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As contradições bem fundamentais acumuladas do Ocidente

O Ocidente não tem o poder financeiro para buscar a primazia global – se é que algum dia teve.

por Alastair Crooke (pt-BR) | Strategic Culture Foundation

sakerlatam.blog - 13 de novembro, 2024

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A eleição já ocorreu; Trump assumirá o cargo em janeiro; muitos dos membros da Nomenklatura do Partido serão substituídos; políticas diferentes serão anunciadas – mas assumir o poder de fato (em vez de apenas sentar-se na Casa Branca) será mais complexo. Os EUA se transformaram em muitos feudos díspares – quase principados – desde a CIA até o Departamento de Justiça. E “agências” reguladoras também foram implantadas para preservar o controle da Nomenklatura sobre a sobrevivência do sistema.

Não será fácil convencer esses adversários ideológicos a adotar um novo pensamento.

No entanto, a eleição nos EUA também foi um referendo sobre a corrente intelectual ocidental predominante. E isso provavelmente será mais decisivo do que o voto interno dos EUA – por mais importante que ele seja. Os EUA se afastaram estrategicamente da oligarquia tecnológica gerencial que assumiu o controle na década de 1970. A mudança de hoje se reflete em todos os EUA.

Em 1970, Zbig Brzezinski (que viria a se tornar Assessor de Segurança Nacional do Presidente Carter) escreveu um livro prevendo a nova era: O que ele então chamou de “A Era Tecnetrônica”,

“envolvia o surgimento gradual de uma sociedade mais controlada. Tal sociedade […] dominada por uma elite, sem restrições aos valores tradicionais […] [e praticando] vigilância contínua sobre cada cidadão […] [juntamente com] a manipulação do comportamento e do funcionamento intelectual de todas as pessoas […] [se tornaria a nova norma]”.

Em outro lugar, Brzezinski argumentou que “o Estado-nação […] deixou de ser a principal força criativa: Os bancos internacionais e as corporações multinacionais estão agindo e planejando em termos que estão muito à frente dos conceitos políticos do Estado-nação”.

Brzezinski estava completamente errado sobre os benefícios da governança cosmopolita tecnológica. E ele estava decisiva e desastrosamente errado nas prescrições de políticas que ele apresentou a partir da implosão da União Soviética em 1991 – que nenhum país ou grupo de países jamais ousaria enfrentar o poder dos EUA. Brzezinski argumentou em The Grand Chessboard que a Rússia não teria outra escolha a não ser se submeter à expansão da OTAN e aos ditames geopolíticos dos EUA.

Mas a Rússia não sucumbiu. E como resultado da euforia do “Fim da História” das elites em 1991, o Ocidente iniciou a guerra na Ucrânia para provar seu ponto de vista – que nenhum país poderia esperar enfrentar o peso combinado de toda a OTAN. Eles disseram isso porque acreditavam nisso. Eles acreditavam no Destino Manifesto ocidental. Eles não entendiam as outras opções que a Rússia tinha.

Hoje, a guerra da Ucrânia está perdida. Centenas de milhares de pessoas morreram desnecessariamente – por uma presunção. A “outra guerra” no Oriente Médio não é diferente. A guerra entre Israel e os EUA contra o Irã será perdida, e dezenas de milhares de palestinos e libaneses terão morrido inutilmente.

E as “guerras eternas” também, que eram esperadas pelo Comandante Supremo da OTAN após o 11 de setembro para derrubar uma série de Estados (primeiro o Iraque e depois a Síria, o Líbano, a Líbia, a Somália, o Sudão e o Irã), não só não resultaram na consolidação da hegemonia dos EUA, como também levaram a Kazan e ao BRICS, com sua longa cauda de membros aspirantes, prontos para enfrentar o colonialismo estrangeiro.

A cúpula de Kazan foi cautelosa. Não projetou uma enxurrada de soluções; alguns países do BRICS estavam hesitantes (a eleição dos EUA estava marcada para a semana seguinte). Os comentários de Putin para esses últimos países foram cuidadosamente calibrados: vejam o que os EUA podem fazer com vocês, caso entrem em conflito com eles, a qualquer momento. Protejam-se.

Tudo o que o presidente do BRICS (Putin) podia dizer, nesse momento, era: aqui estão os problemas que [temos de resolver]. É prematuro criar uma estrutura alternativa completa de Bretton Woods neste momento. Mas podemos estabelecer o núcleo de uma alternativa prudente para trabalhar na esfera do dólar: um sistema de liquidação e compensação, o BRICS Clear; uma unidade de conta de referência; uma estrutura de resseguro e o BRICS Card – um sistema de cartão de pagamento de varejo semelhante ao AliPay.

Talvez uma moeda de reserva e toda a parafernália de Bretton Woods sejam desnecessárias. A tecnologia financeira está evoluindo rapidamente e, desde que o sistema de liberação do BRICS seja funcional, o resultado final pode ser uma infinidade de canais de comércio separados por tecnologia financeira.

Mas uma “semana é muito tempo na política”. E uma semana depois, o paradigma intelectual ocidental foi derrubado. Os Shibboleths dos últimos cinquenta anos foram rejeitados por todos os eleitores nos EUA. A ideologia de “desfazer” o passado cultural; a rejeição das lições da história (por perspectivas “errôneas”, segundo se afirma) e a rejeição dos sistemas de ética refletidos nos mitos e histórias de uma comunidade foram rejeitadas!

Bem, após a eleição nos EUA, o sentimento dos BRICS deve estar turbinado. Noções que não eram imagináveis na semana passada, tornaram-se possíveis e imagináveis uma semana depois. Os historiadores podem olhar para trás e observar que a futura arquitetura das finanças globais modernas e da economia global moderna pode ter tido dificuldades para nascer em Kazan, mas agora é um bebê saudável.

Será que tudo vai acontecer sem problemas? É claro que não. As diferenças entre os países membros e “parceiros” do BRICS continuarão existindo, mas esta semana uma janela se abriu, o ar fresco entrou e muitos respirarão com mais facilidade. Se há uma coisa que deve ficar clara, é improvável que um segundo governo Trump sinta a necessidade de lançar uma “guerra contra o mundo” para manter sua hegemonia global (como a Estratégia de Defesa Nacional de 2022 insiste que deveria).

Pois os EUA enfrentam hoje suas próprias contradições estruturais internas, às quais Trump aludia regularmente quando falava sobre a evaporação da economia real americana devido à base de manufatura deslocada. No entanto, um relatório recente da Organização RAND afirma claramente que a base industrial de defesa dos EUA não consegue atender às necessidades de equipamentos, tecnologia e munição dos EUA e de seus aliados e parceiros. Um conflito prolongado, especialmente em vários palcos, exigiria uma capacidade muito maior [– e um orçamento de defesa radicalmente maior].

O plano de recuperação industrial de Trump, no entanto, de tarifas dolorosamente altas que afetam a manufatura americana; o fim da perdulária federal e impostos mais baixos sugerem, no entanto, uma reversão para a retidão fiscal – após décadas de frouxidão fiscal e empréstimos descontrolados. Não a grandes gastos militares! (A propósito, os gastos com defesa durante a Guerra Fria dependiam de alíquotas marginais de imposto de renda acima de 70% e alíquotas de imposto corporativo em média de 50% – o que não parece estar de acordo com o que Trump tem em mente).

O professor Richard Wolff comenta em uma entrevista recente que o Ocidente como um todo está com problemas financeiros profundos, justamente como resultado desses gastos governamentais irrestritos:

“Pela primeira vez, há alguns anos, os detentores de títulos não estavam dispostos a continuar financiando os déficits da Grã-Bretanha, e [o governo do Reino Unido foi alijado]. O Sr. Macron está agora seguindo o mesmo caminho. Os detentores de títulos disseram aos franceses que não continuarão a financiar sua dívida nacional.

É assim que funciona. Os detentores de títulos estão dizendo aos franceses que é preciso controlar os gastos… Os detentores de títulos estão dizendo que é preciso parar de gerar déficits. E, como todo estudante universitário sabe, a maneira de controlar os déficits poderia ser cortando gastos. Mas há uma alternativa: chama-se taxação. E isso se chama tributar as empresas e os ricos, porque os outros não têm mais nada para tributar – você já fez tudo o que podia [fazer com os impostos sobre os cidadãos franceses comuns].

[No entanto, tributar as empresas e os ricos… de alguma forma, não é apenas “inviável”, mas não é discutível. Isso não pode ser colocado sobre a mesa: nada (ou algo tão minúsculo que nunca resolverá o problema do déficit). Agora temos uma dívida muito grande. E acontece que o governo, assim como o governo americano, está enfrentando os próximos anos em que terá que gastar tanto com o serviço da dívida quanto com a defesa. E isso não deixa muito para todos os outros. E todos os outros estão dizendo: não, não, não, não, não, não, não.

E agora os detentores de títulos estão preocupados, porque uma maneira de resolver isso seria parar de pagar os detentores de títulos e isso, é claro, nunca deve acontecer. Portanto, temos dois absurdos. Você não pode parar de pagar os detentores de títulos (quando, é claro, você pode, mas com consequências terríveis). E você não pode tributar as empresas e os ricos. E, é claro que você pode. Acho que estamos chegando a um ponto em que essas contradições se acumularam. Não é preciso ser hegeliano ou marxista para entender que essas contradições acumuladas são muito profundas, muito grandes e muito fundamentais”.

Elas nos dizem que, por um lado, o mundo não aceita a visão ocidental como sendo de aplicação universal e, por outro lado, o Ocidente não tem o poder financeiro para buscar a primazia global – se é que algum dia teve: Zugzwang*.

[*] A palavra zugzwang é uma palavra alemã que significa “obrigado a se mover”. No xadrez, Zugzwang, na sua definição mínima, significa “sem movimento útil”. Alcança-se esta posição, sobretudo em finais de partida, quando a obrigatoriedade de jogar deixa o adversário à beira do colapso. Nota da tradutora.

by Lady Bharani

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

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