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O déjà vu da guerra

As mentiras contadas para incendiar a guerra com o Iraque foram ressuscitadas para incendiar uma guerra com o Irã

por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report

Brasil 247 - 19 de junho, 2025

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Deja Voodoo — arte de Mr. Fish (Foto: Mr. Fish)

Há poucas diferenças entre as mentiras contadas para incendiar a guerra com o Iraque e as mentiras contadas para incendiar uma guerra com o Irã. As avaliações das nossas [dos EUA] agências de inteligência e organismos internacionais são, como foram durante os apelos para invadir o Iraque, descartadas com leveza em favor de alucinações.

Todos os velhos clichês foram ressuscitados para nos atrair para outro fiasco militar. Um país que não representa uma ameaça para nós, nem para os seus vizinhos, está à beira de adquirir uma Arma de Destruição em Massa (ADM) que ameaça a nossa existência. O país e seus líderes personificam o mal absoluto. A liberdade e a democracia estão em jogo. Se não agirmos agora, a próxima prova incontestável será uma nuvem em forma de cogumelo. Nossa superioridade militar garante a vitória. Somos os salvadores do mundo. Bombardeios maciços, uma versão atualizada do Choque e Pavor, trarão paz e harmonia.

Ouvimos essas falácias antes da guerra de 2003 no Iraque. Vinte e dois anos depois, elas foram ressuscitadas. Qualquer um que defenda negociações, diplomacia e paz é um capacho de terroristas.

Aprendemos alguma lição com os fiascos no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, sem mencionar a Ucrânia?

Todos os fantasmas que nos venderam essas guerras passadas sob falsos pretextos — como o apresentador de talk show conservador Mark Levin, Max Boot (que escreve: "esse imperativo estratégico defende bombardear Fordow", onde o programa de enriquecimento nuclear do Irã está enterrado no subsolo), David Frum, John Bolton, General Jack Keane, Newt Gingrich, Sean Hannity e Thomas Friedman — voltaram para saturar as ondas de rádio com um alarmismo histérico.

Não importa que o seu grande plano de derrubar o Talibã no Afeganistão e depois invadir e substituir os regimes no Iraque, Líbano, Síria, Líbia, Sudão, Somália — e finalmente no Irã — tenha explodido em suas caras. Não importa que o seu desejo por guerra tenha deixado centenas de milhares, talvez milhões de mortos e drenado trilhões do Tesouro dos EUA. Não importa a pura idiotice de seus argumentos. Seus megafones estão seguros. Eles são vendedores obedientes da indústria da guerra, neoconservadores cerebralmente mortos e sionistas genocidas, que acreditam na regeneração mágica do mundo através da violência, ignorando catástrofe após catástrofe.

Esqueça a Avaliação Anual de Ameaças da comunidade de inteligência [dos EUA], que afirma: "O Irã não está construindo uma arma nuclear, e o líder supremo Khamenei não autorizou o programa de armas nucleares que suspendeu em 2003" — algo reiterado esta semana pelo Diretor-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi. Esqueça que Benjamin Netanyahu, por quase três décadas, vem alertando, histérico, que o Irã está à beira de produzir uma arma nuclear. Esqueça que o ataque preventivo de Israel ao Irã é um crime de guerra, sem mencionar os bombardeios a um hospital, ambulância e jornalistas. Esqueça as centenas de civis iranianos que Israel massacrou em suas ondas de ataques aéreos. Esqueça que Israel lançou o seu ataque ao Irã quando a sexta rodada de negociações sobre enriquecimento nuclear entre EUA e Irã estava prestes a ocorrer em Omã. Esqueça que é o primeiro-ministro israelense, não o líder do Irã, que está sujeito a um mandado de prisão, acusado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Esqueça que Israel, no meio de uma campanha de genocídio contra os palestinos, possui pelo menos 90 armas nucleares — construídas em violação ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) — e bloqueia inspeções da AIEA. Esqueça que Donald Trump rasgou o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) em 2018, um acordo para limitar o programa nuclear do Irã, que o Irã estava cumprindo. Esqueça que Washington e Londres orquestraram o golpe de 1953 para derrubar o governo democraticamente eleito do Irã, o primeiro da região, e instalaram o xá Mohammad Reza Pahlavi, submisso, no poder. Esqueça que os EUA, junto com Israel, treinaram e equiparam a SAVAK, a brutal polícia secreta do xá.

Bombardear! Bombardear! Bombardear!

O suposto programa de armas nucleares do Irã é o equivalente sem provas às ADMs míticas de Saddam Hussein e sua aliança com a Al-Qaeda.

A invasão e ocupação do Iraque, que levaram à morte de mais de 4.000 soldados e fuzileiros navais americanos e centenas de milhares de civis iraquianos, resultaram em destruição generalizada, instabilidade regional e deram origem a uma série de grupos extremistas fanáticos, incluindo o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). As promessas levianas — de que a nossa invasão implantaria a democracia em Bagdá, que se espalharia pelo Oriente Médio, de que seríamos recebidos como libertadores e de que as receitas do petróleo pagariam a reconstrução — foram uma fantasia sonhada pelo governo de George W. Bush e pelos think-tanks de Washington. Esses vendedores de guerra infinita não entendem o mecanismo ou as consequências da guerra. Eles são cultural, histórica e linguisticamente analfabetos sobre os países que atacam. Iraque. Afeganistão. Líbia. Síria. Irã. Duvido que consigam distinguir um do outro.

Esses animadores de guerra, uma vez que são provados errados, são especialistas em emitir mea culpas. Eles nos garantem das suas boas intenções. Eles não queriam espalhar desinformação. Eles só queriam manter o mundo seguro contra "malfeitores" e proteger a nossa segurança nacional. Ninguém, nem mesmo dentro dos governos Bush e agora Trump, é intencionalmente desonesto. Não é culpa deles se agem com base em inteligência falha. O problema é de julgamento, não de virtude. Eles são boas pessoas.

Mas isso, talvez, seja a maior mentira. As avaliações de inteligência usadas para justificar a guerra contra o Iraque foram fabricadas por um grupo de neoconservadores lunáticos e sionistas raivosos porque não gostaram das avaliações da CIA e de outras agências de inteligência. Agora, outro grupo, dominado por Israel-firsters, está inventando avaliações de inteligência falsas para justificar uma guerra com o Irã. Essas guerras não são travadas de boa fé. Elas não são baseadas em uma avaliação cuidadosa e racional de inteligência verificável. São visões utópicas desconectadas da realidade, onde nossas próprias agências de inteligência são ignoradas, assim como organismos internacionais como a ONU, inspetores de ADMs ou a AIEA.

A história do Irã moderno é a história de um povo lutando contra tiranos apoiados e financiados por potências ocidentais. O esmagamento brutal de movimentos democráticos legítimos ao longo das décadas resultou na revolução de 1979, que levou os clérigos iranianos ao poder. O novo governo islâmico do Aiatolá Ruhollah Khomeini defendeu o Islã e argumentou por resistir às "potências mundiais arrogantes" e seus aliados regionais, que oprimem outros — incluindo palestinos — para servir aos seus próprios interesses.

"A história central do Irã nos últimos 200 anos tem sido a humilhação nacional nas mãos de potências estrangeiras que subjugaram e saquearam o país", disse-me Stephen Kinzer, autor de "All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror". "Por muito tempo, os perpetradores foram os britânicos e russos. A partir de 1953, os EUA começaram a assumir esse papel. Naquele ano, os serviços secretos estadunidenses e britânicos derrubaram um governo eleito, apagaram a democracia iraniana e colocaram o país no caminho da ditadura."

*"Depois, nos anos de 1980, os EUA apoiaram Saddam Hussein na guerra Irã-Iraque, fornecendo-lhe equipamento militar e inteligência que ajudaram o seu exército a matar centenas de milhares de iranianos"*, disse Kinzer. "Diante dessa história, a credibilidade moral dos EUA para se posicionar como promotores da democracia no Irã é próxima de zero."

Você pode ver uma entrevista que fiz com Kinzer sobre o Irã aqui. [https://www.rt.com/shows/on-contact/469859-war-iran-stephen-kinzer/ ]

Como reagiríamos se o Irã orquestrasse um golpe nos EUA para substituir um governo eleito por um ditador brutal, que por décadas perseguiu, assassinou e prendeu ativistas democráticos? Como reagiríamos se o Irã armasse e financiasse um estado vizinho, como fizemos durante a guerra de oito anos com o Iraque, para travar guerra contra nós? Como reagiríamos se o Irã abatesse um de nossos navios de passageiros, como fez o USS Vincennes (CG-49) — apelidado sarcasticamente de "Robocruiser" pelas tripulações de outros navios estadunidenses — quando, em julho de 1988, disparou mísseis contra uma aeronave comercial cheia de civis iranianos, matando todos os 290 passageiros, incluindo 66 crianças? Como reagiríamos se os serviços de inteligência iranianos patrocinassem terrorismo dentro dos EUA, como os nossos e os de Israel fazem no Irã? Como reagiríamos se esses ataques terroristas patrocinados pelo estado incluíssem ataques suicidas, sequestros, decapitações, sabotagem e "assassinatos seletivos" de funcionários do governo, cientistas e outros líderes iranianos? Como reagiríamos se, como Israel, um país nos atacasse com base em uma hipótese, um ataque que é ilegal sob a Carta da ONU, que proíbe a guerra preventiva?

Os cafetões da guerra que orquestram esses fiascos militares ressurgiram mais uma vez da cripta. Eles migram como zumbis de governo em governo. Eles estão entrincheirados em think-tanks — Project for the New American Century, American Enterprise Institute, Foreign Policy Research Initiative, The Atlantic Council e The Brookings Institution — financiados por corporações, pelo lobby israelense e pela indústria da guerra. Eles são marionetes sacudidas para cima e para baixo por seus mestres, recebendo megafones de uma mídia falida, nos empurrando de um atoleiro ao próximo.

Os velhos rostos e as velhas mentiras estão de volta, exortando-nos a entrar em outro pesadelo.

Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prémio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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