A China tem uma alternativa ao neoliberalismo
Como país constrói uma economia de mercado regulada. Por manter finanças e moeda sob controle público, investe em infraestrutura, reduz rapidamente a pobreza e resiste a crises. O que esta experiência pode ensinar ao resto do mundo
por Ellen Brown | Global Research
Outras Palavras - 16 de agosto, 2019
https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/a-asia-resiste-ao-consenso-de-washington/
Quando
o banco
central dos EUA (o Federal
Reserve, Fed)
cortou as taxas de juros na semana passada, comentaristas ficaram se
perguntando sobre
o
porquê. Segundo dados oficiais, a economia estava se recuperando, o
desemprego estava abaixo de 4% e o crescimento do produto interno
bruto estava acima de 3%. Pelo raciocínio do próprio Fed, o que se
esperaria era, ao contrário, um aumento das taxas
Os
especialistas de mercado explicaram tratar-se de uma guerra comercial
e de uma guerra cambial. Outros bancos centrais estavam cortando suas
taxas, e o Fed teve que segui-los
para evitar que o dólar ficasse supervalorizado em relação a
outras moedas. A teoria é que um dólar mais barato tornará os
produtos norteamericanos
mais atraentes nos mercados externos,
ajudando as bases industriais
e
a
mão-de-obra
do
país.
No
fim de semana, o presidente Trump foi além
ds cortes de juros, ameaçando impor, em 1º
de setembro, uma tarifa suplementar de
10% sobre produtos chineses no valor de 300 bilhões de dólares. A
China respondeu suspendendo as importações de produtos agrícolas
dos EUA por empresas estatais e deixando cair o valor do yuan. Na
segunda-feira, o índice Dow Jones Industrial Average caiu quase 770
pontos, seu pior dia em 2019. A guerra prosseguia.
O
problema é
que as guerras
cambiais
não têm vencedores.
Isso foi demonstrado políticas
de “peça a seu vizinho” [“beggar-thy-neighbor”]
dos
anos 1930,
que apenas aprofundaram a Grande Depressão. Como o economista
Michael Hudson observou
em uma entrevista concedida em junho à jornalista Bonnie Faulkner,
tornar os produtos norte-americanos
mais baratos no exterior pouco contribuirá para a economia do
país,
que
não tem mais
uma base de produção competitiva ou produtos para vender. Os
trabalhadores de hoje estão em grande parte nas indústrias de
serviços – motoristas de táxi, funcionários de hospitais,
agentes de seguros e afins. Um dólar mais barato no exterior só faz
com que os bens de consumo no Walmart e as matérias-primas
importadas para as empresas dos EUA fiquem
mais
caras.
O que é realmente desvalorizado, quando a cotação de uma moeda cai, diz Hudson, são o preço e as condições de trabalho de seus assalariados. A razão pela qual os trabalhadores norte-americanos não podem competir com estrangeiros não é a sobrevalorização do dólar. São os custos maiores de moradia, educação, serviços médicos e transporte. Nos países concorrentes, esses custos são geralmente subsidiados pelo Estado.
O
principal concorrente dos EUA na guerra comercial é obviamente a
China, que subsidia não apenas os custos dos trabalhadores, mas
também os custos de suas empresas. O governo controla 80% dos
bancos, que fazem empréstimos em condições favoráveis a
empresas nacionais,
especialmente estatais. Se as empresas não puderem pagar os
empréstimos, nem os bancos nem as empresas são levadas
à falência,
pois isso significaria perder empregos e fábricas. Os empréstimos
inadimplentes são apenas contabilizados nos balanços ou caducam.
Nenhum credor privado é ferido, uma vez que o credor é o governo e
os empréstimos foram criados nos livros dos bancos, em primeiro
lugar (seguindo, aliás
a prática
bancária padrão
a
nível global). Jeff Spross analisou
o fenômeno em detalhes, em
um artigo da Reuters de maio de 2018 intitulado “Os
bancos chineses são grandes. Muito grandes?”
Como
o governo chinês é dono da maioria dos
bancos, e imprime a moeda, tecnicamente pode manter esses bancos
vivos e emprestando para sempre. Pode soar estranho dizer que os
bancos da China nunca entrarão em colapso, não importando o quão
absurdas sejam suas posições de empréstimo. Mas os sistemas
bancários são assim: lidam
apenas com o
fluxo de dinheiro.
Spross
citou Richard Vague, ex-executivo-chefe
de
banco e
presidente
da Governor’s Woods Foundation,
de
Filadélfia, que
explicou: “A China comprometeu-se
com um alto nível de crescimento. E crescimento depende
fundamentalmente do financiamento. Pequim vai “entrar e determinar
a lucratividade, o capital, sanar
a dívida ruim dos bancos estatais… por todos
os meios
que você e eu não veríamos adotados
nos
Estados Unidos”.
Agitação política e trabalhista é um grande problema na China. Spross escreve que o governo mantém a população satisfeita ao estimular crescimento econômico alto e distribuir seus frutos entre os cidadãos. Cerca de dois terços da dívida chinesa são devidos apenas pelas corporações, que também são em grande parte estatais. O crédito corporativo é, portanto, uma forma indireta de política industrial financiada pelo governo – não por meio de impostos, mas pelo privilégio exclusivo que os bancos têm de criar dinheiro em seus balanços.
A
China considera que este é um modelo bancário melhor do que o
sistema ocidental privado, focado em lucros de curto prazo para seus
acionistas. Mas os formuladores de políticas dos EUA [e
de quase todos os países ocidentais]
consideram os subsídios que
a
China oferece
a suas
empresas e trabalhadores como “práticas comerciais desleais”.
Eles querem que a China renuncie aos subsídios do Estado e a outras
políticas protecionistas para nivelar a competição. Mas Pequim
argumenta que as reformas exigidas equivalem a um
“golpe
de Estado econômico”.
Como diz Hudson: “Essa é a luta que Trump tem contra a China. Ele
quer que os bancos governem
a
China e tenham um “livre” mercado a
seu dispor.
Ele diz que a China enriqueceu nos últimos cinquenta anos por meios
injustos, com ajuda do governo e empreendimento público. Na
verdade, ele
quer que os trabalhadores
chineses
sintam-se
tão
ameaçados e inseguros quanto os norte-americanos.
Eles devem se livrar de seus transportes públicos. Eles devem se
livrar de seus subsídios. Eles devem deixar muitas de suas empresas
irem à falência para que as
corporações estadunidenses possam
comprá-las. Eles devem ter o mesmo tipo de mercado livre que
destruiu a economia dos EUA.“
Num
artigo
publicado
em 1º/8, na revista “Foreign Affairs”, Kurt
Campbell e Jake Sullivan chamam isso de “uma emergente
disputa
de modelos”.
Um
Guerra Fria Econômica
Para
entender o que está acontecendo, vale olhar um pouco para a
História. O modelo de livre mercado esvaziou
a base industrial
dos EUA no início da era Thatcher / Reagan, dos anos 70 e 80, quando
as políticas econômicas neoliberais se consolidaram. Enquanto isso,
as economias emergentes da Ásia, lideradas pelo Japão, roubavam a
cena com um novo modelo econômico chamado “capitalismo
de mercado guiado pelo Estado“.
O Estado determinou as prioridades, encomendou o trabalho e contratou
empresas privadas para executá-lo. O modelo superou os defeitos do
sistema comunista, que havia colocado a propriedade e o controle
direto
nas
mãos do Estado.
O
sistema japonês de mercado guiado pelo Estado foi eficaz e eficiente
– tão eficaz que foi considerado uma ameaça à existência do
modelo neoliberal baseado em dívida e em “mercados livres”,
promovido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo o autor
William Engdahl em A
Century of War,
no final da década de 1980 o Japão era considerado a principal
potência econômica e bancária do mundo. Seu modelo guiado pelo
Estado também provou ser altamente bem-sucedido na Coreia
do Sul e nas outras economias dos “Tigres Asiáticos”. Quando a
União Soviética entrou em colapso no final da Guerra Fria, o Japão
propôs seu modelo aos antigos países comunistas, e muitos começaram
a considerá-lo,
bem como o exemplo da Coreia do Sul, como alternativas viáveis ao
sistema de livre mercado dos EUA. O capitalismo guiado pelo Estado
assegurava
o bem-estar geral sem destruir o incentivo capitalista. Engdahl
escreveu:
As economias dos Tigres Asiáticos criaram um grande embaraço para o modelo de livre mercado do FMI. Seu sucesso em conciliar empresas privadas com um papel econômico forte do Estado foi uma ameaça à agenda do Fundo. Enquanto os Tigres Asiáticos demonstrassem sucesso com um modelo baseado em um forte papel estatal, os antigos estados comunistas, e não apenas eles, poderiam argumentar contra o projeto extremista representado pelo FMI. No leste da Ásia, durante a década de 1980, taxas de crescimento econômico anual de 7-8%, segurança social crescente, educação universal e alta produtividade do trabalho foram todas apoiadas por orientação e planejamento estatal, embora em uma economia de mercado – uma forma asiática de paternalismo benevolente.
Assim
como os EUA entraram em uma Guerra Fria para destruir o modelo
comunista soviético, os interesses financeiros ocidentais começaram
a destruir essa ameaça emergente asiática.
Ela foi desarmada quando economistas
neoliberais ocidentais persuadiram o Japão e os Tigres Asiáticos a
adotar um sistema de livre mercado e abrir suas economias e empresas
a investidores estrangeiros. Os especuladores ocidentais então
derrubaram os países vulneráveis, um por um, na “crise asiática”
de 1997-8. Somente a China permaneceu como uma ameaça econômica ao
modelo neoliberal ocidental, e essa ameaça existencial é o alvo das
guerras comerciais e monetárias hoje.
Se
não se pode vencê-los…
Em
seu artigo de 1º/8
na Foreign Affairs,
intitulado “Competição sem catástrofe”, Campbell e Sullivan
escrevem que a tentação é comparar essas guerras comerciais
econômicas com a Guerra Fria contra
a Rússia; mas a analogia é inadequada:
“A China é hoje uma concorrente mais formidável economicamente, mais sofisticada diplomaticamente e mais flexível ideologicamente do que a União Soviética jamais foi. E, ao contrário da União Soviética, a China está profundamente integrada ao mundo e entrelaçada com a economia dos EUA.”
Ao
contrário do sistema comunista soviético, não se pode esperar que
o sistema chinês “desmorone sob seu próprio peso”. Os EUA não
podem esperar, e nem deveriam querer, destruir a China, dizem
Campbell e Sullivan. Em vez disso, devem buscar um estado de
“coexistência em termos favoráveis aos
interesses e valores dos EUA”.
A
implicação é que a China, sendo forte demais para ser eliminada do
jogo como a União Soviética foi,
precisa ser coagida ou bajulada a adotar o modelo neoliberal e
abandonar o apoio estatal de suas indústrias e a propriedade de seus
bancos. Mas o sistema chinês, embora obviamente não seja perfeito,
tem um histórico impressionante de sustentar o crescimento e o
desenvolvimento a longo prazo. Enquanto a base manufatureira dos EUA
estava sendo solapada sob o modelo de livre mercado, a China estava
sistematicamente construindo sua própria base de manufatura e
investindo pesadamente em infraestrutura e tecnologias emergentes, e
o estava fazendo com o crédito gerado por seus bancos estatais. Em
vez de tentar destruir o sistema econômico da China, poderia ser
mais “favorável aos interesses e valores dos EUA” adotar suas
práticas industriais e bancárias mais eficazes.
Os
EUA não podem vencer uma guerra cambial
através da adoção de medidas de desvalorizações cambiais
competitivas que desencadeiam uma “corrida para o fundo do
poço”. E não
podem vencer uma guerra comercial instalando barreiras comerciais
competitivas que simplesmente os afastem dos benefícios do comércio
cooperativo. Mais favorável aos interesses e valores
norte-americanos do
que a guerra com seus parceiros
comerciais seria cooperar no compartilhamento de soluções,
incluindo soluções bancárias e de crédito. Os chineses provaram a
eficácia do seu sistema bancário público no apoio às suas
indústrias e seus trabalhadores. Em vez de vê-lo como uma ameaça
existencial, os EUA poderiam
agradecê-los por testar o modelo e obrigá-los
a uma virada.
Tradução: Felipe Calabrez
Ellen Brown é presidente do Public Banking Institute e autora de doze livros, incluindo o best-seller Web of Debt. Em The Public Bank Solution, seu livro mais recente, ela examina historicamente e globalmente modelos de banca pública. Seus artigos estão no blog ellenbrown.com.
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