Após o tempo das catedrais, o tempo da indecência, da hipocrisia e da incompetência
por Rémy Herrera
Resistir.info - 22 de abril, 2019
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Uma catedral incendiou-se. Uma das mais belas, na ilha de la Cité, coração ancestral de Paris; uma das mais imponentes, erigida na Idade Média central, ao longo de quase dois séculos (provavelmente entre 1163, sob Luís VII, o Piedoso, e 1345); uma das mais grandiosas, construída graças aos talentos de gerações de arquitectos da nova arte gótica e às mãos de ouro de uma multidão de artesãos e operários dos ofícios tradicionais, posteriormente àquelas de seus companheiros que a restauraram no século XIX depois de o génio de Victor Hugo – o mesmo que celebrou os sans culottes e abriu a porta para os communards – reanimou o apego popular por esta obra-prima. É o monumento mais visitado da Europa: 20 milhões de pessoas por ano passam pelo seu claustro e 13 milhões entram na igreja. Mas os seus sótãos incendiaram-se e o fogo devorou 100 metros da “floresta” de 1.300 troncos de carvalho da sua estrutura, as suas telhas de chumbo e o seu grande pináculo.
QUEM DÁ MAIS?
As brasas do incêndio mal haviam sido extintas pelos nossos bombeiros e os bilionários já, como pragas recônditas, desembainhavam suas carteiras polpudas. Os “líderes da caravana” acotovelavam-se uns aos outros a fim de pagarem um belo “golpe publicitário” e, para quem tem fé, um ingresso na tribuna de honra e alojamento particular no paraíso. As doações afluíram numa colecta obscena. Os leilões alçaram-se no salão de vendas do espiritual. Ouçam, ouçam, boa gente, prosternai-vos aos pés de vossos senhores, dai-lhes graças por sua bondade, agradecei-lhes por sua generosidade e alinhai-vos sob a bandeira da unidade nacional!
Indecência repugnante no seu mundo onde tudo é mercadoria e comunicação, onde tudo se monetiza, compra-se, vende-se, recompra-se, revende-se, avilta-se, corrompe-se, prostitui-se, põe o dinheiro!
À minha direita, 10 milhões de euros oferecidos pelos irmãos Martin e Olivier Bouygues, mestres da construção, da TF1, das telecoms (e até do petróleo canadiano e gás do off-shore da Costa do Marfim), através do seu holding familiar SCDM. Ambos recebem mais de 100 milhões de dividendos por ano, apaixonaram-se pelas vinhas de Château Montrose no Médoc (compraram 130 milhões de euros) e desejariam de desfazer-se do seu iate de 62 metros pelo “preço convidativo” de 59,95 milhões. O império Bouygues factura 33 mil milhões de euros e tem mais de 115 mil assalariados.
Aqui, 10 milhões de euros de Marc Ladreit de Lacharrière, proprietário da sociedade financeira Fimalac, para “o esforço nacional de reconstrução” e “o pináculo, símbolo da catedral”.
O importante neste jogo é que os licitantes se mostrem, sejam vistos e mantenham sua posição. Então, quando o martelo sela toda transferência de propriedade, o leiloeiro continua.
Cem milhões de euros ofertados pela família Pinault através do grupo Kering (antigamente Pinault-Printemps-Redoute) da holding Artemis. A fortuna de François Pinault, presente sobretudo no luxo, na cultura e na distribuição, proprietário do Château Latour, de Yves-Saint-Laurent e de Christie’s, entre outros, ultrapassa os 30 mil milhões de euros. Ela mais que duplicou desde a chegada ao poder de Emmanuel Macron e corresponde a 31 vezes o valor do donativo…
Quem oferece mais? Deste lado, a família Bettencourt-Meyers doa 200 milhões de euros! Isto representa 0,2% da capitalização do mercado de acções da L’Oréal, a empresa (fundada por um colaboracionista sob a ocupação) actualmente é a número um mundial em produtos cosméticos e da qual a sra. Françoise Bettencourt-Meyers é herdeira. Ao vosso bom coração, senhoras e senhores!
E ainda 200 milhões de euros colocados no cesto pela família Arnault, que mobilizará, para “ajudar a reconstrução”, suas “equipes criativas, arquitectónicas e financeiras”! Bernard Arnault, à frente do maior grupo de luxo do mundo, a LVMH, também actuante na grande distribuição, nas finanças e na imprensa, é o homem mais rico da França. Esta doação de 200 milhões é apenas 0,25% de sua fortuna, estimada em 73,2 mil milhões de euros (contra 46,9 há um ano).
ALMAS CARIDOSAS
Todos eles, informa-se, ficaram sinceramente comovidos e afectados pela terrível tragédia. Alguns comoveram-se até às entranhas, alguns mesmo choraram. Que almas caridosas!
E não esqueçamos as pessoas jurídicas que acorreram e espontaneamente trouxeram socorro logo que souberam do drama. Breve écran publicitário: o grupo informático CapGemini (doação de um milhão de euros), La Française des Jeux recentemente privatizada e já generosa (2 milhões de euros [para a lotaria da Páscoa!]), o banco Credit Agricole (5 milhões), a farmacêutica Sanofi (10 milhões), assim como o banco Société Générale e a seguradora Axa, BNP Paribas e seu balanço de 2 mil milhões de euros, ou seja, duas vezes as despesas das administrações públicas do país (20 milhões), tanto como o grupo de publicidade JCDecaux, a petrolífera Total e seus 209 mil milhões de facturação – mas que não pagou nenhum imposto entre 2009 e 2014 – (100 milhões)…
Uma vez que se trata acima de tudo de aparecer na bela fotografia da família capitalista, outros formularam “promessas de doação” sem precisar o montante: o grupo de obras públicas Vinci, o fabricante de pneumáticos Michelin, o especialista de gases industriais Air Liquide… Todos eles estão lá! A própria [confederação patronal] Medef apelou a todos os empresários a que participassem na colecta.
Gestos tão tocantes: a companhia de seguros Groupama dará de presente carvalhos das suas florestas privadas para a nova estrutura (caso ela seja em madeira), a siderúrgica ArcelorMittal aço para consolidar a construção, o grupo Saint-Gobain materiais de construção, a companhia aérea Air France o transporte gratuitos dos actores oficiais que participarão na “reconstrução”. E o Château Mouton Rothschild? O produto da venda de caixas de vinho…
E a liga de futebol profissional francesa. E o rei de Krindjabo do reino Sanwi . E a Apple, o fundo de investimento norte-americano KKR e a associação French Heritage Society de Nova York, a University of Notre Dame de Indiana… Com certeza, Walt Disney (que ganhou US$300 milhões em receitas com seu Corcunda de Notre-Dame )… Eles se empurram diante do portão.
Não faltava neste quadro senão a Ubisoft, o editor de jogos vídeo originário do [departamento de] Morbihan, que anuncia uma doação de um pequeno meio milhão de euros (apenas) para a reconstrução, mas com um bónus, para festejar à sua maneira a Semana santa: uma oferta de telecarregamento gratuito do seu jogo emblemático Assassin’s Creed Unity [Unidade de credo dos assassinos] – permitindo uma visita virtual e aventurosa a Notre-Dame.
Mil milhões de euros desbloqueados em 48 horas – mais um jogo vídeo gratuito – é o Natal na Páscoa! Não joguem mais, a taça está cheia! Melhor: o Vaticano, tão rico quanto Creso e mesquinho como Harpagon, parece que manterá sua bolsa bem fechada… Mas declarou-se pronto a disponibilizar “seus conselhos técnicos” e “seu savoir-faire mundialmente reconhecido”.
Ao exibicionismo dos bem-nascidos e dos poderosos veio acrescentar-se a hipocrisia repugnante e a incompetência crassa dos governantes que eles escolheram para nós. Pois esta orgia de beneficência é organizada nos meandros de um Estado que tolera as mais odiosas rapinas e incivilidades, desde a evasão fiscal – pudicamente qualificada de “optimização” e que alimenta tantos peritos – até a fraude em grande escala. Quaisquer que sejam as estimativas, mesmo as mais baixas, os montantes envolvidos na fraude fiscal, que são tanto insultos à nação quanto receitas que fazem falta ao Estado, seriam suficientes para cobrir défices públicos, inclusive os locais.
Como se isso não bastasse, eis que todos os salvadores miraculosos de Notre-Dame poderão a pedido beneficiar de vantajosas reduções de impostos – pelo menos para o que eles consentiram pagar em França. Desde uma lei relativa ao financiamento das actividades culturais de 2003 (dita “lei Aillagon”, do nome do ministro da Cultura do governo Raffarin na época do presidente Jacques Chirac), as sociedades podem deduzir 60% das suas despesas a favor do mecenato, com possibilidade de escalonamento da dedução fiscal ao longo de vários anos.
A redução fiscal pode mesmo atingir 90% (no limite da metade do imposto devido) quando a doação se refere à compra de um bem cultural considerado como “um tesouro nacional” ou apresenta “um interesse maior para o património nacional”). Está claro, a empresa mecenas, investindo no mercado da arte, não contribuirá nestas condições com mais do que 10% das suas doações.
Em princípio esta medida de redução de 90% não se aplica no caso da “reconstrução de Notre-Dame”. Contudo, quando a catedral ainda estava em chamas, houve vozes a reclamar um gesto incitativo do Estado. Afinal de contas, Notre-Dame não é um “tesouro nacional”? Foi o que ousou pedir, por exemplo, o autor da lei em causa, o ex-ministro Jean-Jacques Aillagon – que hoje está reconvertido e tornou-se o conselheiro do Sr. François Pinault, coleccionador de obras de arte diante do eterno, a fim de esclarecê-lo nos seus judiciosos investimentos. Sem dúvida é puro acaso! Estas pessoas são sem vergonha, mas elas têm escrúpulos: Aillagon retira sua proposta e Pinault, indignado com a suspeita de querer ganhar dinheiro ao doar, renunciou rapidamente à sua dedução fiscal. Quem o imitará?
Finalmente, incompetência aflitiva de um presidente da República e do seu governo. Sem saber nada, sem que tivesse sido feita qualquer perícia técnica nem realizado qualquer consulta, o comediante Emmanuel Macron declama: “reconstruiremos ainda mais bela catedral e eu quero que isso seja feito dentro de cinco anos”. Ora, só a avaliação dos danos exigirá muito mais tempo quando se compreende que é a totalidade do telhado que cobre a nave, coro e transepto da catedral Notre-Dame que foram devastados, que algumas das abóbadas do tecto ameaçam entrar em colapso, que a estrutura do conjunto do edifício (passeios incluídos) foi fragilizada pelo despejar de toneladas de água, que as próprias pedras talhadas podem ter sido danificadas pelo calor do incêndio… Por que não destruir ainda mais o direito do trabalho para fazer mourejar noite e dia aqueles que se dedicarão a “reconstruir”?
PROEZAS ARTÍSTICAS DE UM GENERAL
Cinco anos, isso conduzirá exactamente a 2024, ou seja, à organização dos Jogos Olímpicos de Paris. Seria este o objectivo oculto? Isto seria realmente medíocre! Qual a relação entre Notre-Dame e uma competição desportiva, por famosa que seja? O actor-presidente mostra-se resoluto, nomeia de imediato um “Senhor Reconstrução”. Um arquitecto? Que ideia tola! Um restaurador de monumentos históricos? Seria bom! Um historiador da arte? Nada disso! Era preciso um militar para “reconstruir” Notre-Dame – tal como aqueles que se voltam contra os coletes amarelos –, um general do exército, na pessoa de Jean-Louis Georgelin, cujas proezas artísticas consistiram outrora em servir nos paraquedistas, em passar pela escola de formação do U.S. Army Command and General Staff College do Kansas e em participar na força de estabilização na Bosnia-Herzegovina. Retorno à aliança da espada e do aspersório (alliance du sabre et du goupillon), como nos bons velhos tempos!
Sob os olhares maliciosos das gárgulas apotropaicas a vomitarem os vícios para fora da Igreja, as goelas dos exploradores, dos fraudadores, dos poluidores, dos usurários regurgitaram seus lucros. Num estalar de dedos, alguns maços de notas terão bastado a um punhado de reis privados, fortunas da França cobiçosas de nichos fiscais, para jogarem sobre a mesa do banquete o equivalente a mais de três vezes o total do orçamento que o Estado consagra anualmente à restauração dos monumentos do património nacional (300 milhões de euros). Um orçamento do património lamentavelmente negligenciado desde há décadas, abandonado à tal lotaria popular, a tais boas obras de bilionários filantrópicos. Será preciso que o Louvre também arda para que finalmente o Estado (dono da Notre-Dame e das obras de arte que se encontram no interior) lembre que ele existe?
E eis que subitamente, como por obra do Espírito Santo, os capitalistas que demolem o país e cavam as desigualdades sociais, metamorfoseiam-se em “construtores” de catedrais e em garantidores da “unidade nacional”. “O mal que fazem os bons é o mais prejudicial dos males”, pôde escrever o autor de Zaratustra. Tudo isso arrisca-se a terminar muito mal. Talvez antes mesmo de o monumento reabrir aos peregrinos e turistas o seu Portal do Julgamento Final. A Grande Jacquerie de 1358 eclodiu logo após a inauguração de Notre-Dame…
Há muito tempo atrás (no primeiro século, o início da era cristã, é o que parece indicar o “pilar dos Nautas” encontrado em 1711 nas fundações do altar de Notre-Dame), um templo pagão galo-romano, de escala impressionante para a época, elevava-se no local exacto da actual catedral. Este templo era dedicado a Júpiter, de que Emmanuel Macron pensa ser um descendente directo. Ao anunciar a “reconstrução” de Notre-Dame, o presidente jupiteriano quer marcar seu século; faz disso um assunto pessoal. Entre os dois braços do Sena, ele pensa estar em casa. Pior: no clímax do calendário litúrgico, nesta semana especial da Páscoa, nosso sátiro nacional também se toma pelo filho de Maria – que venceu a morte e ressuscitou para a vida. Não se irá “reconstruir” Notre-Dame; não se fará senão a restauração, a reparação dos danos. Pois a mais admirada das 93 catedrais da França, que havia resistido às vicissitudes dos últimos 856 anos, foi, sob seu pequeno reinado, definitivamente perdida. É o que ainda não chegou a compreender aquele que ficará na história como o estafeta dos mercadores do templo.
Rémy Herrera possui mestrado em Ciências Económicas pela Universidade de Paris – Pantheon Sorbonne (1991) e doutorado em Ciências Económicas pela Universidade de Paris – Pantheon Sorbonne (1996). Atualmente é Pesquisador da Centre National de la Recherche Scientifique e Professor da Universidade de Paris (Pantheon-Sorbonne). Tem experiência na área de Economia.
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