A águia, o urso e o dragão
– "Europa: Uma terra de cegos que guia outros cegos"
por Pepe Escobar | Consortium News
Resistir.info - 6 de maio, 2019
https://www.resistir.info/eua/escobar_06mai19_p.html
Antigamente, pela noite adentro, à volta de fogueiras em desertos do
sudeste asiático, eu costumava contar uma
fábula
sobre a águia, o urso e o dragão para grande
satisfação
dos meus interlocutores árabes e persas.
Contava como a águia, o urso e o dragão, no início do
século XXI, tinham tirado as suas luvas (de pele) e se envolveram no que
acabou por ser a Guerra Fria 2.0.
Quando nos aproximamos do fim da segunda década deste século
já incandescente, talvez seja proveitoso atualizar aquela fábula.
Com
o devido respeito a
Jean de la Fontaine
, desculpem-me enquanto volto a beijar o céu
[1]
(deserto).
Longe vão os dias em que um urso frustrado se ofereceu várias
vezes para cooperar com a águia e os seus lacaios numa questão
escaldante: os mísseis nucleares.
O urso argumentou reiteradas vezes que a colocação de
mísseis de interceção e de radares naquela terra de cegos
que guiavam cegos a Europa era uma ameaça. A
águia contra-argumentou repetidas vezes que aquilo era para nos proteger
daqueles patifes persas.
Agora, a águia afirmando que o dragão está a ter
uma vida fácil rasgou todos os tratados em vigor e está
apostada em colocar mísseis nucleares em zonas orientais selecionadas na
terra dos cegos que guiam os cegos, essencialmente para visar o urso.
Tudo o que brilha é seda
Menos de 20 anos depois daquilo a que o urso-mor Putin definiu como "a
maior catástrofe geopolítica do século XX", este
propôs uma forma de URSS
light
; um órgão político-económico chamado a
União Económica Eurasiática (UEE).
A ideia era ter a UEE a interagir com a União Europeia a
instituição de topo da equipa heterogénea conjunta dos
cegos que guiam os cegos.
A águia não se limitou a rejeitar uma possível
integração; saiu-se com um cenário de
revolução colorida modificada a fim de desligar a Ucrânia da
UEE.
Ainda antes disso, a águia havia querido estabelecer uma Nova Rota da
Seda sob o seu total controlo. A águia havia-se esquecido
convenientemente de que a original, a Antiga Rota da Seda, ligara o
dragão ao império romano durante séculos sem
intrusos do exterior da Eurásia.
Assim, podemos imaginar o assombro da águia quando o dragão
irrompeu no palco global com as suas Novas Rotas da Seda super carregadas
melhorando a ideia original do urso de uma área de
comércio livre "de Lisboa a Vladivostok" e transformando-a num
corredor de múltiplas interligações, terrestres e
marítimas, da China oriental à Europa ocidental, incluindo tudo
entre esses dois extremos, abrangendo toda a Eurásia.
Perante este novo paradigma, os cegos, claro, mantiveram-se cegos durante tanto
tempo quanto nos podemos lembrar; e, pura e simplesmente, não
conseguiram agir em conjunto.
Entretanto, a águia ia aumentando a parada. Lançou o que, para
todos os efeitos práticos, era um cerco ao dragão,
progressivamente cheio de armas.
A águia fez uma série de movimentos que equivaliam a incitar os
países fronteiriços do Mar do Sul da China a antagonizar o
dragão, enquanto alterava a disposição duma série
de brinquedos submarinos nucleares, porta-aviões, caças a
jato cada vez mais próximos do território do dragão.
Durante este tempo todo, o que o dragão via e continua a ver
é uma águia estropiada, tentando abrir caminho à
força para sair dum declínio irreversível, tentando
intimidar, isolar e sabotar a ascensão imparável do
dragão para o lugar que sempre ocupara, durante 18 dos últimos 20
séculos: a sua entronização como rei da selva.
Um vetor fundamental é que os atores de toda a Eurásia sabem que,
à luz das novas leis da selva, o dragão não pode e
não irá ser reduzido, pura e simplesmente, à
situação de ator secundário. E os atores de toda a
Eurásia são demasiado espertos para embarcar numa Guerra Fria 2.0
que daria cabo da própria Eurásia.
A reação da águia à estratégia da Nova Rota
da Seda do dragão levou algum tempo a passar da inação
à demonização aberta complementando com a
descrição conjunta do dragão e do urso como ameaças
existenciais.
Contudo, apesar de todo este fogo cruzado, os atores de toda a Eurásia
já não se sentem propriamente impressionados com o império
da águia armada até aos dentes. Especialmente depois de a crista
da
águia ter sido gravemente ferida por fracassos sobre fracassos, no
Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria. Os
porta-aviões da águia que patrulham a parte oriental do Mare
Nostrum não estão propriamente a assustar o urso, os persas e os
sírios.
Um acordo entre a águia e o urso sempre foi um mito. Demorou algum tempo
e muita perturbação financeira até o urso
perceber que não iria haver nenhum acordo, enquanto o dragão
só via acordo para um confronto aberto.
Depois de se estabelecer, lentamente, mas com segurança, como a
potência militar mais avançada do planeta, com conhecimentos
hipersónicos, o urso chegou a uma conclusão espantosa:
já
não nos preocupamos com o que a águia diz ou faz.
Sob o vulcão em erupção
Entretanto, o dragão continua a expandir-se, inexoravelmente, por todas
as latitudes asiáticas, assim como pela África, pela
América Latina e até pelas pastagens infestadas pelo desemprego
dos cegos que guiam os cegos, atingidos pela austeridade.
O dragão está firmemente convencido de que, se for encurralado ao
ponto de ter de recorrer a uma opção nuclear, detém o
poder de fazer explodir o estarrecedor défice da águia
[2]
, reduzir a zero a sua avaliação de crédito e criar o caos
no sistema financeiro mundial.
Não é de admirar que a águia, sob uma nuvem paranoica que
tudo envolve, de dissonância cognitiva, alimentando ininterruptamente a
propaganda do estado aos seus súbditos e lacaios, continue a cuspir lava
como um vulcão em erupção impondo
sanções a uma grande parte do planeta, entretendo sonhos
eróticos
(wet dreams)
de mudança de regime, lançando um embargo total contra os
persas, ressuscitando a "guerra contra o terrorismo" e tentando
punir
quaisquer jornalistas, editores ou denunciantes que revelem as suas
maquinações internas.
Dói imenso reconhecer que o centro político-económico de
um novo mundo multipolar vai ser a Ásia ou seja a Eurásia.
À medida que a águia se torna cada vez mais ameaçadora, o
urso e o dragão aproximam-se cada vez mais na sua parceria
estratégica. Agora, tanto o urso como o dragão têm
demasiados laços estratégicos por todo o planeta para serem
intimidados pelo enorme Império de Bases [militares] da águia ou
por aquelas coligações periódicas dos que a isso se
dispõem (um tanto relutantes).
Para corresponder à integração abrangente em curso da
Eurásia, de que as Novas Rotas da Seda são o símbolo
gráfico, a fúria da águia, sem freios, nada tem a oferecer
exceto requentar guerra contra o Islão, em conjunto com o cerco
bélico ao urso e ao dragão.
Depois, há a Pérsia esses mestres jogadores de xadrez. A
águia tem vindo a perseguir os persas desde que eles se viram livres do
procônsul da águia, o Xá, em 1979 isso depois de a
águia e a pérfida Albion terem esmagado a democracia em 1953
e colocado o Xá no poder, o qual fazia com que Saddam se parecesse a um
Gandhi.
A águia quer todo o petróleo e o gás natural de volta
para não falar de um novo Xá no papel de novo
polícia do Golfo Pérsico. A diferença é que, agora,
o urso e o dragão estão a dizer Nem Pensem. O que é que a
águia irá fazer? Hastear a bandeira falsa para acabar com todas
as bandeiras falsas?
É onde estamos agora. E mais uma vez, chegámos ao fim
embora não seja o fim do jogo. Ainda não há nenhuma moral
para esta fábula modernizada. Continuamos a sofrer os ataques e as
frechadas de um lamentável destino. A nossa única e débil
esperança é que um grupo de
Homens vazios
[3]
obcecados pelo Segundo Advento [do Messias] não transforme a Guerra
Fria 2.0 num
Armagedão
.
06/Maio/2019
[1] Beijar o céu: Realizar aspirações, frase de
canção de Jimi Hendrix.
[2]
Here's What Happens if China DUMPS Its $1 Trillion in US Debt Amid Trade War
[3] Homens vazios: Refere-se à poesia
The Hollow Men
, de T. S. Elliot: "[...] Este é o modo como o mundo acaba.
Não com um bang mas com uma lamúria".
Tradução de Margarida Ferreira
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Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..
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