocacionados», os que representam as duas tendências de um regime democrático como deve ser, mais as respectivas adjacências?

Estas e muitas outras interrogações que poderíamos acrescentar são pertinentes pera identificar e definir o padrão democrático, nosso farol e nosso guia; e, cumprindo-se a ordem natural das coisas, aplica-se igualmente aos orgulhosos e untuosos satélites orbitando o planeta que reflecte o sol da «nossa civilização».

O que mudará

Kamala Harris e Donald Trump. A credibilidade destes candidatos é tal que, pela primeira vez, em muitas décadas o diário Washington Post, um dos instrumentos do regime e fidelíssimo instrumento do expansionismo e do militarismo imperial, não recomenda o voto em qualquer dos putativos presidentes. Normalmente fá-lo para favorecer o candidato do Partido Democrático, desejando estar em harmonia com a clientela «bem» e «chic» da Beltway, o santuário dos poderes. Kamala, porém, não encaixa nos padrões dessa elite, não consegue alinhar duas ideias com tino, não cumpre as métricas da verborreia e roça o boçal, manifesta frequentes dificuldades em repetir as mensagens, ainda que primárias, que lhe explicam e recomendam – assemelhando-se a Biden quando a demência o tornou ainda mais dependente dos auriculares e do teleponto. Além disso, falta-lhe estilo, a souplesse própria dos políticos com pedigree. Percebe-se que foi a solução possível, encontrada no exterior das habituais formalidades ditas democráticas designadas como «eleições primárias»; foi repescada precipitadamente da vice-presidência quando se percebeu que Joseph Biden não daria conta do final deste mandato, quanto mais de um novo mandato.

O Washington Post pagou o preço da sua «abstenção»: perdeu 200 mil assinantes num ápice – os democráticos não perdoam a quem vacila, mesmo perante uma candidata de vão de escada. Mesmo assim, os influentes Los Angeles Times e USA Today assumiram a mesma decisão. Kamala Harris está mais ou menos entregue às suas incapacidades e a um aparelho que a sustenta a contragosto porque não tem outro remédio. As sondagens trucidam-na mas, como nos revela a regra ocidental nesta matéria, não são de fiar, porque servem essencialmente para mentir e manipular. Além disso, depositar o boletim na urna é apenas um pormenor do jogo «democrático liberal». 

E Donald Trump? Corresponde ao que mais há de ultramontano nos Estados Unidos, às máfias das seitas religiosas, à ignorância que floresce como cardos através do país. É um trauliteiro e um mentiroso. Acabava com a guerra na Síria mas depressa decidiu atacar o país com mísseis e ocupá-lo com mais contingentes de tropas para garantirem – ele o disse – o roubo de petróleo. Retirava-se do Afeganistão, mas preferiu deixar a humilhação da NATO para Biden. O campo de concentração de Guantánamo, expoente do terrorismo imperial, continua por encerrar. Estão à vista as consequências das achas que lançou para o incêndio no Médio Oriente graças ao seu apoio doentio ao nazismo sionista.

Antevemos assim o que acontecerá à sua promessa de acabar com a guerra da Ucrânia num abrir e fechar de olhos enquanto assegura que «irá meter Putin na ordem». Um oligarca, cleptocrata e eternamente aprendiz de político, um inconsciente perigoso, muito perigoso.

O que se seguirá a esta encenação eleitoral que exibe sem filtros o estado degradante, penoso, incompetente e desorientado a que chegou um Ocidente à deriva?

O complexo militar, industrial e tecnológico governante, o centro do poder imperial que funciona enquanto os presidentes e os congressistas passam, continuará a proferir, como sempre, as palavras decisivas. Essas garantem-nos mais do mesmo, ainda que possam perceber-se variantes para que tudo continue na mesma independentemente do candidato a quem for atribuído o inquilinato da Casa Branca.

No plano interno, mais imposto, menos imposto, os ricos continuarão a ser ainda mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e em maior número, seja a crise benigna ou catastrófica. A educação afundar-se-á ainda mais na inanição, a saúde continuará a ser para alguns, cada vez menos; as infra-estruturas públicas, das pontes aos transportes, às escolas, à habitação dos bairros desfavorecidos continuarão a ruir por falta de manutenção. O ambiente irá deteriorar-se mais à medida que avança a «transição verde», os organismos geneticamente modificados envenenarão mais a alimentação, a criminalidade arruinará e assassinará sem descanso, o comércio e consumo de drogas naturais ou químicas, que se renovam todos os dias, produzirão mais zombies e liquidarão numa escala de milhões de seres humanos. O «nosso» paraíso tende a confundir-se com o inferno.

No plano externo, com Kamala ou Donald, a guerra continuará a ser a prioridade das prioridades sob a forma de agressões militares, revoluções coloridas ou sanções económicas e políticas, prometam eles o que agora prometerem.

A derrota anunciada da Ucrânia perante a Rússia traz dúvidas e incertezas sobre os próximos comportamentos do Pentágono e da NATO seja qual for o presidente em exercício. A pressão militar e económica sobre a China e a manipulação terrorista da situação de Taiwan continuarão a subir de tom enquanto o sionismo prosseguirá o seu caminho (e o do planeta?) para o abismo, sempre com o apoio e a protecção dos Estados Unidos e respectivos satélites, cometa as atrocidades que cometer. No fim de contas, é o defensor da «nossa civilização» no Médio Oriente, Netanyahu dixit, e não foi desmentido.

Trump parece ser mais ameaçador nas questões chinesa e do Médio Oriente, mas a política externa do Partido Democrático não lhe fica atrás em agressividade e irresponsabilidade.

A União Europeia e a NATO estão chorosas, alarmadas com a hipotética vitória de Trump. Ânsias escusadas: deviam estar mais confiantes na essência do imperialismo. Com um ou outro presidente, a missão da Aliança Atlântica será a de continuar a expandir-se até às fronteiras com a Rússia, apertar o cerco em torno deste país e dividi-lo num conglomerado de Estados submissos. A União Europeia continuará a ser desprezada por Washington e a gostar de ser tratada assim. A Alemanha acaba de homenagear Biden, o presidente que rebentou com o Nord Stream, indispensável para a sua estratégia económica e para sair do buraco em que continua a afundar-se.

A rapina dos bens e riquezas mundiais – ou pelo menos as tentativas continuadas de a garantir – não dependerá da escolha entre Kamala ou Trump: é uma rotina da história dos últimos séculos de colonialismo e imperialismo.

Na sua convicção de superioridade civilizacional, que as leva a confundir desejos com realidades, a viver em realidade paralela ou a fingir a inexistência de desenvolvimentos que não dominam, as classes económicas, militares e políticas ocidentais, sob o comando dos Estados Unidos, erram muitas vezes os alvos ou baralham as fontes das suas preocupações. Na realidade, escolher entre Kamala e Donald deveria estar longe de ser o maior dos seus problemas. As transformações que estão a acontecer no mundo e ameaçam com bastante consistência o autoritarismo dito «civilizacional» da «ordem internacional baseada em regras», essas sim são para levar a sério dizendo-nos que nada voltará a ser como era ainda há pouco, por exemplo antes de iniciada a guerra aberta na Ucrânia. O estatuto de 500 anos de impunidade colonial e imperial está pela primeira vez a ser posto em causa por uma esmagadora maioria mundial que representa mais de cinco mil milhões de seres humanos dos oito mil milhões que habitam a Terra. E quanto a isso tanto faz que seja Kamala Harris como Donald Trump o chefe imperial de turno.

Também sabemos que uma ou outro, tanto faz, terão o dedo no gatilho de um arsenal nuclear capaz de destruir várias vezes o planeta e a humanidade e que, independentemente do escolhido, ambos são conduzidos por interesses tentados a accioná-lo como se fosse possível produzir apenas «efeitos limitados»; ou mesmo, como acontece com os sionistas loucos no poder, a preferir a hecatombe do juízo final para não assistirem a um hipotético fim de Israel.

E quanto a isto, Kamala ou Donald são ambos parte do problema e não da solução. É isso que deveremos recear e combater com todas as nossas forças e meios. Nós somos a parte da solução.

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.

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