Diz o povo que quando uma pessoa morre passa a ser um poço de virtudes, como se deixasse para trás, bem enterrados e esquecidos, os seus pecados em vida, por muito graves que sejam.
Temo que o conceito, mesmo na sua largueza, não seja aplicável a Henry Kissinger, o quase eterno ideólogo do aparelho imperial que agora se foi aos 100 anos, não sem ainda ter comparecido, como insubstituível patrono, nas mais recentes assembleias conspirativas do Grupo de Bilderberg e do Fórum Económico Mundial, o Olimpo do liberal-globalismo.
Só figuras incontornáveis daquilo a que chamam «a democracia liberal» o endeusam depois de morto, mas isso não acarreta qualquer mudança de atitude porque já o faziam em vida. Obama, o casal Clinton, democratas e também republicanos que o falecido servia (e conduzia) com o mesmo zelo são pródigos em adjectivos para um epitáfio de herói.
E também o presidente desta pequena mas bem ocidental república, em todas as acepções, se apressou a enviar condolências ao «presidente Biden», ainda afadigado a tentar limpar das mãos o sangue das chacinas em Gaza e na Cisjordânia, intrigado com o facto de Pilatos ter sido bastante mais eficaz a fazê-lo. O venerando chefe de Estado foi mais uma vez muito previsível, igual a si próprio, escolhendo sempre bem os afectos, provavelmente guardando um lugar de honra nas suas orações pelo amigo Henry, encomendando-lhe a alma com gratidão eterna pelo benfazejo 25 de Novembro.
Diz também o povo que não deve gastar-se cera – palavras, neste caso – com ruins defuntos. E se este é ruim… E bem ruim… Registemos o seu passamento apenas com singelas evocações fúnebres tornadas possíveis pela verve do próprio que, honra lhe seja feita, nunca precisou de carteiros para que os seus recados chegassem aos destinatários.
Deixemos antes para os seus aduladores internos, distribuídos por um alargado «arco da governação» novembrista do PS ao Chega, as eloquentes elegias transbordando de nutridas profissões de fé democrática, compreensivelmente humedecidas por uma ou outra teimosa lagrimazita.
Um herói da democracia
Kissinger foi, e assim ficará para sempre, um herói da «democracia liberal» ou «democracia ocidental», essa mesma que continua a cilindrar os direitos dos povos, principalmente os europeus, para sustentar o nazi-banderismo na Ucrânia e as chacinas praticadas por Israel, sempre em consonância com o seu estatuto de «única democracia do Médio Oriente».
«A segurança de Israel é um imperativo moral para todos os povos livres», ditava Henry Kissinger. Daí que, respeitando os mais sãos princípios democráticos e as liberdades essenciais, «Israel deve impedir a entrada da câmaras de televisão e repórteres nos territórios ocupados, no âmbito dos seus esforços para reprimir os protestos violentos»; e o mestre da estratégia deu então como exemplos os regimes de apartheid que vigoraram na Rodésia e na África do Sul.
Kissinger exerceu com este espírito a função de conselheiro de todos os presidentes norte-americanos dos últimos 60 anos, transbordando de absoluta autoconfiança graças à tenacidade com que respeitava a ética e a moral, seus inabaláveis princípios de vida. Por isso, recomenda, «um país que exija a perfeição moral na política externa não alcançará nem a perfeição, nem a segurança»; ou então, «porque o Estado é uma organização frágil, o estadista não tem o direito moral de arriscar a sua sobrevivência com restrições éticas». Até porque «o poder é afrodisíaco», deixá-lo será um sinal de fraqueza sujeito a especulações malévolas.
Respeitando escrupulosamente os princípios humanistas, e sempre em nome da democracia, Kissinger supervisionou a sangrenta guerra contra o povo do Vietname e, consumido pela raiva de não conseguir desenvencilhar-se com êxito da tarefa, fez lançar 2 756 941 toneladas de bombas sobre o Camboja entre 1965 e 1973, matando pelo menos 600 mil pessoas e transformando mais de dois milhões em refugiadas. Para o caso de, ainda assim, o número citado não ser elucidativo em termos absolutos, então comparemos: na Segunda Guerra Mundial os aliados lançaram em conjunto pouco mais de dois milhões de toneladas de bombas, umas centenas de milhar menos do que a proeza asiática de Kissinger. E não fiquem dúvidas sobre a sua responsabilidade, e as dos presidentes Nixon e Johnson, nessa matança cega de civis inocentes: o conselheiro presidencial bipartidário entendia que «os militares são apenas burros e estúpidos que podem ser usados como peões na política externa». Para que conste, porque ficou registado em gravações operacionais, a ordem que a tropa recebeu do então secretário de Estado foi a de «largar tudo o que voa sobre tudo o que se mova».
Em boa verdade, como lembra o jornalista espanhol Hibal Arbide Aza, «não há mal que dure 100 anos, excepto Henry Kissinger».
Tendências eugénicas
Acções de extermínio em massa de seres humanos como a do Camboja, a que deve acrescentar-se o recurso indiscriminado do agente laranja no Vietname, cujos efeitos no povo e na natureza, se fazem sentir ainda hoje, conduzem-nos inevitavelmente às teses eugénicas, de tendência malthusiana, que Henry Kissinger congeminou como reforço da acção imperial contra o chamado Terceiro Mundo.
Em 1974, época em que ocupava o cargo de Secretário de Estado, Kissinger orientou a execução de um relatório confidencial a partir da ideia de que a «redução da população deve ser a mais elevada prioridade da política externa dos Estados Unidos para o Terceiro Mundo». Nesse documento considera-se que o acesso norte-americano aos recursos naturais dos países em desenvolvimento é prejudicado pelas altas taxas demográficas, propícias à instabilidade social e à falta de controlo sobre os estratos mais carenciados, situações susceptíveis de perturbar as actividades de exploração dos recursos dessas nações. O relatório sugere que medidas como a generalização do aborto, a propaganda da contracepção e o aumento das taxas de esterilização devem integrar os programas para redução da população, na falta dos quais os países podem deixar de ter «ajuda» norte-americana no combate às catástrofes naturais ou no domínio da assistência alimentar. «Pode a alimentação ser considerada um instrumento do poder nacional?», interrogam-se os autores do Relatório Kissinger.
No entanto, reconhecem, «é importante, tanto no estilo como na substância, evitar a aparência de coerção», «disfarçar os rastos» das exigências norte-americanas e apresentar os programas de redução da população com intenções «altruístas», elaborados segundo «os interesses» desses países e não dos Estados Unidos da América. Sempre com os princípios democráticos acima de quaisquer outros, o Relatório Kissinger recomenda que «os dirigentes dos países em vias de desenvolvimento devem comprometer-se com os programas de controlo da população passando por cima da vontade dos seus povos».
Povos e eleitores são «irresponsáveis»
Dotado de uma criatividade sem limites para os crimes de guerra e contra a humanidade, na parte final na chacina asiática Henry Kissinger matutava já no golpe de Estado que levaria precisamente um militar, o general fascista Pinochet, ao poder no Chile. «Não vejo porque tenhamos de ficar parados a ver um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu povo», explicou Kissinger como norma a adoptar por Washington na generalidade das situações e não apenas em relação ao Chile. Sobretudo quando estão em jogo «questões que são importantes demais para que os eleitores sejam deixados a decidir por si próprios», máxima que assim conforta todos os que ainda possam interrogar-se dobre a pureza da «democracia liberal» ou «democracia ocidental». Tanto mais que, Kissinger dixit, «não é a questão do que é verdade que conta, mas sim a questão do que é percebido como verdade». Uma cultura de transparência que a comunicação social corporativa aplica com absoluto rigor, como se percebe neste quintal doméstico pelo simples facto de a TV balsemânica por cabo, sempre fiel aos seus mestres de Bilderberg, ter eleito o falecido dirigente como «diplomata do século XX». E do século XXI, deve acrescentar-se, porque a sua herança é de uma actualidade gritante.
Massacrados os povos asiáticos por milhões de toneladas de bombas, entronizado Pinochet no Chile – «prestou um grande serviço ao Ocidente ao derrubar Allende», assim o elogiou o conselheiro e secretário de Estado – Henry Kissinger foi agraciado em 1973 com o Prémio Nobel da Paz. Uma distinção inquestionável para um prémio que ficou unicamente nas suas mãos, apesar de ter sido atribuído também ao dirigente comunista vietnamita Le Duc Tho. Porém, provavelmente por não partilhar dos mesmos conceitos de moral, ética e humanismo que Kissinger, o herói do povo do Vietname rejeitou a homenagem.
Pouquíssimo tempo depois, e apesar de o conselheiro presidencial em regime de permanência dizer frequentemente que «não pode haver uma crise na próxima semana porque a minha agenda já está cheia», um outro problema passou a atormentá-lo: a queda do fascismo em Portugal, um regime tão cómodo para Washington, tão a leste de tormentas, tão ajustado à imagem democrática com que nasceu a NATO. Deve lembrar-se, a propósito, que da sua experiência na Casa Branca o conselheiro de presidentes aprendeu uma lição assegurando que «em Washington a aparência de poder é quase tão importante como a realidade do poder; na verdade, a aparência é frequentemente a realidade essencial do poder». Assim sendo, nada de contraditório haveria na presença do regime fascista português entre os fundadores da «aliança das democracias».
Imagens alusivas aos tempos revolucionários de Abril de 1974 estão agora a ser passadas nas TV’s portuguesas, acompanhadas por arrebatados encómios, exibindo um Kissinger saltitante descendo as escadas de um avião no aeroporto de Lisboa para vir restabelecer a ordem neste recanto inesperadamente tumultuado. Porque «o que deve acontecer, em última análise, deve acontecer imediatamente».
Não havia, pois, tempo a perder, até porque «o que é ilegal fazêmo-lo imediatamente e o que é inconstitucional demora mais um pouco»; e, no seu diagnóstico da situação revelado em 27 de Março de 1975, em plena Casa Branca, Kissinger explicou o seguinte: em relação a Portugal, «os europeus estabeleceram dois objectivos: a realização de eleições e evitar a tomada do poder pelos comunistas; acho que podemos conseguir esses dois objectivos e mesmo assim perder o país porque os comunistas governam através do MFA (…) Provavelmente temos de atacar Portugal qualquer que seja o resultado, e expulsá-lo da NATO».
Da visita de Kissinger a Lisboa no início da Primavera de 1975 até ao golpe de 25 de Novembro passaram-se menos de oito meses, durante os quais os sinais de conspiração se tornaram mais abundantes e ameaçadores de dia para dia, por vezes com paralelismos arrepiantes em relação ao Chile de 1973.
Os recursos conspirativos manifestados pelo conselheiro imperial permitem que, a partir de agora, possamos deduzir que se houver golpe de Estado no Inferno será fácil encontrar o responsável, conclui o jornalista basco Iñigo Errejón no seu espaço no X (Twitter).
Se a «solução Pinochet» foi uma das que viajou até Lisboa na bagagem de Kissinger é uma dúvida difícil de esbater. No entanto, o 25 de Novembro de 1975 ter-se-á ficado pelo que foi porque os planos do conselheiro, do seu embaixador Carlucci e de políticos colaboracionistas que funcionaram como seus agentes esbarraram no patriotismo e também nos compromissos com a democracia honrados por militares – afinal não «tão burros e estúpidos» como os encarava o homem de tantos presidentes.
Os portugueses perceberam então, de uma maneira que lhes causa danos até hoje, a mensagem de Kissinger, afinal nada enigmática, segundo a qual «ser inimigo da América é perigoso, mas ser amigo da América é fatal». Uma outra maneira de dizer que amigos assim dispensam a existência de inimigos. Nada que seja impeditivo da vassalagem rastejante da classe política lusitana perante «o amigo americano», na realidade o dono americano, como ambas as partes assumem.
Do mesmo modo, os países da União Europeia e os que compõem o chamado mundo ocidental têm dados mais do que suficientes para perceberem o sentido de uma outra máxima imperial programática de Kissinger: «a América não tem amigos ou inimigos permanentes, a América tem apenas interesses». Observemos, por exemplo, o papel reservado aos seus «amigos europeus» na crise ucraniana e nada fica por explicar, branco é galinha o põe.
Henry Kissinger partiu, mas não foi em vão; ensinou-nos tudo sobre a «democracia liberal» ou «democracia ocidental», a legítima, afinal a única tolerada porque, como o mestre gostava de dizer, «a ausência de alternativa limpa maravilhosamente a mente». Rebanhos de «mente limpa», como os apascentados pelas classes financeiras, políticas e mediáticas cujos interesses Henry Kissinger tão bem soube interpretar e ensinar, mesmo que as provas práticas sejam brutais e sangrentas. Mas tudo passa, desde que o poder imperial colonial fique.
Porém, existe sempre quem esteja alerta, são muitos e cada vez mais os que estão alerta sabendo identificar muito bem a democracia que Henry Kissinger nos deixou como herança. Há que renegar essa herança e construir uma democracia autêntica. A caricatura em vigor atingiu o prazo de validade, tal como o criminoso de guerra que contribuiu decisivamente para impô-la.
José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.
https://www.abrilabril.pt/internacional/menos-um-criminoso-de-guerra-bordo
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