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A tragédia e a falácia do experimento balcânico da OTAN: 20 anos depois

por Nina Markovic Khaze | Counterpunch

Carta Maior - 18 de abril, 2019

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24 de março de 1999 era um dia normal de escola em Belgrado no meio da semana (quarta-feira). De repente, metade de minha turma de ensino médio silenciosamente voltou para casa mais cedo, dizendo que parentes estavam ligando para eles do exterior dizendo que bombardeios da OTAN tinham começado no sul, inclusive com autorização para atacar Belgrado. Meus amigos e eu (para quem a TV por satélite era um luxo inimaginável) relutantemente deixamos nossa aula interrompida, cada um de nós profundamente preso em pensamentos sobre o que o conflito realmente significava. Nos lembrávamos bem dos comboios de refugiados se derramando através da fronteira ocidental da Sérvia durante as guerras da Croácia e da Bósnia, com muitas crianças refugiadas frequentando nossa escola também e em determinado momento misturando-se com os moradores locais. A televisão estatal RTS estava apresentando sua programação usual, fortemente controlada por comparsas de Milosevic, sem sinal de eventos aterrorizantes. Perto das 20:12, que era a hora das amplamente populares novelas latino-americanas, houve um estrondo alto no bairro e todas as janelas de nosso prédio de apartamentos balançaram. Eram petardos? Um pouco depois as sirenes de ataque aéreo começaram a soar; o agora famoso comentarista do canal independente de televisão Studio B, Avram Izrael, estava prestes a começar seu comentário diário sobre ataques aéreos. Essa foi a primeira bomba jogada em Belgrado, uma capital europeia durante uma operação militar ofensiva, chegando muito perto de casa. À nossa volta havia muitas instalações militares abaixo das montanhas Strazevica e Avala, que se tornaram um alvo diário para outro experimento balcânico fracassado da OTAN. O símbolo de Belgrado e da antiga Iugoslávia, a Torre Avala e uma transmissora de televisão, foram destruídas durante esse ataque, somente seis dias depois da matriz da RTS ter sido bombardeada matando dúzias de jornalistas, o que a Anistia Internacional declarou como sendo um “crime de guerra”.

Não tínhamos abrigos contra bombas atômicas em nosso prédio (por toda a velha Iugoslávia, alguns desses ainda podem ser encontrados), e uma família tinha construído uma casa em nosso porão cujas portas eles generosamente abriram para as crianças à noite, incluindo eu minha melhor amiga que frequentemente nos visitava. Prédios mais novos tinham abrigos adequados dos dias da velha Iugoslávia, mas não podíamos ir lá e já estavam cheios. Nossos vizinhos estavam estocando gasolina nos porões; se uma bomba caísse em nosso prédio, nós mesmos nos tornaríamos uma bomba gigante. Lembro-me de colocar todas as minhas principais posses (joias da família e algo de dinheiro em moeda estrangeira) em um urso marrom (um souvenir da Austrália) com um zíper grande em sua barriga e manter nossos passaportes próximos. O meu era diferente — tinha um claro carimbo da embaixada australiana e um visto de 3 meses de turista nele, nunca utilizado. As embaixadas estavam se fechando assim como as fronteiras. Somente a da Hungria continuava aberta, mas a OTAN então já tinha atacado uma escolta de refugiados albaneses justificando isso como danos colaterais. Uma pergunta estava na mente de todos: vamos acabar encontrando um desses “mísseis por engano”, aumentando o número de mortos civis deste conflito? Pontes em Novi Sad já tinham sido destruídas enquanto as pessoas as cruzavam. A embaixada chinesa em Belgrado tinha sido atacada, matando três e ferindo vinte funcionários da embaixada. O ônibus tinha que dar voltas e voltas para chegar à fronteira norte, enquanto que havia soldados se escondendo nos arbustos pertos da rodovia que eu conseguia ver pela janela enevoada, com minha mãe me acompanhando para o nosso adeus em Budapeste em uma curta estada lá organizada por um parente. Há uma comunidade considerável de sérvios na Hungria (uma vez um grande grupo étnico dentro do Império Austro-Húngaro) e uma orquestra cigana tocava uma música famosa para nós em nossa mesa de jantar com palavras sinistras “Adeus por enquanto, e quem sabe quando e onde nos encontraremos novamente”.

Isso foi uma quinzena depois do começo dos ataques aéreos. Minha memória da época ainda é vívida, clara e intocada. Ainda tenho fresco o sentimento de uma animação estranha e perigosa ao ouvir os tiros da defesa antiaérea e observar a capital coberta por escuridão quando a eletricidade foi cortada. As pessoas não tinham certeza quanto a se a luz atrairia alguma atenção das máquinas assassinas invisíveis que conseguíamos ouvir ameaçadoramente sobre nossas cabeças, e portando todos estavam relutantes até em colocar velas. Havia sons persistentes de cachorros uivando nas ruas. Havia numerosas cenas de pessoas no centro da cidade protestando com música contra o bombardeio enquanto ficavam desafiadoramente em grandes pontes de Belgrado, defendendo-as das bombas da OTAN. Milhares de pessoas todos os dias se juntavam. Era uma inspiração para viver cada dia individualmente. As pessoas cumprimentavam as bombas com humor e música.

Para servidores públicos era obrigatório comparecer ao trabalho, o que colocava cidadãos em perigo. A empresa de minha mãe, o famoso Centro de Convenções Sava Centar (que foi originalmente construído para receber lá a primeira conferência da Iugoslávia do Movimento Não Alinhado em 1961) estava na lista de alvos da OTAN pois alojava um dos três maiores canais de televisão. Foi uma sorte não ter sido atingido durante a onda de bombardeios da OTAN no coração do sudoeste da Europa.

Tempos surreais para pessoas surreais, com vizinhos cumprimentando uns aos outros com sorrisos reais pela primeira vez em anos, ou mesmo décadas. Alguns mandando seus filhos para o interior, somente para algumas áreas lá também serem assoladas com ainda mais danos colaterais. O que estava realmente ocorrendo em Kosovo não foi reportado localmente, assim como o que estava acontecendo no resto da Sérvia e em Montenegro não foi reportado internacionalmente. Para mim então veio uma passagem só de ida para a Austrália e uma maravilhosa família australiana com a qual vivi enquanto cursava um prestigioso colégio em Perth. Não olhei para trás, mas parte do meu coração foi para sempre deixado para trás. A guarda foi transferida para meu pai da Austrália para que meu status virasse permanente. Menos de uma década depois, ironicamente trabalhei como servidora parlamentar em Canberra aconselhando os parlamentares australianos sobre a OTAN!

Tudo voltou à minha mente com uma lembrança abaladora no mês passado; o aniversário de 20 anos do ataque brutal, não provocado e extraordinário de 19 membros da OTAN contra uma nação soberana da Europa, a República Federal da Iugoslávia, composta da Sérvia e de Montenegro. Como uma testemunha adolescente viva da tragédia pan-européia, o 24 de março será lembrado como um dia negro para muitas pessoas que vivem no coração dos Balcãs e para seus filhos que agora residem no Ocidente devido ao conflito. Por 78 dias eles tiveram que reviver algumas das experiências de seus antepassados que sofreram um bombardeio de saturação durante a Segunda Guerra Mundial primeiro, em um caso de amarga ironia histórica, pelos nazistas durante a Operação Retribuição em 1941, e depois pelas forças Aliadas que foi, de acordo com diversas fontes, ainda pior e no qual alguns dos meus familiares perderam suas jovens vidas. A Guerra de Kosovo foi um drástico ponto de virada para a política internacional, apontando os limites, e a hipocrisia, da intervenção humanitária. Mesmo defensores há muito tempo de tais direitos, incluindo Václav Havel, sentiram necessário atacar a República Federal da Iugoslávia sem explícita aprovação do Conselho de Segurança da ONU, apesar de meros 35% da população terem apoiado isso. Com otimismo injustificado, ele argumentou que tinha sido a primeira guerra a não ser travada “em nome de ‘interesses nacionais’”.

O ataque de bombardeio da OTAN no território sérvio e de Montenegro, iniciado com zelo evangélico pelo presidente Bill Clinton dos Estados Unidos (que estava reparando o estrago de seu escândalo com Monica Lewinsky), e pelo primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair, aproximou o mundo de outra crise perigosa entre as forças ocidentais e as russas. Um conflito mais profundo foi provavelmente evitado graças ao pensamento rápido do Tenente-General britânico Sir Mike Jackson, que resistiu ao confronto militar com Moscou que era fortemente defendido por seu chefe, o líder da OTAN Wesley Clarck, com as famosas palavras: “não, não vou fazer isso. Não vale a pena começar a Terceira Guerra Mundial”. A OTAN, entretanto, bombardeou hospitais, escolas, parquinhos de crianças, postos de gasolina, trens, fábricas, tudo em nome da “paz” e da “prevenção de conflitos”. Centenas de milhares foram realocados por causa deste conflito.

Isolar o território de Kosovo de uma nação soberana na Europa ia contra todos os princípios das leis internacionais que o mundo já conheceu, representando um ponto de virada nas relações do Ocidente com a Rússia e conduzindo um novo princípio politizado da chamada “intervenção humanitária”. A operação militar da OTAN foi ironicamente nomeada “Anjo Misericordioso”, proporcionando o precedente de cenários de mudança de regime desde o Iraque em 2003 até a Líbia em 2011. Ela também causou outra migração em massa nos Bálcãs, com centenas de milhares de pessoas sendo primeiramente espalhadas pela região, e depois durante os próximos anos emigrando dos Bálcãs para a Europa Ocidental e para além dos mares para a Austrália e a Nova Zelândia. A intervenção perpetrou exatamente a mesma coisa que desejava impedir: deslocamento e transtorno em massa.

Os Bálcãs estão agora vivendo com o legado deste impulso humanitário iniciado pelos países da OTAN, um legado profundamente contaminado com o urânio em decaimento das bombas da OTAN, com suas terríveis consequências para a saúde humana, animal e ambiental ainda sendo muito discutidas. Atualmente há um movimento de sérvios para iniciar um processo contra a OTAN por causa da contaminação e dos danos infligidos. Os bombardeios destruíram a maior parte da indústria sérvia pois os alvos não eram somente militares: escolas, hospitais, fábricas, postos de gasolina, transmissoras de tv e outras infraestruturas civis sofreram terrivelmente com os bombardeios da OTAN. A Sérvia, e sua área separada, a província de Kosovo, que se tornou um estado semi-independente (com assistência internacional), estão agora entre as áreas mais pobres da Europa, com uma evasão de cérebros massiva, desemprego da juventude e aumento da desigualdade social assim como a dependência de remessas estrangeiras. Ainda assim continua sendo altamente popular como um destino de viagens muito procurado, famosa por sua vida noturna e rebeldia através da música e do humor que demonstrou diariamente durante os bombardeios da OTAN e nas campanhas midiáticas contra os sérvios e o resto da Iugoslávia em 1999.

Fiz coisas extraordinárias na Austrália, concluindo quatro formações e trabalhando tanto como servidora pública quanto parlamentar. Todos os meus estudos também lidaram com o assunto da guerra de Kosovo de diferentes formas, todas invariavelmente vendo-a como debilitante para o panorama europeu: minha tese com honras analisou a guerra de Kosovo como o catalisador para a mudança da política externa alemã e italiana depois da guerra fria; a minha tese de mestrado considerou como sendo um obstáculo para a democratização nos Bálcãs, e no PhD eu a considerei como sendo um legado prolongado que tem atrasado as perspectivas de ascensão da Sérvia para a UE até hoje. Eu forneci conselhos personalizados e independentes às Autoridades na Presidência do Parlamento Federal, que frequentemente me levavam a suas reuniões com dignitários internacionais. Levei uma delegação parlamentar para o exterior e facilitei as visitas de muitos visitantes internacionais ao Parlamento, incluindo da OTAN e de um lobista proeminente a favor da guerra de Kosovo que achei bastante agradável a nível pessoal. Enquanto crio uma jovem família em Sydney, o conflito ainda existe em meus sonhos, além da sensação de deslocamento que eles ocasionalmente trazem, junto com o sentimento de que crimes foram cometidos naqueles 78 dias por 19 membros da Aliança da OTAN que seguiram em frente com a construção da maior base militar em Kosovo para o sudoeste da Europa.

Tradução: equipe Carta Maior

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