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Uma entente cordial turco-russo em formação

por M K Bhadrakumar | Indian Punchline

Resistir.info - 12 de outubro, 2019

https://www.resistir.info/moriente/bhadrakumar_12out19.html


Em linguagem orwelliana, chama-se "Operação Fonte da Paz" a intervenção militar turca na Síria lançada em 9 de outubro de 2019

Iremos nós sentar no chão e dizer que já não há mais luz do dia entre a Rússia e a Turquia? Estamos quase aí. A incursão turca na Síria na quarta-feira é o ponto de inflexão. A Turquia e a Rússia estão em estreita coordenação. Considere-se o seguinte.

A Casa Branca anunciou no domingo que estava a retirar-se do nordeste da Síria antes das operações militares da Turquia através da fronteira. O presidente Donald Trump aparentemente tomou a decisão no domingo após um telefonema com o presidente turco Recep Erdogan. A chicotada da decisão de Trump abalou aliados dos EUA.

Houve críticas generalizadas na Beltway de que os EUA estão a por em risco no terreno seus parceiros curdos e a desencadear consequências imprevisíveis para a Síria – e, acima de tudo, a prejudicar gravemente a credibilidade dos EUA. Alguns advertem que o conflito sírio está a intensificar-se exactamente quando as brasas estavam a arrefecer.

Algumas destas críticas podem ser verdadeiras. Porque a Turquia é vingativa. Há muito que ela queria transpor a fronteira no norte da Síria, onde vê as forças curdas sírias ou YPG unidas com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão ou PKK, separatistas que a Turquia considera um grupo terrorista que há décadas trava uma insurgência e coloca a Turquia sob tensão.

Mas existe o fator "X": a Turquia está a empreender isto sozinha? Muito depende da resposta, a qual por sua vez se relaciona com a alquimia do entendimento estratégico geral turco-russo que transcende a questão Síria.

Num desenvolvimento pouco notado na última terça-feira – precisamente, durante o intervalo de 36 horas entre o anúncio de Trump de retirada de tropas da Síria e a incursão turca no norte da Síria – o Ministério das Finanças da Rússia anunciou que Moscovo e Ancara assinaram um acordo sobre a utilização do rublo russo e da lira turca em pagamentos e acordos mútuos. A RT informou que o acordo visa "maior expansão e fortalecimento da interacção interbancária, bem como a garantia de pagamentos ininterruptos entre entidades comerciais dos dois países".

Dito claramente, Moscovo e Ancara criaram uma firewall contra possíveis sanções futuras dos EUA e/ou ocidentais contra a Turquia.

A RT explicou que o novo sistema de pagamento turco-russo conectará bancos e empresas turcas ao análogo russo da rede de pagamentos SWIFT, "melhorando a infraestrutura na Turquia que permitiria o uso de cartões de pagamento MIR russos, projectados por Moscovo como alternativa ao MasterCard e Visa".

A reportagem sublinhou: "O novo acordo faz parte do esforço das duas nações para reduzir sua dependência do dólar americano... Erdogan anunciou no ano passado planos para acabar com o monopólio do dólar americano por meio de uma nova política que tem em vista o comércio sem dólares com os parceiros internacionais do país. "

O acordo com a Turquia torna-se assim o novo modelo do ambicioso projecto do presidente Putin de se livrar do dólar americano no comércio exterior da Rússia (o volume de comércio entre a Turquia e a Rússia é substancial; cresceu 16% no ano passado, chegando aos US$25,5 mil milhões). Claramente, o sistema de pagamentos russo-turco é um importante movimento de política externa dos dois países.

No dia seguinte, quarta-feira, começou a incursão militar turca na Síria. Significativamente, pouco antes da operação, o presidente turco Recep Erdogan falou com Putin por telefone.

O comunicado do Kremlin dizia: "À luz dos planos anunciados pela Turquia de executar uma operação militar no nordeste da Síria, Vladimir Putin instou nossos parceiros turcos a ponderarem cuidadosamente a situação de modo a não prejudicar nossos esforços mútuos para resolver a crise síria". Acrescentou que os dois presidentes enfatizaram "a importância de garantir a unidade e a integridade territorial da Síria e o respeito à sua soberania".

A reacção russa à operação militar turca é nuançada. Na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, disse a repórteres durante uma visita ao Turquemenistão: "Desde o início da crise síria, enfatizámos que entendemos as preocupações da Turquia em relação à segurança nas suas fronteiras".

Lavrov sugeriu que essas preocupações poderiam ser atendidas no âmbito do acordo de Adana assinado entre a Turquia e a Síria em 1998 (o qual estipulava a coordenação directa de segurança entre Ancara e Damasco).

Lavrov atribuiu a culpa da incursão turca directamente às políticas dos EUA. Ele recordou que a Rússia advertira os EUA contra a utilização da "carta curda" e fazer com que tribos curdas e árabes ficassem frente a frente.


Combatentes do YPG curdo, que os EUA consideram como seu parceiro mais confiável no norte da Síria

É importante o que Lavrov acrescentou: "Oficiais militares russos e turcos estão em contacto durante a operação. Agora, tentaremos estabelecer um diálogo entre Damasco e Ancara. Pensamos que isso é do interesse de ambos os lados".

No mesmo dia, quinta-feira, quando os países ocidentais pretenderam que o Conselho de Segurança da ONU condenasse a Turquia, a Rússia bloqueou o movimento, argumentando que pretendia que a "presença militar ilegal" de outros países (leia-se EUA, França, Alemanha, etc) também fosse tratada. A Rússia instou a um "diálogo directo" entre Ancara e Damasco.

Enquanto isso, a incursão turca está a mostrar algumas características interessantes. Não está claro até que ponto isso se deve à influência russa, mas acontece que a incursão fica muito aquém de uma guerra.

O principal é que a operação está focada nas regiões de maioria árabe do norte da Síria, onde há antipatia histórica em relação aos curdos e onde a YPG não está em posição de desafiar os militares turcos. O objectivo turco parece ser criar uma faixa de território, solidamente árabe, onde refugiados sírios podem ser reinstalados (rehabilitated) (há um crescente ressentimento entre os turcos com a presença indefinida de 4 milhões de refugiados sírios).

A reacção moderada da Rússia leva em conta as garantias da Turquia de que a operação não visa as tradicionais terras natais curdas e que não haverá uma guerra épica com os curdos. Contudo, as coisas podem dar errado numa operação militar. Já existem relatos em conflito quanto a baixas turcas.

Na verdade, o destino dos combatentes do ISIS detidos em áreas controladas pelos curdos é uma questão extremamente importante para a comunidade internacional. Trump coloca o ónus sobre a Turquia. A Rússia também está preocupada. Putin disse na sexta-feira que a Turquia pode não ser capaz de conter militantes do ISIS activos no norte da Síria.

"As unidades curdas costumam vigiar essas áreas, mas agora que as tropas turcas estão a entrar na região, eles [militantes] podem simplesmente fugir. Não tenho certeza se o exército turco será capaz de assumir o controle da situação e rapidamente", observou Putin. A Rússia e os EUA precisam se coordenar no terreno para assegurar que o ISIS não levante a cabeça novamente. Trump está a favor disso.

Contudo, o objectivo final por trás da aceitação pelo Kremlin da ofensiva turca é que Erdogan cumpra os planos de Moscovo para o futuro da Síria, de modo a que o presidente Bashar al-Assad possa reafirmar o controle por toda a Síria. Moscovo não aceitará que a operação transfronteiriça da Turquia se transforme numa violação de longo prazo da soberania territorial da Síria. Basta dizer que a Rússia está a segurar a mão da Turquia com a expectativa de que a sinergia possa ajudar a moldar a Síria do pós-guerra.

Num caminho paralelo, a Rússia espera encontrar uma resposta para as preocupações curdas da Turquia, incentivando os curdos a iniciar um diálogo com Damasco a fim de garantir a segurança na fronteira turco-síria. A incursão turca é portanto, de certa forma, útil para o Kremlin ao dar-lhe força para pressionar os curdos a voltarem à Síria.

Neste intrincado equilíbrio de interesses contraditórios, o resultado final é que a Rússia continua a alimentar os laços cálidos com a Turquia. O grande troféu do Kremlin é que um grande país da NATO está a sair da órbita dos EUA. A pressão europeia sobre a Turquia aumentará nos próximos dias para chegar ao "está connosco ou contra nós". A França está a tomar a dianteira.

O acordo sobre o novo sistema de pagamentos na terça-feira sublinha que tanto Moscovo como Ancara estão conscientes de uma possível ruptura nas relações da Turquia com o Ocidente. A declaração de quinta-feira dos membros da UE no Conselho de Segurança da ONU tem insinuações ameaçadoras.

Melkulangara Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Deccan Herald e Asia Online. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante comunista do Kerala.

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