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Eles matam em nome de Washington
Rio, Cabul, Manila, Soweto, Chicago: “guerra às drogas” foi imposta em toda a parte, apesar de seu notável fracasso. EUA usam redes de tráfico para golpes e assassinatos. Felizmente, cresce oposição ao proibicionismo. Vencerá, no Brasil?
por Alfred W. McCoy | TomDispatch
Outras Palavras - 18 de abril, 2019
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/eles-matam-em-nome-de-washington/
Vivemos num tempo de mudanças, em que as pessoas questionam velhos pressupostos e buscando novas direções. Contudo, há no debate atual sobre cuidados de saúde, justiça social e segurança nas fronteiras uma questão negligenciada que deve estar no topo da agenda de todos, dos Socialistas Democráticos aos republicanos ultra-liberais: a mais longa guerra dos Estados Unidos. Não é a feita contra Afeganistão – é a “guerra às drogas”.
Por mais de um século, os EUA têm trabalhado por meio da ONU (e sua predecessora, a Liga das Nações) para construir um duro regime de proibição global às drogas. Ele tem como base leis draconianas, aplicadas por meio de policiamento generalizado, e resulta em encarceramento em massa. Nos últimos cinquenta anos, os EUA também travaram sua própria “guerra às drogas”, que complicou sua política externa, comprometeu sua democracia eleitoral e contribuiu para a desigualdade social. Talvez tenha finalmente chegado a hora de avaliar os danos que tudo isso causou e considerar alternativas.
Embora eu tenha sinalizado pela primeira vez, num livro de 1972, que a CIA tentou abafar o comércio de heroína no Sudeste Asiático, custou a maior parte da minha vida compreender como os complexos caminhos da guerra às drogas deste país, do Afeganistão à Colômbia, da fronteira com o México ao centro de Chicago, moldaram a sociedade norte-americana. No verão passado, o diretor francês de um documentário me entrevistou durante sete horas sobre a história das drogas ilícitas. Conforme íamos do século XVII até o presente, e da Ásia até a América, vi-me tentando responder a pergunta que não quer calar: o que, de fato, me ensinaram 50 anos de observação, além de alguns fatos aleatórios, sobre o caráter do tráfico ilícito de drogas?
Num sentido mais amplo, o último meio século acabou por me ensinar que as drogas não são apenas “tóxicos”; os traficantes não são apenas “bandidos”, e os usuários não são apenas “viciados” (isto é, outsiders inconsequentes). As drogas ilícitas são grandes commodities globais que continuam a influenciar a política dos EUA, nacional e internacionalmente. E as guerras contra as drogas criam lucrativos submundos secretos, nos quais essas mesmas substâncias florescem e se tornam ainda mais lucrativas. A ONU estimou uma vez que o tráfego transnacional, que fornecia drogas a 4,2% da população adulta do mundo, era uma indústria de US$ 400 bilhões, o equivalente a 8% do comércio global.
Por vias que poucos parecem entender, as drogas ilícitas tiveram uma profunda influência nos Estados Unidos modernos, moldando sua política internacional, suas eleições nacionais e suas relações sociais domésticas. No entanto, o sentimento de que as drogas ilícitas pertencem a um baixo mundo marginalizado tornou a política de drogas dos EUA algo relacionado apenas à aplicação da lei – não à saúde, à educação ou ao desenvolvimento urbano.
Durante esse processo de reflexão, voltei a três conversas que tive lá atrás, em 1971, quando era um estudante de graduação de 26 anos pesquisando meu primeiro livro, The Politics of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade (A política da heroína: cumplicidade da CIA no comércio global de drogas). No decorrer de uma odisseia de 18 meses em torno do planeta, encontrei três homens, profundamente envolvidos nas guerras às drogas, cujas palavras eu era então muito jovem para compreender completamente.
O primeiro é Lucien Conein, um “lendário” agente da CIA cuja carreira secreta ia de paraquedista no Vietnã do Norte, em 1945, para treinar guerrilheiros comunistas com Ho Chi Minh, até a organização do golpe da CIA que matou o presidente vietnamita do Sul Ngo Dinh Diem, em 1963. No curso de nossa entrevista, em sua modesta casa perto da sede da CIA em Langley, Virginia (EUA), ele expôs exatamente como os agentes da CIA, assim como tantos mafiosos da Córsega, praticavam as “artes clandestinas” de conduzir operações complexas fora dos limites da sociedade civil, e como essas “artes” eram, na verdade, o coração e a alma das operações secretas – assim como do tráfico de drogas.
O segundo é o coronel Roger Trinquier, cuja vida no submundo de drogas da França foi desde o comando de paraquedistas nas montanhas de cultivo de ópio do Vietnã, durante a primeira guerra da Indochina, no início dos anos 50, até servir como representante do general Jacques Massu em sua campanha de assassinato e tortura na Batalha de Argel, em 1957. Durante a entrevista em seu elegante apartamento em Paris, Trinquier explicou como ajudou a financiar suas próprias operações de paraquedista por meio do tráfico ilícito de ópio na Indochina. Ao sair daquela entrevista, senti-me quase esmagado pela aura de onipotência nietzscheana que Trinquier claramente adquirira em seus muitos anos nesse reino sombrio de drogas e morte.
Meu último mentor no tema das drogas foi Tom Tripodi, um agente secreto que treinou exilados cubanos na Flórida para a invasão da Baía dos Porcos pela CIA em 1961 e, no final dos anos 1970, infiltrou-se nas redes mafiosas da Sicília para a Agência de Repressão às Drogas dos EUA. Em 1971, ele apareceu na frente da porta da minha casa em New Haven, Connecticut, identificou-se como agente sênior da secretaria de Narcóticos do departamento do Tesouro e insistiu que a secretaria estava preocupada com o meu futuro livro. Bastante hesitante, mostrei-lhe apenas algumas páginas de rascunho do meu manuscrito de A política da heroína (The Politics of Heroin) e ele prontamente ofereceu-se a me ajudar a torná-lo o mais preciso possível. Nas visitas seguintes, eu lhe passaria os capítulos e ele se sentaria numa cadeira de balanço, mangas da camisa arregaçadas, o revólver no coldre de ombro, rabiscando correções e contando histórias notáveis sobre o tráfico de drogas. Como aquela, do tempo em que a secretaria descobriu que a inteligência francesa estava protegendo os cartéis da Córsega que contrabandeavam heroína para a cidade de Nova York. Muito mais importante, porém, através dele compreendi como alianças ad hoc entre traficantes criminosos e a CIA ajudaram a agência e o tráfico de drogas a prosperar, regularmente.
Olhando pra trás, posso agora ver como cada um daqueles agentes veteranos descreviam-me um universo político clandestino, um submundo secreto no qual agentes governamentais, militares e traficantes de drogas estavam livres dos limites da sociedade civil e empoderados para formar exércitos secretos, derrubar governos e até mesmo, talvez, assassinar um presidente estrangeiro.
Em seu núcleo duro, esse submundo era então, e continua sendo hoje, um reino político invisível habitado por atores criminosos e praticantes das “artes clandestinas” de Conein. Para dar uma noção de escala desse meio social, em 1997 as Nações Unidas informaram que cartéis transnacionais do crime tinham 3,3 milhões de membros, que traficavam drogas, armas, seres humanos e espécies animais em risco de extinção, em todo o mundo. Entretanto, durante a Guerra Fria todo os grandes poderes – Grã Bretanha, França, União Soviética e Estados Unidos – implantaram serviços clandestinos expandidos no mundo inteiro, tornando as operações secretas uma faceta central do poder geopolítico. O fim da Guerra Fria não mudou em nada essa realidade.
Por mais de um século, Estados e Impérios usaram seus poderes expandidos para campanhas morais de proibição que transformaram, de tempos em tempos, o álcool, o jogo, o tabaco e, acima de tudo, as drogas num comércio ilícito que gera dinheiro suficiente para sustentar esses mundos inferiores secretos.
Drogas e política externa norte-americana
A influência das drogas ilícitas na política externa dos EUA esteve evidente, entre 1979 e 2019, no fracasso abissal de suas infindáveis guerras no Afeganistão. Durante um período de 40 anos, duas intervenções norte-americanas naquele país criaram todas as condições para esse tipo de submundo secreto. Enquanto mobilizava fundamentalistas islâmicos para combater a ocupação soviética daquele país, nos anos 80, a CIA tolerava o tráfico de ópio por seus aliados mujahedin afegãos, ao mesmo tempo em que os armava para uma guerra de guerrilha que devastaria o campo, destruindo a agricultura convencional e o pastoreio.
Na década seguinte ao fim da intervenção das superpotências, em 1989, uma guerra civil devastadora e o governo do Talibã aumentaram a dependência do país em relação às drogas, ampliando a produção de ópio de 250 toneladas em 1979 a 4.600 toneladas em 1999. Esse aumento dramático transformou o Afeganistão de um país de economia agrícola diversificada no primeiro do mundo em monocultura de ópio – isto é, completamente dependente de drogas ilícitas para exportação, emprego e impostos. Essa dependência ficou demonstrada em 2000, quando o Talibã baniu o ópio, numa tentativa de reconhecimento diplomático, e reduziu a produção para 185 toneladas. A economia rural implodiu e seu regime entrou em colapso quando, em outubro de 2001, caíram as primeiras bombas dos EUA.
Para dizer o mínimo, a invasão e ocupação dos EUA em 2001-2002 falhou completamente ao lidar com a situação das drogas no país. De início, para tomar a capital — Kabul, controlada pelos Talibãs, a CIA mobilizou os líderes da Aliança do Norte, que há muito dominavam o comércio de drogas no nordeste do Afeganistão, bem como os senhores da guerra pashtuns, ativos como contrabandistas de drogas, na parte sudeste do país. No processo, criaram uma política pós-guerra ideal para a expansão do cultivo de ópio.
Embora a produção tenha aumentado nos três primeiros anos da ocupação dos EUA, Washington permaneceu de olhos fechados, resistindo a qualquer coisa que pudesse enfraquecer as operações militares contra os guerrilheiros do Talibã. Testemunha do fracasso desta política, a Pesquisa do Ópio no Afeganistão da ONU, de 2007, informou que a colheita naquele ano atingira um recorde de 8,2 mil toneladas, gerando 53% do produto interno bruto do país e representando 93% do suprimento desta droga do mundo.
Quando uma única commodity representa mais da metade da economia de uma nação, todo mundo – funcionários, rebeldes, comerciantes e traficantes – está direta ou indiretamente implicado. Em 2016, o New York Times informou que tanto rebeldes Talibãs quanto funcionários provinciais que se opunham a eles estavam envolvidos na luta pelo controle do lucrativo tráfico de drogas na província de Helmand, fonte de quase metade do ópio do país. Um ano depois, a colheita atingiu um recorde de 9 mil toneladas, o que, de acordo com o comando dos EUA, forneceu 60% dos recursos necessários ao sustento do Talibã. Desesperados para cortar esse financiamento, os comandantes norte-americanos enviaram caças F-22 e B-52 para destruir os laboratórios de heroína da insurgência em Helmand – causando danos irrelevantes a um punhado de laboratórios e revelando a impotência, mesmo dos armamentos mais poderosos, contra o poder social do submundo secreto das drogas.
Com a produção descontrolada de ópio sustentando a resistência talibã nos últimos 17 anos, e capaz de fazê-lo por mais 17, a única estratégia de saída dos EUA parece agora restaurar os rebeldes no poder, num governo de coalizão – uma política equivalente a admitir a derrota em suas longas intervenções militares e em sua ainda menos bem sucedida guerra às drogas.
Os Sumos Sacerdotes da proibição
Na última metade de século, a sempre mal-sucedida guerra às drogas dos Estados Unidos encontrou um servo cúmplice nas Nações Unidas, cuja postura duvidosa quando se trata de políticas sobre drogas, contrasta drasticamente com o seu trabalho auspicioso em questões como mudança climática e manutenção da paz.
Em 1997, o diretor de Controle de Drogas das Nações Unidas, Pino Arlacchi, decretou um programa de dez anos de duração, para erradicar todas as plantações ilícitas de coca e ópio do planeta, começando pelo Afeganistão. Um década depois, seu sucessor, Antonio Maria Costa, encobrindo essa derrota, anunciou no Relatório Mundial de Drogas da ONU de 2007, que “o controle das drogas está funcionando e que o problema mundial das drogas está sendo reprimido”. Enquanto líderes das Nações Unidas faziam promessas pomposas sobre a proibição das drogas, a produção mundial do ópio ilegal cresceu 10 vezes, de 1,2 mil toneladas em 1971 – ano em que começou oficialmente a guerra estadunidense às drogas – para um recorde de 10,5 mil toneladas em 2017.
Esse abismo entre uma retórica triunfal e a triste realidade, pede a gritos uma explicação. O crescimento da produção do ópio ilícito em 10 vezes é resultado de uma dinâmica de mercado que eu chamo de “o estímulo da proibição”. Basicamente, a proibição é a pré-condição necessária para a existência de um comércio global de narcóticos, gerando tanto senhores das drogas regionais, como cartéis transnacionais que controlam este vasto comércio. É evidente que a proibição garante a existência e o conforto desses cartéis criminosos, os quais, para evitar uma interdição, estão sempre mudando e desenvolvendo suas rotas de contrabando, hierarquias e mecanismos, estimulando uma proliferação mundial do tráfico e do consumo, enquanto asseguram que o submundo das drogas continue a crescer.
Procurando proibir drogas viciantes, os combatentes às drogas dos Estados Unidos e das Nações Unidas agem como se a mobilização por uma repressão forçada pudesse, de fato, reduzir o tráfico de drogas, graças a uma suposta inelasticidade ou aos limites da produção global de narcóticos. Entretanto, na prática, quando a proibição reduz as produções de ópio de alguma região (Burma ou Tailândia), os preços mundiais sobem, levando traficantes e produtores a vender seus estoques, antigos agricultores a plantar mais, e novas áreas (Colômbia) a se iniciar na produção. Resumindo: tal repressão, geralmente, só faz o consumo crescer. Por exemplo, se apreensões de drogas fazem os preços na rua aumentarem, os consumidores viciados irão manter seus hábitos cortando outras despesas (alimentação, aluguel) ou aumentando sua renda, vendendo drogas a novos usuários, e assim expandindo o comércio.
Em vez de reduzir o tráfico, na realidade, a guerra às drogas ajudou a estimular esse crescimento de dez vezes da produção mundial de ópio e o surto paralelo de usuários de heroína – de apenas 68 mil, no ano de 1970, para 886 mil, em 2017.
Ao atacar o fornecimento, evitando sempre enfrentar o consumo, a guerra às drogas dos EUA e das Nações Unidas, vem procurando uma “solução” que desafia a inabalável lei de oferta e demanda. O resultado: Washington e sua guerra às drogas foram da derrota ao desastre, nos últimos 50 anos.
A repressão doméstica às drogas “ilícitas”
Todavia, esta guerra às drogas possui um inacreditável poder de permanência. Tem persistido apesar de décadas de fracassos, devido a uma lógica partidária subjacente. Em 1973, quando o presidente Richard Nixon ainda combatia as drogas na Turquia e na Tailândia, o governador republicano de Nova York, Nelson Rockefeller, promulgou as infames “Leis de Drogas Rockefeller” (Rockefeller Drug Laws), as quais incluíam sanções obrigatórias – desde 15 anos de cadeia até prisão perpétua, a partir da posse de apenas pouco mais de 100 gramas de narcóticos.
Enquanto a polícia varria as ruas do centro da cidade de infratores de menor nível, as sentenças anuais de prisões em Nova York, por crimes relacionados com drogas, passaram de apenas 470, em 1970, para um pico de 8.500, em 1999. Os negros correspondiam a 90% dos encarcerados. As prisões estaduais de Nova York passaram a concentrar um número nunca antes imaginável, de 73 mil pessoas. Nos anos 80, o presidente Ronald Reagan, um republicano conservador, tirou a poeira da campanha antidrogas de Rockefeller, aplicando-a de forma interna intensamente, chamando-a de uma “cruzada nacional” contra as drogas e acrescentando penas federais draconianas para o uso pessoal das substâncias e o tráfico de pequena escala.
Nos 50 anos anteriores, a população carcerária dos EUA permaneceu extraordinariamente estável, apenas 110 presos para cada 100 mil pessoas. Porém, a nova guerra às drogas dobrou o número de presidiários, de 370 mil em 1981, para 713 mil em 1989. Com as leis antidrogas da era Reagan e a legislação estadual paralela, o número de presos chegou a 2,3 milhões em 2008, elevando a taxa de encarceramento do país para o assustador número de 751 prisioneiros em cada 100 mil cidadãos. Vale lembrar: 51% dos que se encontram em penitenciárias federais foram detidos por infrações ligadas a drogas.
Tal encarceramento em massa levou também a uma significativa perda de direitos, dando início a uma tendência que faria com que, em 2012, 6 milhões de pessoas tivessem seu voto negado, incluindo 8% de toda a população de afro-americanos em idade de votar, um eleitorado que havia se tornado majoritariamente democrata há mais de meio século. Somado a isso, este regime carcerário concentrou suas populações prisionais, incluindo guardas e outros trabalhadores penitenciários, nos distritos rurais conservadores do país, criando algo semelhante aos recentes “distritos podres” do Partido Republicano.
Por exemplo, consideremos o 21º Distrito de Nova York,, que abarca a região das Adirondacks e, ao norte, o enclave entre estados, com uma ampla floresta. O distrito abriga 14 prisões estaduais, que englobam 16 mil presidiários, 5 mil empregados e 8 mil membros de suas famílias — fazendo deles, coletivamente, o distrito que mais emprega gente e a presença política mais decisiva. Acrescentando as 13 mil pessoas (aproximadamente) das tropas nas proximidades de Fort Drum, temos um sólido bloco conservador de 26 mil votantes (e 16 mil não-votantes), ou a maior força política, num distrito onde apenas 240 mil residentes realmente votam. Não é de surpreender que a congressista republicana em exercício tenha sobrevivido à onda democrata de 2018, ganhando facilmente, com 56% dos votos. (Por isso, nunca diga que a guerra às drogas não teve efeito).
Os republicanos de Reagan tiveram tanto sucesso na concepção dessa política partidária de drogas como um dever moral, que dois de seus sucessores liberais democratas, Bill Clinton e Barack Obama, evitaram qualquer tipo de reforma séria da mesma. Em vez de uma mudança sistêmica, Obama absolveu cerca de 1.700 condenados, um punhado insignificante entre os milhares de prisioneiros ainda encarcerados por crimes não-violentos, relacionados a drogas.
Enquanto a paralisia partidária continua barrando as mudanças no plano federalo, os estados — obrigados a lidar com os crescentes custos do encarceramento — têm começado lentamente a reduzir suas populações prisionais. Numa enquete de votação, em novembro de 2018, por exemplo, a Flórida, onde as eleições presidenciais de 2000 foram decididas por apenas 537 cédulas, votou a favor da restituição dos direitos eleitorais dos 1,4 milhões de criminosos, que incluem 400 mil afro-americanos. No entanto, assim que o plebiscito passou, os legisladores republicanos da Flórida tentaram desesperadamente inverter essa derrota, exigindo que os mesmos criminosos pagassem suas multas e custos judiciais, antes de ver restituídos seus direitos eleitorais.
A guerra às drogas não só influencia as políticas estadunidenses de várias maneiras negativas, mas também vem reformulando a sociedade americana — e não pra melhor. O papel surpreendente da distribuição ilícita de drogas no que se refere à organização da vida, dentro de algumas das maiores cidades do país, veio à tona num cuidadoso estudo feito por um pesquisador da Universidade de Chicago, que teve acesso aos registros financeiros de uma quadrilha que atua nos bairros empobrecidos de moradia popular de Southside, em Chicago. Ele descobriu que, em 2005, a Black Ganster Discipline Nation (em tradução livre, “Nação da Disciplina do Gânster Negro”), conhecida como GD, tinha cerca de 120 chefes, que empregavam 5.300 homens jovens, predominantemente como traficantes de rua. Ainda reunia outros 20 mil membros aspirantes a esses cargos. Enquanto o chefe de cada uma das centenas de equipes da gangue ganhava cerca de 100 mil dólares por ano, seus três oficiais ganhavam apenas US$7 por hora; seus 50 traficantes de rua, somente US$ 3,30 por hora, e seus milhares de outros integrantes trabalhavam como aprendizes não-remunerados, disputando os espaços de estreia cada vez que um traficante de rua era morto — um destino ao qual um em cada quatro está fadado.
O que isso tudo significa? No empobrecido centro das cidades, com oportunidades de emprego limitadas, esta gangue fornecia empregos com alto risco de mortalidade, por uma remuneração próxima à do salário mínimo (na época, US$5,15 por hora), sendo que, em bairros mais ricos, seus iguais ganhariam o mesmo, em trabalhos muito mais seguros — no McDonald’s, por exemplo.
Ademais, com aproximadamente 25 mil membros em Southside Chicago, o GD proporcionava estrutura social para os jovens na instável faixa de idade entre os 16 e os 30 anos. Minimizava a violência casual, os pequenos delitos, e ajudava Chicago a manter o seu brilho de centro de negócios de classe mundial. Enquanto não existirem educação e empregos suficientes nas cidades, o mercado de drogas ilegal continuará a preencher as lacunas, com trabalhos que envolvem um alto custo de violência, adição, encarceramento e mais vidas arruinadas de modo geral.
O fim da proibição das drogas
Enquanto o esforço global pela proibição entra em seu segundo século, testemunhamos duas tendências opostas. A própria ideia de um regime de proibição alcançou um crescendo de violência, não apenas no Afeganistão mas também, mais recentemente, no Sudeste da Ásia. Isso demonstrou o fracasso da estratégia de guerra e repressão às drogas. Em 2003, o primeiro ministro da Tailândia, Thaksin Shinawatra, lançou uma campanha contra o abuso de metanfetaminas que levou a polícia a praticar 2,275 assassinatos extrajudiciais em apenas três meses. Levando esta lógica coercitiva a suas últimas instâncias, Rodrigo Duterte ordenou, em seu primeiro dia como presidente das Filipinas, um ataque contra o tráfico de drogas que desde então provocou 1,3 milhão de detenções de comerciantes e usuários, 86 mil prisões e cerca de 20,000 corpos atirados às ruas das cidades em todo o país. Ainda assim, o uso de drogas segue profundamente enraizado nas favelas de Bangkok e Manila.
No outro lado da balança, o movimento de redução de danos, liderado por médicos e ativistas da comunidade está trabalhando lentamente, em todo o mundo, para desafiar o regime proibicionista. Com um plebiscito, em 1996, os eleitores da Califórnia, por exemplo, iniciaram uma trilha, legalizando as vendas de marijuana médica. Em 2018, Oklahoma tornava-se o 30º estado norte-americano a fazê-lo. Após iniciativas de Colorado e Washington em 2012, oito outros estados já descriminalizaram o uso recreativo da droga, a mais difundida de todas as substâncias “ilícitas”.
Atingido por uma disparada no abuso de heroína, nos anos 1980, o governo de Portugal primeiro reagiu com repressão — a qual, com em qualquer parte do planeta, foi incapaz de estancar o processo, tanto crime quanto disseminação do consumo. Aos poucos, uma rede de médicos em todo o país adotou medidas de redução de riscos que resultaram num êxito avassalador e comprovados. Depois de duas décadas de tentativas, Portugal descriminalizou, em 2001, a posse de todas as drogas ilegais, substituindo o encarceramento pelo aconselhamento e alcançando uma queda sustentada nas infecções por HIV e hepatite.
Projetando esta experiência no futuro, parece provável que medidas de redução de danos serão adotadas pouco a pouco, nacional ou localmente, em todo o planeta, enquanto diversas guerras contra as drogas, infinitas e sem êxito, serão interrompidas ou abandonadas. Talvez algum dia, uma cúpula de legisladores do Partido Republicano dos EUA, em alguma sala de conferências revestida de carvalho, em Washington, e uma renca de burocratas da ONU, em seu quartel-general envidraçado em Viena, serão os únicos apóstolos rezando o desacreditado mantra da proibição às drogas.
Traduzido por Inês Castilho e Simone Paz
Alfred W. McCoy é o Professor JRW Smail de História na University of Wisconsin-Madison e autor de A Question of Torture, entre outras obras. Seu livro mais recente é Policing America's Empire: The United States, the Philippines, and the Rise of the Surveillance State (University of Wisconsin Press) que explora a influência das operações de contrainsurgência no exterior ao longo do século XX na difusão de cada vez mais medidas draconianas de segurança interna nos EUA.
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