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Um genocídio anunciado

O genocídio em Gaza é o estágio final de um processo iniciado por Israel há décadas

por Chris Hedges (pt-BR) | The Unz Review

Brasil 247 - 1 de abril, 2024

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Foto: Ibraheem Abu Mustafa / Reuters

Não há surpresas em Gaza. Cada ato horripilante do genocídio de Israel tem sido telegrafado com antecedência. Tem sido assim por décadas. A desapropriação das terras dos palestinos é o coração pulsante do projeto colonizador ocupacional de Israel. Esta desapropriação teve momentos históricos dramáticos – 1948 e 1967 – quando partes enormes da Palestina histórica foram tomadas e centenas de milhares de palestinos foram eticamente “purificados”. A desapropriação também ocorreu em incrementos – o roubo em câmera-lenta da terra e a “limpeza” étnica contínua da Cisjordânia, incluindo o leste de Jerusalém.

A incursão de 7 de outubro de 2023 dentro de Israel, feita pelo Hamas e outros grupos de resistência – que resultou na morte de 1.154 israelenses, turistas e trabalhadores migrantes e teve cerca de 240 pessoas capturadas como reféns – deu o pretexto pelo qual Israel ansiava por muito tempo, a eliminação total dos palestinos.

Israel arrasou 77% das instalações de saúde de Gaza, 68% da infraestrutura de telecomunicações, quase todos os prédios municipais e governamentais e centros comerciais, industriais e agrícolas, quase metade das estradas, mais de 60% dos 439.000 lares de Gaza, 68% dos prédios residenciais – o bombardeio da torre Al-Taj na cidade de Gaza, em 25 de outubro de 2023 matou 101 pessoas, incluindo 44 crianças e 37 mulheres e feriu centenas de pessoas – e obliterou os campos de refugiados. O ataque ao campo de refugiados de Jaballa, em 25 de outubro, matou pelo menos 126 civis, incluindo 69 crianças, e feriu 280 pessoas. Israel causou danos ou destruiu as universidades de Gaza, todas as quais agora estão fechadas, e 60% de outras instalações educacionais, incluindo 13 bibliotecas. Eles também destruiram pelo menos 195 locais históricos, incluindo 208 mesquitas, igrejas e o Arquivo Central de Gaza, que continha 150 anos de registros e documentos históricos.

Os aviões de guerra, mísseis, drones, tanques, cargas de artilharia e canhões navais de Israel pulverizam a faixa de Gaza diariamente – que tem apenas 32 quilômetros de comprimento por 8 quilômetros de largura – numa campanha de terra arrasada como jamais foi vista desde a guerra no Vietname. Israel despejou 25.000 toneladas de explosivos – o equivalente a duas bombas nucleares – sobre muitos alvos selecionados por inteligência artificial em Gaza. Eles despejam explosivos não-guiados (“bombas burras”) e bombas destruidoras de bunkers sobre campos de refugiados e centros urbanos densamente populosos, bem como sobre as chamadas “zonas seguras” - 42% dos palestinos assassinados estavam nestas “zonas seguras” para as quais Israel os instruiu para escaparem. Mais de 1.7 milhões de palestinos foram deslocados dos seus lares, forçados a encontrarem refúgio em abrigos superlotados a UNRWA, em corredores e quintais de hospitais e escolas, ou em barracas à céu descoberto no sul de Gaza, frequentemente vivendo ao lado de pútridas piscinas de esgoto não-tratado. 

Israel assassinou pelo menos 32.705 palestinos em Gaza, incluindo 13.000 crianças e 9.000 mulheres. Isto significa que Israel está abatendo até 187 pessoas por dia, incluindo 75 crianças. Eles assassinaram 136 jornalistas, muitos dos quais, senão a maioria, foram deliberadamente visados. Estes números sequer começam a refletir a taxa real de mortes, já que são contados apenas aqueles que foram registrados em necrotérios e hospitais, a maioria dos quais já não funcionam mais. O total de mortos, quando se contam os desaparecidos, excede as 40.000 pessoas.

Os médicos são forçados a amputar membros sem anestésicos. Aquelas pessoas que têm condições médicas crônicas – como câncer, diabete, doenças cardíacas e de fígado – morreram devido à falta de tratamento, ou senão morrerão dentro em breve. Mais de cem mulheres dão à luz por dia, sem cuidados médicos. Os abortos espontâneos aumentaram em 300%. Mais de 90% dos palestinos em Gaza sofrem de insegurança alimentar aguda, sendo que há pessoas que se alimentam de rações animais e gramas. As crianças estão morrendo de fome. Escritores palestinos, acadêmicos, cientistas e membros das suas famílias foram monitorados e assassinados. Mais de 75.000 palestinos foram feridos, muitos dos quais ficaram aleijados pelo resto das suas vidas.

“Setenta porcento das mortes registradas têm sido constantemente de mulheres e crianças”, escreve Francesca Albanese – a Relatora Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados por Israel desde 1967 – no seu relatório publicado em 25 de março. “Israel falhou em provar que os 30% restantes – isto é, homens adultos – eram combatentes ativos do Hamas, uma condição necessária para que eles fossem visados legalmente. No início de dezembro, os conselheiros de segurança israelenses alegavam o assassinato de '7.000 terroristas' num estágio da campanha no qual um total de menos de 5.000 homens adultos foram identificados dentre as vítimas – implicando, portanto, que todos os homens adultos assassinados era 'terroristas'”.

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Foto: Gaza, 2024 / Al Jazeera

Israel usa truques linguísticos para negar a qualquer pessoa em Gaza o status de civis em qualquer prédio – incluindo mesquitas, hospitais e escolas – o status de instalações protegidas. Todos os palestinos são rotulados como responsáveis pelo ataque de 7 de outubro, ou são cancelados como sendo escudos humanos para o Hamas. Todas as estruturas são consideradas como alvos legítimos por Israel, porque eles alegam que os mesmos são centros de comando do Hamas, ou abrigam combatentes do Hamas.

Estas acusações, escreve Albanese, são “pretextos” usados para justificar “o assassinato de civis sob a cobertura de uma suposta legalidade, cuja abrangência total admite apenas a intenção genocida”.

Em escala devida, não vimos um assalto desta magnitude sobre os palestinos, mas todas estas medidas – a matança de civis, a desapropriação de terras, as detenções arbitrárias, as torturas, os desaparecimentos e os cercos impostos à cidades e vilas palestinas, as demolições de casas, as renovações de autorizações de residência, a destruição da infraestrutura que mantém a sociedade civil. A ocupação militar, a desumanização da língua, o roubo de recursos naturais, especialmente os aquíferos – definem há muito tempo a campanha de Israel para erradicar os palestinos.

A ocupação e o genocídio não seriam possíveis em os EUA – que fornecem à Israel US$ 3.0 bilhões em ajuda militar anual e agora estão enviando para Israel outros US$ 2.5 bilhões de bombas, incluindo 1.800 bombas MK84 de 2.00 libras, 500 bombas MK82 de 500 libras e caças bombardeiros. Este também é o nosso [dos EUA] genocídio.

O genocídio em Gaza é a culminação de um processo. Este não é apenas mais um ato. O genocídio é o desfecho previsível do projeto colonial de coupação de Israel. Ele está codificado no DNA do estado de apartheid de Israel. É aí que Israel tinha que acabar chegando.

Os líderes sionistas são claros sobre as suas metas.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, anunciou que após o dia 7 de outubro Gaza não receberia “nem eletricidade, nem alimentos, nem água, nem combustível”. O ministro de relações exteriores de Israel Katz disse: “Ajuda humanitária para Gaza? Nenhum interruptor elétrico será ligado, nenhum hidrantes de água será aberto”. Avi Dichter, o ministro da agricultura, referiu-se ao ataque militar de Israel como “a Nakba de Gaza”, ou a “catástrofe” que ocorreu entre 1947 e 1949 – a qual expulsou 750.000 palestinos das suas terras e resultou em milhares de massacrados pelas milícias sionistas. A membra da Knesset do partido Likud Revital Gottlieb postou na sua mídia social o seguinte: “Derrubem prédios!! Bombardeiem sem distinção!! Arrasem Gaza até o chão. Sem misericórdia! Desta vez, não é espaço para a misericórdia!” Para não ser superado, o ministro do legado histórico Amichai Eliyahu apoiou o uso de armas nucleares sobre Gaza como “uma das posibilidades”.

A mensagem das lideranças israelenses é inequívoca. Aniquilar os palestinos da mesma maneira que nós [os EUA] aniquilamos os nativos americanos, assim como os australianos aniquilaram as primeiras nações indígenas, como os alemães aniquilaram o povo Herero da Namíbia, assim com os turcos aniquilaram os armênios e os nazistas aniquilaram os judeus.

Os detalhes específicos são diferentes. O processo é o mesmo.

Não podemos [os EUA] alegar inocência. Nós sabemos o que ocorreu com os palestinos. Nós sabemos o que está ocorrendo com os palestinos. Nós sabemos o que ocorreu com os palestinos.

Porém, é mais fácil fazer de conta. Fazer de conta que Israel permitirá a entrada de ajuda humanitária. Fazer de conta que haverá um cessar-fogo. Fazer de conta que os palestinos retornarão aos seus lares destruídos em Gaza. Fazer de conta que Gaza será reconstruída. Fazer de conta que a autoridade palestina (PLO) administra Gaza. Fazer de Conta que haverá uma solução de dois estados. Fazer de conta que não há genocídio.

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Foto: Gaza, 2024 / UNWRA España

O genocidio, o qual os EUA estão financiando e apoiando com embarques de armamentos, diz algo não somente sobre Israel, mas sobre nós [os EUA] mesmos, sobre a civilização ocidental, sobre quem nós somos enquanto um povo, de onde nós viemos e o que nos define. Isso expressa a mentira que é toda a nossa alardeada moralidade e respeito pelos direitos humanos. Isso diz que as pessoas de côr não se importam, especialmente quando são pobres e vulneráveis. Isso diz que nada valem as esperanças, os sonhos, a dignidade e as aspirações deles por liberdade. Isso diz que garantimos a dominação global através da violência racializada.

Esta mentira – de que a civilação ocidental está predicada sobre “valores” como o respeito pelos direitos humanos e pelo estado de direito – é algo que os palestinos e todos no Sul Global, bem como os Nativos Americanos e os estadunidenses pretos e pardos conhecem há séculos, Porém, com o genocídio em Gaza sendo transmitido ao vivo, fica impossível sustentar esta mentira.

Nós [os EUA] não impedimos o genocídio de Israel porque nós somos Israel, infectados pela supremacia branca e intoxicados pela nossa dominação das riquezas do mundo e pelo poder de obliterar outros com as nossas armas industriais. Lembremo-nos do colunista do The New York Times Thomas Friedman contando ao Charlie Rose na véspera da guerra no Iraque que os soldados estadunidenses deveriam ir de casa em casa, de Basra e Bagdá, para dizer aos iraquianos “chupem essa”? Este é o verdadeiro credo do império dos EUA.

O mundo fora das fortalezas industrializadas do Norte Global está agudamente ciente de que o destino dos palestinos é o destino deles. Enquanto as mudanças climáticas colocam em perigo a sobrevivência, enquanto os recursos tornam-se escassos, à medida que as migrações tornam-se imperativas para milhões de pessoas, à medida que as colheitas agrícolas declinam, que as áreas costais são inundades, que as sêcas e os incêncios proliferam-se, à medida que os estados colapsam, que os movimentos de resistência armada levantam-se para combater os seus opressores e os seus pressupostos, o genocídio não será uma anomalia. Os vulneráveis e os pobres da Terra – aqueles que Frantz Fanon chamava de “os miseráveis da Terra” - serão os próximos palestinos.

Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prémio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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