O Muro do Apartheid de Israel, construído em maior parte sobre terras ocupadas palestinas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, mais uma vez enfatiza a monstruosidade da ocupação militar. Assim, de fato sintetiza a natureza do apartheid israelense, além de ressaltar a mentalidade isolacionista motivada pelo cerco que domina a elite política israelense. Mesmo anos antes do estabelecimento do Estado de Israel sobre as ruínas da pátria palestina, em maio de 1948, comunidades sionistas na Palestina já aperfeiçoavam o estratagema de cerco, ao isolarem a si mesmas por trás de muros enormes, ao mesmo tempo em que bloqueavam as ações dos palestinos, habitantes nativos da terra, de todo modo possível.
Ao longo da Nakba – catástrofe, limpeza étnica e destruição da Palestina, entre 1947-48 –, Israel utilizou sua teoria militar em abundância. Bairros, aldeias e cidades inteiras eram sitiadas por dias, semanas ou meses, enquanto bombardeados de todas as direções, até que seus residentes fossem finalmente expulsos. Destas comunidades afligidas pela política deliberada de limpeza étnica, estimadas em centenas de milhares, absolutamente nenhuma jamais recebeu o legítimo direito de retornar às suas próprias casas.
De fato, cerco e isolamento permanecem no âmago da estratégia militar israelense até os dias de hoje.
Entretanto, nenhum outro lugar sofreu tamanha brutalidade deste cerco aparentemente interminável como a Faixa de Gaza, pequena região de 365 km², que sofreu inúmeros estágios de cerco e bloqueio desde 1948.
Os estágios mais severos desde cerco perpétuo tiveram início em meados de 2006 e intensificaram-se no verão do ano seguinte. Três fatores tornam o último cerco a Gaza particularmente hediondo: sua longa duração, a falta de qualquer descanso aos palestinos sitiados e, sobretudo, o fato de que é interrompido somente por enormes guerras israelenses que resultam em milhares de palestinos mortos e feridos. Com grande parte da infraestrutura de Gaza destruída ou deteriorada, o bloqueio israelense sobre o território litorâneo provou-se o mais brutal e mortal de todos os cercos.
No dia 30 de setembro, a emissora israelense Channel 12 relatou que aproximadamente setenta por cento da barreira subterrânea projetada por Israel para isolar a porção oriental de Gaza foi concluída. Estima-se que 1.400 operários israelenses e estrangeiros participaram da construção da barreira, que deverá alcançar 60 quilômetros de comprimento em sua totalidade.
Dadas as camadas e mais camadas de muros, cercas, trincheiras e zonas de isolamento militar, o muro subterrâneo adicional em torno de Gaza nos parece frívolo. É possível que os líderes israelenses realmente pensem que Gaza não está isolada o suficiente?
Na realidade, o último muro irá provavelmente satisfazer um objetivo psicológico, e não pragmático, conforme proporciona ao exército israelense e aos assentamentos no sul do país uma sensação temporária de segurança, à medida que mais uma vez saúda os líderes israelenses como protetores de uma nação exposta e indefesa.
De modo bastante estranho, à medida que centenas de jovens palestinos de Gaza continuam a ser mortos na cerca que separa Gaza de Israel enquanto protestam pacificamente contra o cerco, são os israelenses que alegam ser alvos, supostamente indefesos e vitimizados.
Para os palestinos de Gaza, com ou sem muro, o cerco permanece intacto.
Os arquitetos responsáveis pelos muros israelenses poderão argumentar que o último obstáculo impedirá os palestinos de cavar túneis assim como evitará que combatentes da resistência contornem o cerco via mar – dado que parte da barreira subterrânea também se estenderá ao Mar Mediterrâneo.
Entretanto, não há qualquer prova de que muros ou cercas, acima ou abaixo do solo, sejam capazes de impedir que os palestinos respondam às agressões israelenses. Caso a lógica israelense tivesse ao menos um fundo de verdade, a resistência palestina teria se dissipado ou reduzido décadas atrás, enquanto a mentalidade de cerco israelense era posta em prática desde o início da guerra de Israel contra o povo palestino.
Israel recebe US$ 3.8 bilhões em recursos dos Estados Unidos, além de centenas de milhões em empréstimos e outras contribuições financeiras, as quais são fundamentalmente utilizadas para fortificar a suposta segurança de Israel. Incondicionalmente. Os palestinos, empobrecidos e encarcerados pelas estruturas israelenses similares a prisões a céu aberto e bantustões – territórios segregados para a população negra da África do Sul, no período de apartheid –, continuam a resistir indiscriminadamente.
É evidente que o modelo de segurança israelense fracassou. De fato, este modelo jamais teve qualquer chance de sucesso, para início de conversa. O novo muro israelense em torno da Faixa de Gaza e centenas de outros muros e cercas que ainda serão construídos servem somente para alimentar a ilusão coletiva entre os israelenses e seus líderes de que a resposta para todos os seus problemas não reside no fim do sistema de apartheid, da ocupação militar e do cerco, mas sim em mais e mais camadas de “segurança”.
“No fim do dia, como vejo, haverá uma cerca como essa em torno de todo o território de Israel. Envolveremos todo o Estado de Israel com uma cerca, uma barreira,” afirmou o Primeiro-Ministro de Israel Benjamin Netanyahu, em 9 de fevereiro de 2016, durante uma visita ao local de obras para uma nova barreira em torno de Gaza.
Netanyahu ainda acrescentou: “Com a nossa vizinhança, é preciso nos proteger das feras selvagens.”
Tal comportamento, amparado por este tipo de linguagem, reflete a mentalidade racista profundamente enraizada em Israel, mas também enfatiza o modo desumanizado pelo qual Israel enxerga os palestinos. Como “feras selvagens” não são humanas, logo podem ser mortas em massa, sitiadas reiteradamente e afligidas com uma campanha deliberada de limpeza étnica, em escala de milhões, sem um pingo de remorso ou culpa.
O problema não é de “segurança” ou de suposto “terrorismo”. Não se trata do Hamas ou de qualquer outro grupo, secular ou islâmico. Não se trata dos protestos da Grande Marcha do Retorno conduzidos em Gaza ou das crianças que se aproximam das cercas. O problema é a mentalidade racista entrincheirada na comunidade israelense que enxerga os nativos palestinos como sub-humanos, “feras selvagens”, a serem exterminados ou isolados para todo o sempre.
Ramzy Baroud, nascido num campo de refugiados em Gaza e vivendo em Seattle (EUA), é jornalista, autor e editor de The Palestine Chronicle. Ele é o autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press, London). Seu livro mais recente é The Last Earth: A Palestinian Story [A última terra: uma história palestina] (Pluto Press, London) e está concluindo o próximo livro, These Chains Will Be Broken: Palestinian Stories of Struggle and Defiance in Israeli Prisons’ [Esses grilhões serão quebrados: histórias palestinas de luta e desafio em prisões israelenses] (Clarity Press, Atlanta). Baroud é Ph.D. em Estudos Palestinos, da University of Exeter.
https://www.monitordooriente.com/20191007-sobre-racismo-e-feras-selvagens-porque-israel-sitia-os-palestinos/