Encarada através do prisma da Guerra Fria, a decisão da Organização do Tratado do Atlântico Norte, na sua recente cimeira em Haia, de aumentar os gastos com defesa dos países membros para 5% do rendimento nacional pode parecer, a um observador ingénuo, uma medida decisiva para enfrentar a Rússia no futuro. Mas as aparências enganam, pois esta decisão foi tomada a pedido do presidente dos EUA, Donald Trump.
A Rússia aceitou a decisão da OTAN com naturalidade, lembrando-nos do cão que não latiu no romance de Sherlock Holmes. Pois não há qualquer indício de que Trump nutra qualquer desejo de «apagar» a Rússia. Pelo contrário, Trump procura boas relações com a Rússia, embora consciente dos obstáculos no seu caminho devido à russofobia entre as elites americanas.
Curiosamente, na última terça-feira, o New York Times publicou um artigo escrito pelo ex-conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, intitulado «Trump está a jogar um jogo cínico com a Ucrânia» (Trump Is Playing a Cynical Game With Ukraine), cujo tema implícito é que Trump poderia estar a servir secretamente os interesses de Putin na guerra da Ucrânia!
Sullivan escreveu: «Durante meses, o presidente Trump jogou um jogo cínico. Diante da imprensa, ele ameaça impor novas sanções à economia russa. Em privado, ele nunca cumpre... Tudo isso sugere que Trump não está disposto a pressionar a Rússia para acabar com esta guerra. Em vez disso, ele está a ceder e a abandonar a Ucrânia.»
Em pura exasperação, ele conclui seu artigo acusando Trump de «render-se implicitamente a Putin». É uma versão suavizada da desacreditada hipótese da conivência com a Rússia que o estado profundo e os neoconservadores usaram para paralisar a primeira presidência de Trump.
No entanto, Trump voltou à Sala Oval não só com um mandato sem precedentes, mas também com uma compreensão muito melhor de como Washington funciona. Isso fica evidente na sua escolha ponderada de Marco Rubio como secretário de Estado, apesar do pedigree ideológico do ex-senador como um impecável «neoconservador globalista». Trump precisa da inteligência, credibilidade bipartidária e prudência de Rubio como alguém que nutre ambições presidenciais. Da mesma forma, Trump escolheu um amigo de longa data e de confiança, Steve Witkoff, para conduzir a sua agenda de política externa da maneira que ele deseja, rejeitando “guerras eternas” e dando primazia à diplomacia, inclusive na Ásia Ocidental.
Pode-se estar cautelosamente otimista de que o cessar-fogo entre Israel e o Irão se manterá, apesar das previsões apocalípticas. Os protagonistas estão num clima de humildade, independentemente da sua retórica pública. Israel sofreu um golpe do Irão que nunca esperava e a sua economia está à beira do colapso. O Irão também sofreu pesadas perdas e o seu objetivo de conseguir a remoção das sanções parece agora muito distante, enquanto, por outro lado, fabricar uma bomba envolve riscos enormes sem benefícios proporcionais e irá contra o conselho da Rússia e da China, além de alienar os vizinhos árabes.
Quanto a Trump, ele aprendeu que é impossível «obliterar» o domínio de um país sobre a tecnologia nuclear. Curiosamente, ontem à noite, em Teerã, o líder supremo do Irão, o grande aiatolá Ali Khamenei, fez a sua primeira aparição pública desde o início do ataque israelense, liderando a cerimónia fúnebre da noite de Ashura.
Não há dúvida de que Trump aspira a entrar para a história como um presidente pacificador que compreende que o momento unipolar dos EUA chegou ao fim. Na conversa telefónica com Putin em 3 de julho, este último pode não ter dito «Nyet» com tantas palavras, mas rejeitou a sugestão de Trump de um cessar-fogo como contrapartida pela suspensão de entregas críticas de armas dos EUA à Ucrânia, e continuou a salientar que as operações militares russas continuarão até que os objetivos políticos e geopolíticos do Kremlin sejam plenamente alcançados.
A agência noticiosa Tass destacou a reação de Trump, que se declarou «muito insatisfeito» porque Putin «quer ir até ao fim». «Isso não é bom», enfatizou Trump. Sem dúvida, Trump e Putin mantêm boas relações pessoais, como evidenciado pelas suas chamadas na véspera de datas simbólicas, incluindo aquelas importantes para os americanos, como o Dia da Independência, em 4 de julho.
No entanto, um importante analista de Moscovo, Dmitry Suslov, disse ao jornal Vedomosti que «Trump pode ter ameaçado Putin: se a Rússia não concordar com um cessar-fogo agora, então ele [Trump] pode avançar com a aprovação pelo Congresso do projeto de lei do senador Lindsey Graham sobre novas sanções [«destruidoras»] contra a Rússia». Suslov admitiu que, após a conversa telefónica, as hipóteses de o projeto de lei do senador Graham ser aprovado podem ter aumentado «muitas vezes»”.
Mas e daí? Muito provavelmente, a Rússia mostrará que seus ossos não são tão frágeis. O ponto principal, disse Suslov, é que a abordagem de “cenoura e chicote” da Casa Branca “provavelmente não funcionará: a posição da Rússia continua baseada em princípios e, muito provavelmente, independentemente das ações dos Estados Unidos, ela não está disposta a concordar com um cessar-fogo sem que suas exigências sejam atendidas agora”.
É certo que estamos num ponto decisivo da história atual, em que Putin tem Trump em alta estima, mas não está pronto para trocar decisões táticas em detrimento de decisões estratégicas que afetam os interesses fundamentais da Rússia. E do lado de Trump também, por mais desagradável que seja para a OTAN uma vitória total da Rússia na Ucrânia, ele continua comprometido com uma relação de cooperação com a Rússia, que é importante para os seus esforços como presidente pacificador.
Isto não é, de forma alguma, um impasse da era da Guerra Fria. O que vemos é mais como uma plataforma de transmissão ao vivo de tango, onde dois parceiros estão emparelhados de forma inextricavelmente relacionada e ativa, mas ocasionalmente com conotações negativas. Há um sentimento subjacente de paixão na sua intimidade lúdica ou no seu estilo mais dramático, pois dançar tango certamente aproximará os dois parceiros.
Agora, e quanto ao aumento das finanças da OTAN? O New York Times tem uma explicação simples: é certo que os países europeus se comprometeram a gastar quase o dobro em investimentos militares na próxima década. O dinheiro envolvido é realmente muito grande — 16 milhões de milhões de dólares. Num cenário ideal, uma quantia tão grande deveria «alimentar uma onda de inovação de ponta na Europa».
Mas nada disso é esperado. O Times escreve: «Isso se deve ao que se poderia chamar de problema do F-35. A Europa carece de alternativas de qualidade para alguns dos equipamentos de defesa mais necessários e desejados que as empresas americanas produzem...
Os sistemas de defesa antimísseis Patriot também são importados dos Estados Unidos, assim como lançadores de foguetes, drones sofisticados, artilharia de longo alcance guiada por satélite, sistemas integrados de comando e controlo, capacidades de guerra eletrónica e cibernética — juntamente com a maior parte do software necessário para os operar. E como muitos países europeus já investiram em armas americanas, querem que as novas aquisições continuem a ser compatíveis.»
Percebeu? Há um enorme negócio a ser gerado pelos aliados da OTAN para os fornecedores americanos no futuro. Atualmente, a OTAN é responsável por 34% de todas as exportações de armas dos EUA a nível global. Não é de admirar que Trump tenha saído de Haia dizendo que se divertiu no evento da OTAN. A cimeira da OTAN não disse uma palavra sobre a Rússia. Porque, na realidade, tratava-se de alimentar o movimento MAGA de Trump. [Ver o meu artigo
Trump pressiona o Ocidente a abrandar com a Rússia, Deccan Herald, 2 de julho de 2025]
Melkulangara Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Deccan Herald e Asia Online. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante comunista do Kerala.
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