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Governar a Ucrânia não é motivo para riso

As eleições na Ucrânia representaram uma esmagadora rejeição de Poroshenko e de tudo o que ele representa. Mas a eleição de Zelensky dificilmente cumprirá a promessa de um “recomeço”. O corrupto e fascizante poder instalado com o patrocínio dos EUA não pode ser removido da mesma forma, e muito menos o será com os recursos da comédia.

por M.K. Bhadrakumar | Indian Punchline

ODiario.info - 26 de abril, 2019

https://www.odiario.info/governar-a-ucrania-nao-e-motivo/

Comédia, diz-se muitas vezes, é pessoas incomuns em situações reais, e farsa é pessoas reais em situações inusitadas. Pode sem dúvida dizer-se que ao eleger o comediante Vladimir Zelensky como seu novo presidente numa vitória esmagadora na segunda volta de domingo, o povo da Ucrânia se encontra numa situação de farsa. É certo que a opção do país por um inexperiente showman representou um veredicto sobre três décadas de fracasso político.

O primeiro presidente da Ucrânia na era “pós-soviética” Leonid Kuchma disse ao jornal russo Komsomolskaya Pravda, “A Ucrânia está cansada dos seus políticos, que durante 28 anos foram incapazes de organizar a vida, promover a democracia, o bem-estar ou a paz. As pessoas estão cansadas e acreditam que é hora de virar uma nova página. ”

Os eleitores ucranianos perceberam Zelensky como um candidato honesto, uma pessoa genuína e aberta, sem um passado relacionado com corrupção, que personificava esperança. Manifestou-se muito pouco sobre as suas políticas ou mesmo sobre a equipa que escolheu para governar a Ucrânia. Na verdade, é um pouco cedo demais para formar uma opinião completa sobre esse novato político.

Zelensky ofereceu muitas coisas a todos: de combater a corrupção a aumentar salários e pôr fim da guerra no leste. Mas tem havido poucos detalhes. O seu slogan era “Nem promessas, nem desculpas ”. Funcionou.

Então, há o “desconhecido conhecido” – a sua efectiva relação com um dos mais odiosos oligarcas ucranianos, Ihor Kolomoisky, que vive em autoexílio em Israel mas tem amplos interesses comerciais na Ucrânia e tem sido ligado ao crime organizado. Putin chamou uma vez abertamente o bilionário de “bandido”. Um relatório da Reuters adverte que o relacionamento de Zelensky com Kolomoiskiy poderia constituir um calcanhar de Aquiles. Na verdade, será um grande teste da força de carácter de Zelensky saber se será capaz de manter a sua posição. O júri já está ausente.

Por outro lado, cinco anos depois da chamada “revolução Euromaidan”, um verdadeiro golpe que foi financiado e orquestrado pelo Ocidente em 2014 para derrubar o presidente eleito “pró-russo” Viktor Yanukovich, a Ucrânia continua a ser um dos países mais pobres da Europa. Não há quase nenhum investimento estrangeiro em curso, o sector judiciário está completamente corrompido juntamente com a classe política, e o favoritismo, o nepotismo e a venalidade são desenfreados.

Tudo o que o Ocidente alcançou nos últimos 5 anos foi voltar a Ucrânia contra a Rússia, mas a economia ucraniana estava inextricavelmente ligada à cadeia de produção russa e como o presidente Petro Poroshenko se transformou num linha-dura e nacionalista fanático com ligações a grupos neonazistas, a atitude de Moscovo endureceu também.

Os padrões de vida decaem. E depois há o conflito com os separatistas apoiados pela Rússia no leste da Ucrânia - a “questão Donbass” - e a anexação da Crimeia pela Rússia. Não estão à vista quaisquer perspectivas imediatas para uma solução política - nem mesmo para progressos na frente humanitária, para as pessoas nas linhas de frente ou para os presos políticos.

Zelensky, como Poroshenko, é a favor da adesão da Ucrânia à União Europeia e à NATO e prometeu realizar referendos para averiguar a vontade popular. A Rússia irá certamente opor-se a esta orientação.

Indiscutivelmente, tudo o que diz respeito à presidência de Zelensky dependerá em grande parte da forma como equacione a sua relação com Moscovo. Aqui, os sinais são de algum modo ambivalentes. Algumas autoridades russas expressaram cauteloso optimismo.

O primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev escreveu no Facebook, “O resultado demonstrou a solicitação explícita de novas abordagens para a resolução dos problemas da Ucrânia.”

Acrescentou que há oportunidades para melhorar as relações Rússia-Ucrânia.

“Precisamos de uma abordagem pragmática e responsável, que tome em conta todas as realidades políticas na Ucrânia, incluindo em primeiro lugar a situação no leste do país”, escreveu Medvedev. Medvedev pediu “sanidade” e uma compreensão do profundo valor das relações entre os dois povos. Por outro lado, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse na segunda-feira a repórteres que é prematuro falar de felicitações do presidente russo Vladimir Putin a Zelensky ou da sua cooperação até que Zelensky dê passos concretos.

“Só será possível julgar [Zelensky] pelas suas ações.”

Ao mesmo tempo, canais nos bastidores devem estar a funcionar e pode-se estar certo de que Moscovo irá averiguar se é possível um novo começo sob Zelensky.

O facto definidor em tudo isto é que a Ucrânia está sobre uma das maiores linhas de fractura do mundo. A melhor opção de Zelensky poderia ser transformar o seu país de um campo de batalha entre leste e oeste num estado tampão estritamente neutro, um pouco como a Finlândia costumava ser. Mas isso é mais fácil dizer do que fazer. Para que isso aconteça, o equilíbrio de poder regional deveria ser simétrico, o que infelizmente não é o caso.

A Rússia considera a Ucrânia como parte de sua esfera de influência, e tem profundas ligações culturais com ela a nível de povo-com-povo, o que é quase místico. A UE, pelo contrário, detesta reconhecer os interesses legítimos da Rússia, mas também não está disposta ou empenhada em absorver totalmente a Ucrânia (com o seu baixo nível de vida, mercados controlados e corrupção) nas suas estruturas económicas e financeiras.

Diante dessas realidades geopolíticas, a melhor escolha de Zelensky poderia ser um futuro neutro para o seu país. A situação actual é intrinsecamente instável pois, sem surpresa, a Rússia lutará pelos seus interesses na Ucrânia. É até possível que Moscovo possa em algum momento, mais cedo ou mais tarde, testar a determinação de Zelensky. Mas o complexo impasse também não pode ser facilmente quebrado. Dito claramente, será impossível para qualquer líder ucraniano procurar uma parceria com a Rússia num futuro previsível, enquanto a Crimeia e a questão do Donbass permanecerem sem solução.

Dito isto, tudo depende realmente do estado das relações EUA-Rússia. Provavelmente, nem é assim tão importante quem está no poder em Kiev. Nos últimos 5 anos, os EUA programaram a Ucrânia num modo “anti-russo”. E Washington detém o “software”. O ponto principal é que o cálculo americano é também é voltado para garantir a liderança transatlântica dos EUA, para a qual as sanções contra a Rússia constituem uma base vital.

É aí que reside a contradição: a imagem “inimiga” da Rússia como “país agressor”, que é o leitmotiv da projecção de força da NATO na Europa Central e no Mar Negro, não pode ser sustentada se a crise da Ucrânia for resolvida. Simplificando, Zelensky precisa ser mais “pró-Ucrânia” do que “pró-Ocidente” - isto é, deve perceber que, se a Ucrânia tem alguma possibilidade de prosperar, deve de alguma forma normalizar as relações com Moscovo, que continua sendo o seu maior parceiro comercial. .

Mas irá o Ocidente permitir-lhe abrir um diálogo com Moscovo? Portanto, a grande questão é por quanto tempo irá durar o impulso da onda de optimismo que levou à eleição de Zelensky antes de começar a dissipar-se? O prometido recomeço é difícil e vem com um alto risco de falhar. Certamente, Zelensky não pode resolver os assustadores problemas com o humor, o charme ou vídeos engraçados do comediante no YouTube.

Melkulangara Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Deccan Herald e Asia Online. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante comunista do Kerala.

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