Após a tempestade no Japão, convite a conhecer uma das grandes áreas sombrias do sistema: os derivativos, montanha de apostas especulativas que pode equivaler a 37 vezes o PIB global – e ameaça até mesmo os depósitos bancários
Não foram os atos altamente visíveis do Congresso,
mas as ações aparentemente mundanas
e muitas vezes não transparentes das agências reguladoras
que alavancaram a grande transformação
dos bancos comerciais dos EUA, de instituições
tradicionalmente conservadoras de captação de depósitos
e concessão de empréstimos, para prestadores de serviços
de gestão e intermediação de risco financeiro em atacado.
Professora Saule Omarova,
“The Quiet Metamorphosis”
University of Miami Law Review, 2009
Enquanto o mundo está absorvido pelo drama das eleições dos EUA, a bomba-relógio dos derivativos continua a tiquetaquear ameaçadoramente nos bastidores. Ninguém sabe o tamanho real do mercado de derivativos, já que uma parte significativa é negociada over-the-counter, escondida em veículos de propósito específico fora do balanço dos bancos. No entanto, quando Warren Buffet chamou os derivativos de “armas financeiras de destruição em massa” em 2002, seu valor nocional foi estimado em US$ 56 trilhões. Vinte anos depois, o Banco de Compensações Internacionais estimou esse valor em US$ 610 trilhões. E comentaristas financeiros calcularam esse valor em até US$ 2,3 quadrilhões ou até US$ 3,7 quadrilhões, muito além do PIB global, que era cerca de US$ 100 trilhões em 2022.
A maior parte deste cassino é administrada pelos mesmos bancos que guardam nossos depósitos supostamente em segurança. Os derivativos são vendidos como “seguro” contra riscos, mas na verdade acrescentaram uma grossa camada de risco, porque o mercado é tão interconectado que qualquer falha pode ter um efeito dominó. A maioria dos bancos envolvidos também é considerada “grande demais para falir”, o que significa que nós, o povo, seremos responsáveis por resgatá-los se eles falirem.
Os derivativos são considerados tão arriscados que, nos EUA, a Lei de Falências de 2005 e o Código Comercial Uniforme lhes concedem (junto com as operações repo, de recompra de títulos públicos) “super-prioridade” em falências. Isso significa que, se um banco falir, os proprietários de derivativos e operações de recompra são pagos primeiro, retirando recursos do mesmo poço de liquidez que contém nossos depósitos. (Veja The Great Taking, de David Rogers Webb, e meus artigos anteriores aqui e aqui.) Uma crise de derivativos poderia facilmente drenar esse poço, não deixando nada para nós como depositantes — ou para os credores “garantidos”, incluindo governos estaduais e locais.
Conforme detalhado por Pam e Russ Martens, editores do Wall Street on Parade, em 31 de dezembro de 2023, os bancos Goldman Sachs, JPMorgan-Chase, Citibank, e Bank of America detinham um total de US$ 168,26 trilhões em derivativos, de um total de US$ 192,46 trilhões. Isso significa que quatro bancos detinham 87% de todos os derivativos em todas as 4.587 instituições seguradas federalmente então nos EUA.
Em junho de 2024, a Corporação Federal de Seguros sobre Depósitos (Federal Deposit Insurance Corporation FDIC) e o comitê de diretores do banco central dos EUA (Federal Reserve) divulgaram conjuntamente suas conclusões sobre os “testamentos em vida” dos oito mega bancos dos EUA – seus planos de resolução ou encerramento em caso de falência. O Fed e a FDIC criticaram todos os quatro maiores bancos de derivativos por deficiências em seus planos de encerramento de derivativos.
Bancos ou apostadores no cassino de derivativos?
Os bancos não são apenas intermediários no mercado de derivativos. Eles são jogadores ativos, que assumem posições especulativas. Neste século, escreve a professora Saule Omarova, os maiores bancos comerciais dos EUA tornaram-se “uma nova espécie de super-intermediário financeiro — um distribuidor atacadista de risco financeiro, conduzindo uma ampla variedade de atividades de mercados de capitais e derivativos, negociando commodities físicas e até mesmo comercializando eletricidade.” Ela observa que o Federal Reserve permitiu que várias empresas financeiras adquirissem e vendessem commodities físicas (incluindo petróleo, gás natural, produtos agrícolas e eletricidade) no mercado à vista para proteger suas atividades de derivativos de commodities, e tomassem ou entregassem essas commodities para liquidar as transações.
Não foi o Congresso dos EUA que autorizou essa expansão das atividades bancárias permitidas. Foi o Escritório do Controlador da Moeda (Office of the Comptroller of the Currency — OCC), parte do “deep state administrativo,” um corpo permanente de reguladores não eleitos que permanecem em seus postos, enquanto os políticos vêm e vão. Como Omarova explica:
Por meio de ações administrativas aparentemente rotineiras e muitas vezes não transparentes, o OCC efetivamente capacitou os grandes bancos comerciais dos EUA a se transformarem de instituições tradicionalmente conservadoras de captação de depósitos e concessão de empréstimos (cuja segurança e solidez eram protegidas por restrições estatutárias e regulatórias contra atividades potencialmente arriscadas) em uma nova espécie de “super-intermediários” financeiros, ou distribuidores atacadistas de puro risco financeiro…
Além disso, algumas das decisões mais cruciais escaparam ao escrutínio público porque foram tomadas no mundo subterrâneo das ações administrativas invisíveis ao público, através da interpretação de orientação política.
A autoridade do OCC para regular bancos remonta, nos EUA, à Lei Nacional dos Bancos (National Bank Act) de 1863, que concede aos bancos nacionais autoridade geral para se engajar em atividades necessárias para conduzir o “negócio bancário”, incluindo “os poderes incidentais que sejam necessários para conduzir o negócio bancário.” O “negócio bancário” não é definido na lei. Omarova escreve:
A Seção 24 (Sétima) da Lei Nacional dos Bancos concede aos bancos nacionais o poder de exercer todos os poderes incidentais necessários para conduzir o negócio bancário; descontando e negociando notas promissórias, saques, letras de câmbio e outros documentos de dívida; recebendo depósitos; comprando e vendendo câmbio, moedas e metais preciosos; emprestando dinheiro com garantia pessoal; e obtendo, emitindo e circulando notas.
Nenhuma menção é feita ao comércio ou negociação de derivativos.
Os poderes dos bancos foram ainda mais limitados pelo Congresso na Lei Glass-Steagall, de 1933, que explicitamente proibiu os bancos de negociar títulos de capital corporativo; e por outras normas aprovadas posteriormente. No entanto, a parte da Lei Glass-Steagall que separa a captação de depósitos do banco de investimento foi revertida pela Lei de Modernização dos Futuros de Mercadorias (Commodity Futures Modernization Act) em 2000. Omarova escreve que isso permitiu que o OCC articulasse “uma definição excessivamente expansiva do ‘negócio bancário’ como intermediação financeira e negociação de risco financeiro, em todas as suas formas, e … esse padrão de análise permitiu que o OCC expandisse a gama de atividades permitidas aos bancos virtualmente sem qualquer restrição estatutária.”
O que pode ser feito?
Tornou-se agora consenso que a crise financeira de 2008 foi em grande parte uma crise de derivativos. Mas os grandes esforços de reforma financeira nos anos seguintes foram incapazes de corrigir o problema subjacente. Em um artigo da Forbes intitulado “Big Banks and Derivatives: Why Another Financial Crisis Is Inevitable”, Steve Denning escreve:
Os bancos hoje são maiores e mais opacos do que nunca, e continuam a negociar derivativos por meio de muitas das práticas adotadas antes da crise – porém, em uma escala maior e com exatamente os mesmos riscos desconhecidos.
A maior parte dessa negociação de derivativos é conduzida pelos maiores bancos. Uma suposição comumente mantida é que o risco real dos derivativos é muito menor do que o “valor nocional” declarado nos balanços dos bancos, mas Denning observa:
Como aprendemos em 2008, é possível perder uma grande parte do “valor nocional” de uma negociação de derivativos se a aposta der muito errado; e particularmente se ela estiver ligada a outras apostas, resultando em perdas simultâneas sofridas por outras organizações. Os efeitos em cadeia podem ser maciços e imprevisíveis.
Em 2008, os governos tinham recursos suficientes para evitar uma calamidade total. Os governos de hoje, com recursos escassos, não estão em posição de lidar com outro resgate maciço.
Dennin conclui:
A regulamentação e a fiscalização só funcionarão se acompanhadas de uma mudança de paradigma no setor bancário que mude o contexto em que os bancos operam e a forma como são administrados, de modo que eles mudem seu objetivo de ganhar dinheiro a qualquer custo e passem a agregar valor às partes interessadas, especialmente aos clientes. Isso exigiria ação do Legislativo, da SEC, do mercado de ações e das escolas de negócios, bem como, é claro, dos próprios bancos.
Uma mudança de paradigma no “negócio bancário”
Em um artigo de setembro de 2023 intitulado “Rebuilding Banking Law: Banks as Public Utilities” [“Reescrevendo a Lei Bancária: Os bancos como serviços públicos”], Lev Menando, professor de direito de Yale, e Morgan Ricks, professor de direito de Vanderbilt, propõem mudar o objetivo dos bancos para que as instituições privadas não sejam meros negócios com fins lucrativos; eles têm obrigações afirmativas para com o público. Os autores observam que, sob o arcabouço do New Deal, que estava enraizado na Lei Nacional dos Bancos, de 1864, os bancos eram em grande parte geridos como serviços públicos. As cartas-patente para criá-los eram concedidas apenas quando consistentes com a conveniência e necessidade pública, e apenas bancos com carta patente podiam expandir a oferta de dinheiro concedendo empréstimos.
A proposta Menand e Ricks é bastante detalhada e inclui muito mais do que regular derivativos, mas sobre essa questão específica, eles propõem que:
Embora os bancos tenham permissão para celebrar swaps de taxas de juros para proteger seus clientes, não teriam permissão para participar da negociação de derivativos, ou fazer apostas neses mercados. A negociação de derivativos e a especulação não se coadunam com a função monetária dos bancos. Além dos compromissos de empréstimo, os bancos não entrariam no mercado de garantias ou outras formas de seguro.
Isso significaria o fim do cassino de derivativos? Não – mas dele estariam excluídos os bancos encarregados de proteger nossos depósitos:
O plano acima não diz nada sobre quais atividades podem ocorrer fora do sistema bancário. Diz apenas que essas atividades não podem ser financiadas com ativos sujeitos a corrida [referindo-se principalmente a depósitos]. Em princípio, poderíamos imaginar um grau muito amplo de latitude para empresas não bancárias — sujeito, é claro, a padrões apropriados de divulgação, medidas antifraude e proteção ao consumidor e ao investidor. Assim, empresas de valores mobiliários e outras instituições não bancárias poderiam ter liberdade para se envolver em finanças estruturadas, derivativos, negociações proprietárias, e assim por diante. Mas não teriam permissão para “financiar a curto prazo”.
Por “financiamento a curto prazo”, os autores referem-se basicamente a “criar dinheiro,” por exemplo, através de operações de recompra em que empréstimos de curto prazo são rolados continuamente. Em sua proposta, apenas bancos com carta-patente terim o poder de criar dinheiro na forma de empréstimos.
Expandindo o modelo
Richard Werner, professor da escola de administração da Universidade de Southampton que escreveu extensivamente sobre esse assunto, acrescenta que os bancos deveriam ser obrigados a concentrar seus empréstimos em empreendimentos produtivos que criem novos bens e serviços e evitem inflacionar ativos existentes como habitação e ações corporativas.
Derivativos especulativos são uma forma de “financeirização” – dinheiro fazendo dinheiro sem produzir nada. Os vencedores apenas tiram dinheiro dos perdedores. Especular não é ilegal segundo as leis dos EUA, mas as fichas no cassino não deveriam ser nossos depósitos ou empréstimos feitos com seu respaldo.
A proposta Menand/Ricks é para bancos privados, mas os bancos também podem ser transformados em “serviços públicos” através da propriedade direta pelo Estado. O modelo exemplar é o Banco da Dakota do Norte, que não especula em derivativos, não pode falir, faz empréstimos produtivos e tem sido altamente bem-sucedido. (Veja artigo anterior aqui.) O modelo de serviço público também poderia incluir um Banco Nacional de Infraestrutura, como proposto no projeto de lei [da Câmara dos EUA] 4052, que atualmente tem 37 co-autores
O “negócio bancário” pode incluir ganhar dinheiro em favor de acionistas privados e executivos, mas esse negócio deve ser subordinado ao interesse público, que prevaleceria quando os dois objetivos entrassem em conflito.
Infelizmente o Congresso norte-americano tem sido historicamente motivado a fazer grandes mudanças no sistema bancário apenas em resposta a uma Grande Depressão ou Grande Recessão que expõe as falhas fatais no sistema. Com a reversão da “deferência de Chevron”, no entanto, as regras do OCC agora podem ser contestadas no Judiciário. Um poderoso movimento de cidadãos poderia catalisar as mudanças necessárias antes que a próxima Grande Depressão nos atinja.
Uma economia financeirizada não é sustentável nem competitiva. A ênfase deve estar no investimento na economia real. Esse é o tipo de mudança de paradigma necessária se os EUA quiserem sobreviver e prosperar.
Tradução: Antonio Martins
Ellen Brown é presidente do Public Banking Institute e autora de doze livros, incluindo o best-seller Web of Debt. Em The Public Bank Solution, seu livro mais recente, ela examina historicamente e globalmente modelos de banca pública. Seus artigos estão no blog ellenbrown.com.
https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/bomba-relogio-das-financas-globais/