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A diplomacia da motoserra

Os controlos de preços de bens essenciais também foram retirados, fazendo com que os alimentos se tornassem inacessíveis para milhões de pessoas, que agora são forçadas a vasculhar as ruas. As tarifas de serviços públicos explodiram: os gastos com gás para cozinhar e aquecer, por exemplo, aumentaram 715% entre dezembro de 2023 e outubro de 2024. 

por Alan Macleod (PT) | mltoday.com

Pelo Socialismo - 7 de abril, 2025

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Javier Milei fez uma aparição especial na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) no início deste mês. 

 

O presidente argentino presenteou Elon Musk com uma motosserra personalizada, que ele prometeu usar para reduzir drasticamente os gastos públicos no seu novo papel como líder de facto do novo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE). 

 

Musk e Milei tornaram-se companheiros próximos ultimamente, o primeiro claramente impressionado com os cortes generalizados de programas governamentais e ministérios inteiros do último e com as suas políticas anarcocapitalistas. 

 

Se Musk está de facto a usar a Argentina de Milei como inspiração para a sua própria missão com a DOGE, isso é um péssimo presságio para os Estados Unidos. 

 

O governo de Milei levou ao empobrecimento em massa do povo argentino, ao enriquecimento da elite do país e à vasta expansão de um crescente estado policial. Muitos argentinos estão a observar com preocupação, descortinando paralelos entre as táticas de Milei e os planos da administração Trump-Musk. 

 

Terapia de choque económico 

 

Milei juntou-se a Musk no palco do CPAC, o encontro de direita mais influente do ano. Acusando os democratas de "traição", Musk levantou a sua motosserra brilhante — estampada com o slogan de Milei, "¡Viva la Libertad, Carajo!" ("Viva a liberdade, caramba) — acima da sua cabeça. 

 

“Esta é a motosserra para a burocracia! Motosserra!”,  gritou ele a uma multidão animada. 

Milei fez da ferramenta um símbolo do seu governo e da sua disposição de fazer cortes radicais nos gastos do governo e eliminar ministérios inteiros, em alinhamento com a sua ideologia libertária. 

 

Musk é fã há muito tempo, escrevendo no tweet que "a prosperidade está à frente de tudo para a Argentina" após a vitória eleitoral de Milei em novembro de 2023. Poucos meses depois, os dois encontraram-se pessoalmente, e Musk declarou: "Recomendo o investimento na Argentina". 

 

“Há uma afinidade, em termos ideológicos, entre Milei e Musk”, disse ao MintPress Jodor Jalit , jornalista, conferencista e investigador argentino, explicando que: 

 

“Ambos patrocinam uma redução do tamanho do Estado, mas por razões diferentes. Para Milei, é uma cruzada para ordenar a macroeconomia. Para Musk, é um movimento de tomada de poder. Ele está a tentar afastar quaisquer potenciais rivais dentro do Estado. Mas Milei está a tentar reduzir o tamanho do governo por razões económicas.” 

 

Que Musk — encarregado de implementar um projeto massivo de corte de custos do governo — esteja tão inspirado por Milei deveria preocupar todos os americanos. Em pouco mais de um ano no cargo, Milei pôs a funcionar realmente uma motosserra na sociedade argentina, fechando 13 ministérios e demitindo 30 000 funcionários públicos, o equivalente a cerca de 10% da força de trabalho federal. 

 

Isso inclui os Ministérios dos Transportes, Educação, Obras Públicas, Cultura, Desenvolvimento Social, Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança Social. “Eu sou a toupeira que destrói o Estado por dentro”, declarou ele. 

 

“Várias das políticas que ele implementou praticamente equivaleram a uma doutrina de choque”, observou Jalit. 

 

Ao assumir a presidência, acabou imediatamente os controlos das rendas das casa, o que levou o custo da habitação em Buenos Aires a aumentar 135% num ano. 

 

Os controlos de preços de bens essenciais também foram retirados, fazendo com que os alimentos se tornassem inacessíveis para milhões de pessoas, que agora são forçadas a vasculhar as ruas. As tarifas de serviços públicos explodiram: os gastos com gás para cozinhar e aquecer, por exemplo, aumentaram 715% entre dezembro de 2023 e outubro de 2024. 

 

O resultado foi a miséria em massa. A pobreza aumentou para 53 por cento da população, a mais alta em décadas. 

 

Novas leis pró-empresariais atualmente em análise aumentariam a jornada de trabalho de oito para 12 horas e permitiriam que as empresas pagassem aos trabalhadores não com dinheiro, mas com vales que só podem ser trocados em determinados supermercados ou lojas. 

Milei e os seus apoiantes argumentam que essa terapia de choque é um remédio necessário para curar o país dos seus problemas económicos de longa data. No entanto, essas políticas levaram à desindustrialização e à fuga de cérebros, já que as pessoas com competências  e a oportunidade de deixar o país frequentemente o fizeram. 

 

Uma sondagem recente descobriu que 72 por cento dos argentinos se consideram em pior situação sob Milei. E, ainda assim, o presidente conseguiu manter índices de aprovação acima de 40 por cento. 

 

“É complicado porque os que votaram nele dizem que o presidente está a provocar todas essas crises porque tudo isso faz parte do plano dele”, disse Javier Gomez , um influenciador e comunicador político argentino , ao MintPress , acrescentando que uma conceção comum entre aqueles que simpatizam com ele é que, “Precisamos de sofrer primeiro, para pagar as dívidas dos governos anteriores. E então, qualquer coisa que ele faça que possa ser errada, estúpida ou deixar as pessoas mais pobres, dizem eles, está tudo bem. Isso é exatamente o que esperávamos.” 

 

Jalit também observou que o passado pesa muito na vontade da população de suportar tal desordem, afirmando que: 

 

“Embora as suas medidas e políticas económicas tenham tido um grande impacto [negativo] no poder de compra, as pessoas ainda o apoiam. O que isso mostra é que a sociedade argentina estava pronta para uma mudança, o que não aconteceu com [o presidente anterior, Mauricio] Macri.” 

 

Enquanto os gastos sociais foram cortados até ao osso, o dinheiro destinado às forças de segurança do país foi drasticamente aumentado. O orçamento para a polícia, agências de espionagem e os militares — os mesmos grupos que lidarão com quaisquer desafios ao governo de Milei — mais que triplicou . 

 

Milei também propôs vender as prisões existentes na Argentina e permitir a construção de megaprisões com capacidade para até 6 000 pessoas cada. 

 

Caos em Washington 

 

No seu papel na DOGE, Musk está a adotar uma abordagem não tão diferente de Milei. No início deste mês, o bilionário sul-africano enviou um e-mail em massa para todos os funcionários federais, instruindo-os a responder com um resumo com marcadores de quais as cinco tarefas que eles tinham concluído no trabalho na semana anterior. 

 

“A falta de resposta”, anunciou Musk , “será considerada uma renúncia”. Essas respostas estão a ser  em alimentadas num sistema de inteligência artificial “para determinar se esses empregos são necessários”, de acordo com os que estão familiarizados com a operação. 

 

A justificação de Musk é que milhares de funcionários federais estão mortos ou não existem, mas ainda recebem um salário, e que muitos outros estão a fazer um trabalho socialmente inútil e estão lá apenas como contratações DEI [Diversidade,Equidade e Inclusão], promovendo uma agenda woke1. 

 

Em janeiro, o novo governo suspendeu os pagamentos à USAID sob a alegação de que ela constitui um “ninho de víboras de marxistas radicais de esquerda que odeiam a América”, nas próprias palavras de Musk . No processo, eles denunciaram uma rede financiada por Washington de mais de 6 000 jornalistas em todo o mundo que estavam a ser pagos para promover propaganda pró-EUA, como um estudo anterior do MintPress News descobriu. 

 

O e-mail de Musk informando milhares de pessoas que todas estavam a ser reavaliadas para os seus empregos e que a IA decidiria se elas os manteriam causou pânico generalizado e uma rebelião de outros setores do governo. 

 

Os chefes do Departamento de Justiça, do FBI, do Departamento de Estado, do Pentágono, do Departamento de Energia, do Departamento de Segurança Interna e do Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional instruíram os seus funcionários a não responderem. 

O presidente Donald Trump, no entanto, esmagou a rebelião mesmo quando ela estava a começar. “Achei ótimo”, ele disse sobre o e-mail, fazendo-se eco do raciocínio de Musk. 

 

“Temos pessoas que não aparecem para trabalhar, e ninguém sabe se elas trabalham para o governo, então, ao fazer a pergunta 'diga-nos o que fez esta semana', o que ele está a fazer é  perguntar se você está realmente a trabalhar. E então, se você não responder,  ou é uma espécie de despedido ou semi-despedido,  está despedido”, disse ele, acrescentando que “muitas pessoas não estão a responder porque elas nem existem”. 

 

Mais tarde, na televisão ao vivo e na frente de todo o seu gabinete, Trump redobrou a aposta, afirmando que se alguém estivesse descontente com a liderança de Musk, seria "expulso" do governo. Musk enviou um segundo e-mail aos funcionários federais, dizendo que eles tinham "outra hipótese" de justificar perante ele os seus empregos. 

 

Cripto golpistas 

 

Em linha com as suas ideologias anarcocapitalistas, Milei e Musk são fortes apoiantes da criptomoeda. Essa obsessão com o dinheiro digital deixou ambos em maus lençóis. 

No Dia dos Namorados, Milei promoveu a recém-criada moeda $LIBRA, alegando que era uma nova ferramenta para estimular o crescimento económico na Argentina por meio de investimentos em pequenas empresas e startups. 

 

Como resultado, o valor da $LIBRA disparou de menos de um milésimo de um centavo para $5,20 cada. O endosso do presidente da Argentina rendeu aos fundadores da $LIBRA dezenas de milhões de dólares, já que cerca de 50 000 pessoas se juntaram para investir no projeto. 

 

Poucas horas depois, no entanto, Milei misteriosamente apagou todas as suas postagens a promover $LIBRA, e o preço da moeda desabou, destruindo quase instantaneamente mais de um quarto de milhares de milhões de dólares em riqueza de investidores. 

 

O fiasco, no entanto, enriqueceu extraordinariamente um pequeno número de pessoas. As nove contas fundadoras da $LIBRA ganharam mais de US$ 87 milhões sacando as suas moedas enquanto o preço estava alto. O projeto tem todas as características de um clássico “rug pull”2 — um golpe em que pessoas dentro do esquema aumentam o preço de uma criptomoeda e vendem silenciosamente os seus ativos, deixando o projeto afundar-se e os investidores com fichas digitais sem valor. 

 

No meio de alegações generalizadas de fraude, um juiz argentino foi encarregado de liderar uma investigação sobre as ações de Milei. 

 

Musk também promoveu incansavelmente as criptomoedas, encorajando os seus milhões de seguidores a investir, particularmente em Dogecoin, a que ele certa vez chamou “a futura moeda da Terra”. 

 

Os detratores alegam que esses apelos para investir equivalem a manipulação de mercado. Musk enfrentou um processo alegando que as suas ações equivalem a uma fraude com o preço do Dogecoin. No entanto, como as criptomoedas não são regulamentadas da mesma forma que as ações, o processo acabou por fracassar . 

 

Não é por acaso, porém, que o próprio Musk escolheu a sigla “DOGE” para seu o departamento recém-criado. 

 

Chora por mim, Argentina 

 

Internacionalmente, a reviravolta política de Milei não foi menos drástica, alterando radicalmente a trajetória do país. A Argentina não só se candidatou como recebeu um convite formal para integrar o bloco económico BRICS, o que era visto como uma espécie de bilhete dourado em grande parte do Sul Global. 

 

No entanto, Milei rejeitou publicamente a oferta, alegando que nunca faria negócios com países “comunistas”, como a China ou o Brasil, e prometeu cortar laços económicos com a dupla. “O nosso alinhamento geopolítico é com os Estados Unidos e Israel. Não vamos aliar-nos a comunistas”, insistiu . 

 

O compromisso de servir os interesses de Washington tem sido um tema raramente constante da presidência de Milei. Ele tem convidado regularmente os principais comandantes militares americanos para visitar o país, prometeu comprar equipamentos militares aos EUA e começou a construção de uma base naval americana no extremo sul do país. 

 

Esta base permitirá que Washington vigie e controle a região da Antártida e o tráfego marítimo que passa pelo Cabo Horn, o ponto mais meridional da América do Sul. 

Os Estados Unidos também terão um papel importante no crescente aparelho de segurança da Argentina. Milei convidou o então diretor da CIA William Burns para ir a Buenos Aires e assinou um acordo que autorizaria a  CIA a treinar os serviços de inteligência e segurança argentinos. 

 

Diferentemente da maioria das nações latino-americanas, a Argentina tem sido uma apoiante verbal da Ucrânia. Milei encontrou-se com o presidente Volodymyr Zelensky e forneceu à Ucrânia assistência humanitária e militar. 

 

Nas últimas semanas, porém, esse apoio mudou. Assim que os Estados Unidos sob Trump começaram a mudar a sua posição sobre a Ucrânia, Milei e a Argentina seguiram o exemplo, abstendo-se de apoiar a Ucrânia nas votações da Assembleia Geral das Nações Unidas. 

 

Sob a sua liderança, a Argentina viu-se frequentemente em extrema minoria na ONU. Em outubro, Milei instruiu a ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, a votar ao lado dos EUA e de Israel e recusar-se a condenar o bloqueio de Washington a Cuba, e demitiu-a quando ela se recusou a fazê-lo. 

 

A resolução foi aprovada por 187-2. Duas semanas depois, a Argentina foi o único país do mundo a votar contra um projeto de lei que se opunha à violência contra mulheres e meninas. 

 

Milei posicionou-se como parte de um movimento global de populistas de direita que inclui o húngaro Viktor Órban, a italiana Georgia Meloni  e a francesa Marine Le Pen 

 

Também o Estado de Israel está incluído nessa lista. Durante a sua campanha política, ele fez questão de acenar a bandeira israelita de forma bem visível. Uma vez no cargo,  rapidamente designou o Hamas como um grupo terrorista, a primeira e única nação latino-americana a fazê-lo.   

   

Em fevereiro de 2024, no auge do ataque israelita a Gaza, foi a Jerusalém para se encontrar com autoridades israelitas e chorar publicamente no Muro das Lamentações. Aí prometeu mudar a embaixada israelita para Jerusalém, avalizando, assim, a apropriação de terras por Israel, considerada ilegal sob a lei internacional. 

 

Na semana passada, Milei também declarou dois dias de luto nacional pelas mortes de Kfir e Ariel Bibas, duas crianças que Israel alega ( com poucas provas ) terem sido mortas pelo Hamas. A sua decisão valeu-lhe elogios do Primeiro-Ministro israelita Benjamin Netanyahu, que o descreveu como um “querido amigo”. 

 

“A sua decisão exemplar de declarar dois dias de luto nacional por Kfir e Ariel Bibas — duas crianças inocentes brutalmente assassinadas pelos monstros terroristas do Hamas — deve servir de inspiração a todos os líderes do mundo civilizado. Obrigado pela sua integridade inabalável e liderança excecional. Estou ansioso para recebê-lo em Israel em breve”, escreveu Netanyahu. 

 

Portanto, se Milei e as suas ações na Argentina são realmente um modelo para Musk, os americanos deveriam estar profundamente preocupados. O seu corte desajeitado do governo e dos serviços sociais do seu país gerou o caos, a pobreza e a incerteza na Argentina. 

 

As suas políticas, no entanto, enriqueceram muito os que estão no topo da sociedade. Os cortes erráticos e abrangentes de Musk têm uma semelhança impressionante com os de Milei. Os argentinos estão a observar os movimentos de Musk com uma sensação de déjà vu:  já viram isso acontecer antes. 

Tradução de TAM

Alan MacLeod é membro do Glasgow University Media Group. É autor de "Más notícias da Venezuela: 20 anos de notícias falsas e informações falsas". Seu último livro, Propaganda na Era da Informação: Ainda Fabricando o Consenso, foi publicado pela Routledge em maio de 2019. Siga-o no Twitter: @AlanRMacLeod

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