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Como Israel usou a fome para subjugar os palestinianos

A comunidade internacional não só falhou em acabar com a guerra, como também falhou em desvincular a ajuda humanitária dos objetivos políticos e militares.

por Ramzy Baroud (PT) | Counterpunch

Pelo Socialismo - 23 de setembro, 2024

https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/sobre-ajuda-e-guerra-como-israel-usou-322084

A ajuda humanitária nunca deve ser politizada, embora, muitas vezes, a própria sobrevivência das nações seja usada como moeda de troca política. 

 

Infelizmente, Gaza continua a ser um excelente exemplo. Mesmo antes da guerra atual, a Faixa de Gaza sofreu um bloqueio hermético de 17 anos, que tornou a área empobrecida praticamente "inabitável". 

 

Esse mesmo termo, 'inabitável', foi usado pelo então Relator Especial da ONU para a Situação da Palestina, Michael Lynk, em 2018. 

 

Em meados de dezembro, "quase 70% das 439.000 casas de Gaza e cerca de metade dos seus edifícios foram danificados ou destruídos", informou o Wall Street Journal, citando especialistas que realizaram uma análise completa dos dados de satélite. 

 

Por mais trágica que fosse a situação em dezembro, agora é muito pior. 

67% das instalações de água, saneamento e infraestrutura de Gaza foram destruídas ou danificadas, de acordo com um comunicado da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos, UNRWA, em 19 de junho, levando à disseminação de doenças infeciosas, que devastam a população sitiada há meses. 

 

A propagação da doença também está ligada à acumulação de lixo em todos os lugares de Gaza. Anteriormente, a agência para os refugiados informou que "em 9 de junho, mais de 330.000 toneladas de resíduos se acumularam dentro ou perto de áreas povoadas em Gaza, representando riscos ambientais e de saúde catastróficos". 

 

A situação já era desastrosa. De facto, três anos antes da guerra, o Instituto Global para a Água, Meio Ambiente e Saúde (GIWEH) disse, numa declaração conjunta com o Monitor Euro-Mediterrâneo de Direitos Humanos, que 97% da água de Gaza era intragável e imprópria para consumo humano. 

 

No entanto, até agora, qualquer conversa sobre permitir ajuda a Gaza, ou a reconstrução de Gaza após a guerra, foi colocada em grande parte dentro de contextos políticos. 

 

Ao fechar todas as passagens de fronteira, incluindo a passagem Egito-Gaza de Rafah – que, em 17 de junho, foi incendiada – Israel politizou alimentos, combustível e remédios como ferramentas na sua guerra na Faixa. 

 

Esta não é uma mera inferência, mas a declaração real feita pelo ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, que em 9 de outubro declarou que tinha ordenado um "cerco completo" e que "não haverá eletricidade, nem comida, nem combustível, nem água" a entrar em Gaza. 

 

O momento da declaração, que de facto foi colocada em ação desde o primeiro dia da guerra, sugere que Israel não aplicou a estratégia como último recurso. Foi uma das peças mais importantes do estratagema de guerra, que permanece em vigor até hoje. 

 

Em vez de pressionar Israel, Washington tentou obter a sua própria influência política, também politizando a ajuda. Em 3 de março, a Força Aérea dos EUA começou a enviar ajuda aérea para o norte de Gaza. Uma opção muito mais propícia e menos humilhante para os palestinos, no entanto, teria sido a pressão direta dos EUA sobre Israel para permitir o acesso a camiões de ajuda que chegam através de Rafah, Karem Abu Salem Crossing ou qualquer outro. 

 

Cenas e imagens de milhares de palestinos famintos perseguindo caixas de ajuda lançadas de pára-quedas em Gaza permanecerão gravadas na memória coletiva da humanidade como um exemplo de nossa moralidade fracassada. 

As notícias falavam de famílias inteiras que foram mortas sob o peso da "ajuda" lançada, grande parte da qual caiu no Mediterrâneo, para nunca mais ser recuperada. 

 

Mesmo o cais de Gaza, construído pelos militares dos EUA na costa de Gaza no mês passado, fez pouco para aliviar a situação. Ele apenas transportou 137 camiões de ajuda, de acordo com a estimativa dos próprios EUA, o suficiente para cobrir a necessidade de alimentos de Gaza apenas durante algumas horas. 

 

Durante os anos de cerco, uma média de 500 camiões que chegam diariamente a Gaza manteve viva a população de 2,3 milhões de pessoas da Faixa, embora desnutrida. 

 

Para lidar com o resultado da guerra e evitar a fome atual, especialmente no norte, o número de camiões de ajuda teria de ser muito maior. No entanto, dias inteiros se passariam sem que um único camião chegasse à população sofredora. Isso é inaceitável. 

 

A comunidade internacional não só falhou em acabar com a guerra, como também falhou em desvincular a ajuda humanitária dos objetivos políticos e militares. 

 

O problema com a politização da ajuda é que civis inocentes se tornam uma moeda de troca para políticos e militares. Isso vai contra o próprio fundamento do Direito Internacional Humanitário. 

De acordo com a Cruz Vermelha Internacional, citando as Convenções de Haia, "o direito internacional humanitário é o ramo do direito internacional que procura impor limites à destruição e ao sofrimento causados por conflitos armados". Em Gaza, esses "limites" não foram "impostos" por ninguém. 

 

Fornecer ajuda a Gaza e garantir a reconstrução da Faixa não deve ser um item político para negociações. É um direito humano básico que deve ser honrado em qualquer circunstância. 

Deve ser exercida uma pressão significativa sobre Israel para pôr termo ao cerco a Gaza, e devem ser elaborados planos urgentes, a partir de hoje, por representantes das instituições humanitárias da ONU, da Liga Árabe e das autoridades palestinianas e de Gaza para serem as entidades responsáveis pela entrega de ajuda a Gaza. 

 

A ajuda humanitária a Gaza não deve ser utilizada como alavanca política, ou um instrumento numa guerra cruel, cujas principais vítimas são milhões de civis palestinianos. 

 

(NE) Na opinião dos editores, o autor do texto coloca-se numa posição utópica exterior à luta de classes relativamente ao que chama “politização” da ajuda a Gaza. No entanto, apresenta uma perspetiva ética humanista, favorável à paz e denuncia as atrocidades cometidas por Israel contra os palestinianos e a conivência da chamada “comunidade internacional”. 

Tradução de TAM

Ramzy Baroud, nascido num campo de refugiados em Gaza e vivendo em Seattle (EUA), é jornalista, autor e editor de The Palestine Chronicle. Ele é o autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press, London). Seu livro mais recente é The Last Earth: A Palestinian Story [A última terra: uma história palestina] (Pluto Press, London) e está concluindo o próximo livro, These Chains Will Be Broken: Palestinian Stories of Struggle and Defiance in Israeli Prisons’ [Esses grilhões serão quebrados: histórias palestinas de luta e desafio em prisões israelenses] (Clarity Press, Atlanta). Baroud é Ph.D. em Estudos Palestinos, da University of Exeter.

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