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O aproximar da guerra contra a China

A lógica económica foi substituída pela lógica da segurança nacional

por Michael Hudson (PT) | michael-hudson.com

Resistir.info - 22 de julho, 2023

https://www.resistir.info/m_hudson/china_22jul23.html

A cimeira de julho da NATO, em Vilnius, deu a sensação de um funeral, como se tivessem acabado de perder um membro da família – a Ucrânia. Para apagar o fracasso da NATO em expulsar a Rússia da Ucrânia e levar a NATO até à fronteira russa, os seus membros tentaram reanimar os ânimos mobilizando o apoio para a próxima grande luta – contra a China, que é agora designada como o seu inimigo estratégico supremo. A fim de se preparar para este confronto, a NATO anunciou o compromisso de estender a sua presença militar até ao Pacífico.

O plano consiste em afastar os aliados militares e os parceiros comerciais da China, sobretudo a Rússia, começando pela luta na Ucrânia. O Presidente Biden afirmou que esta guerra terá um âmbito global e demorará muitas décadas à medida que se expande para, em última análise, isolar e desmembrar a China.

As sanções impostas pelos EUA contra o comércio com a Rússia são um ensaio geral para a imposição de sanções semelhantes contra a China. Mas apenas os aliados da NATO se juntaram à luta. E ao invés de destruir a economia russa e "transformar o rublo em escombros", como previu o Presidente Biden, as sanções da NATO tornaram a Rússia mais auto-suficiente, melhorando a sua balança de pagamentos e as reservas monetárias internacionais e, consequentemente, a taxa de câmbio do rublo.

Para cúmulo, apesar do fracasso das sanções comerciais e financeiras destinadas a prejudicar a Rússia – e, na verdade, apesar dos fracassos da NATO no Afeganistão e na Líbia – os países da NATO comprometeram-se a tentar as mesmas táticas contra a China. A economia mundial vai ser dividida entre os EUA/NATO/Cinco Olhos, por um lado, e o resto do mundo – a Maioria Global – por outro. O Comissário da UE, Joseph Borrell, chama a isto uma divisão entre o jardim americano/europeu (os mil milhões de ouro) e a selva que ameaça engoli-lo, como uma invasão dos seus relvados bem cuidados por uma espécie invasora.

De um ponto de vista económico, o comportamento da NATO desde a sua acumulação militar para atacar os Estados orientais de língua russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022, tem sido um fracasso drástico. O plano dos EUA era sangrar a Rússia e deixá-la tão economicamente destituída que sua população se revoltaria, expulsaria Vladimir Putin do cargo e restauraria um líder neoliberal pró-ocidental que afastaria a Rússia da sua aliança com a China – e então prosseguiria com o grande plano da América de mobilizar a Europa para impor sanções à China.

O que torna tão difícil tentar avaliar o rumo da NATO, da Europa e dos Estados Unidos é que o pressuposto tradicional de que as nações e as classes agirão no seu interesse económico próprio não ajuda. A lógica tradicional da análise geopolítica consiste em assumir que os interesses económicos e financeiros orientam a política de quase todas as nações. O pressuposto acessório é que os governantes têm uma compreensão bastante realista da dinâmica económica e política em ação. Assim, a previsão do futuro é normalmente um exercício de explicitação dessas dinâmicas.

O Ocidente dos EUA/NATO liderou esta fratura global, mas será o grande perdedor. Os membros da NATO já viram a Ucrânia esgotar o seu stock de armas e balas, artilharia e munições, tanques, helicópteros e outras armas acumuladas ao longo de cinco décadas. Mas as perdas da Europa tornaram-se a oportunidade de venda da América, criando um novo e vasto mercado para o complexo militar-industrial americano reabastecer países europeus. Para ganhar apoio, os Estados Unidos patrocinaram uma nova forma de pensar o comércio e o investimento internacionais. O foco passou a ser a "segurança nacional", ou seja, garantir uma ordem unipolar centrada nos Estados Unidos.

O mundo está a dividir-se em dois blocos: os EUA/NATO pós-industriais contra a Maioria Global

Os diplomatas americanos ficaram cada vez mais preocupados com o facto de a Alemanha e outros países europeus terem passado a depender da importação de gás, petróleo e fertilizantes russos como base para as suas indústrias do aço, do vidro e outras. Ficaram ainda mais preocupados com o facto de a China se ter tornado a "fábrica do mundo" enquanto a economia dos EUA se desindustrializava. O receio era que o crescimento da China e dos países vizinhos da Eurásia, que beneficiam da expansão da iniciativa "Estrada da Seda" (Belt and Road), ameaçassem fazer dessa parte do mundo a principal zona de crescimento e, consequentemente, um íman para o investimento europeu. A perspetiva lógica era que a política seguiria o interesse económico à custa da capacidade da América de manter uma economia mundial unipolar com o dólar no seu centro financeiro e o comércio sujeito ao unilateralismo protecionista dos EUA.

Ao juntar-se à cruzada americana para destruir a economia russa e promover a mudança de regime, a recusa da Alemanha e de outros países europeus em negociar com a Rússia destruiu a base energética fundamental da sua indústria. A destruição do gasoduto Nord Stream mergulhou a economia alemã e outras economias europeias numa depressão que envolveu falências e desemprego generalizados. Ao invés do gás russo, os países da NATO têm agora de pagar um preço até seis vezes mais elevado pelo gás natural liquefeito (GNL) dos EUA e têm de construir novos portos metaneiros para importar fisicamente esse gás.

Os líderes europeus, patrocinados e financiados pela intromissão dos EUA nas eleições dos últimos setenta anos, fizeram o que Boris Ieltsin fez na Rússia na década de 1990: Concordaram em sacrificar as economias industriais da Europa e acabar com o que havia sido a sua lucrativa integração comercial e de investimento com a Rússia e a China.

O passo seguinte é a Europa e os Estados Unidos deixarem de comercializar e investir com a China, apesar de estes países da NATO terem beneficiado do florescimento deste comércio, dependendo dele para uma vasta gama de bens de consumo e fatores de produção industriais. Esta linha de comércio próspero está agora a ser interrompida. Os líderes da NATO anunciaram que a importação de gás russo e de outras matérias-primas (incluindo hélio e muitos metais) corre o "risco" de se tornar dependente – como se a Rússia ou a China pudessem ter interesse económico ou político em abortar este comércio simplesmente para prejudicar a Europa e fazer-lhe o que os Estados Unidos têm feito para a forçar à submissão.

Mas submissão a quê? A resposta é: submissão à lógica dos ganhos mútuos em linhas que deixam a economia americana para trás!

Ao tentar impedir que outros países sigam esta lógica, a diplomacia dos EUA e da NATO europeia provocou exatamente aquilo que os supremacistas americanos mais temiam. Em vez de paralisar a economia russa para criar uma crise política e talvez o desmembramento da própria Rússia, a fim de a isolar da China, as sanções dos EUA/NATO levaram a Rússia a reorientar o seu comércio afastando-se dos países da NATO, integrando a sua economia e diplomacia mais estreitamente com a China e outros membros dos BRICS.

Ironicamente, a política dos EUA/NATO está a forçar a Rússia, a China e os seus aliados BRICS a seguirem o seu próprio caminho, a começar por uma Eurásia unida. Este novo núcleo de China, Rússia e Eurásia com o Sul Global está a criar uma esfera de comércio e investimento multipolar mutuamente benéfica.

Em contrapartida, a indústria europeia foi devastada. As suas economias tornaram-se total e abjetamente dependentes dos Estados Unidos – a um custo muito mais elevado para si própria do que no caso dos seus antigos parceiros comerciais. Os exportadores europeus perderam o mercado russo e estão agora a seguir as exigências dos Estados Unidos para que abandonem e rejeitem o mercado chinês. A seu tempo, serão também rejeitados os mercados dos membros dos BRICS, que se estão a expandir para incluir países do Próximo Oriente, de África e da América Latina.

Em vez de isolar a Rússia e a China e de as tornar dependentes do controlo económico dos EUA, a diplomacia unipolar dos EUA isolou-se a si própria e aos seus satélites da NATO do resto do mundo – a Maioria Global que está a crescer enquanto as economias da NATO avançam a toda a velocidade na sua Estrada para a Desindustrialização. O que é notável é que, embora a NATO alerte para o "risco" do comércio com a Rússia e a China, não vê a sua perda de viabilidade industrial e de soberania económica para os Estados Unidos como um risco.

Não é o que a "interpretação económica da história" teria previsto. Espera-se que os governos apoiem os principais interesses económicos da sua economia. Assim, voltamos à questão de saber se os factores económicos determinarão a forma do comércio mundial, do investimento e da diplomacia. Será realmente possível criar um conjunto de economias pós-económicas da NATO cujos membros se assemelharão muito aos Estados Bálticos e à Ucrânia pós-soviética, em rápido despovoamento e desindustrialização?

Isto seria, de facto, um tipo estranho de "segurança nacional". Em termos económicos, parece que a estratégia americana e europeia de auto-isolamento do resto do mundo é um erro tão maciço e de tão grande alcance que os seus efeitos são equivalentes a uma guerra mundial.

A atual luta contra a Rússia na frente ucraniana pode ser considerada como a campanha de abertura da Terceira Guerra Mundial. Em muitos aspectos, é uma consequência da Segunda Guerra Mundial e do seu rescaldo, em que os Estados Unidos criaram organizações económicas e políticas internacionais para operar no seu próprio interesse nacional. O Fundo Monetário Internacional impõe o controlo financeiro dos EUA e ajuda a dolarizar a economia mundial.

O Banco Mundial empresta dólares aos governos para construir infraestruturas de exportação, para subsidiar os investidores dos EUA/NATO que controlam o petróleo, a exploração mineira e os recursos naturais, e para promover a dependência comercial das exportações agrícolas dos EUA, promovendo ao mesmo tempo a agricultura extensiva (plantation), em vez da produção interna de cereais. Os Estados Unidos insistem em ter poder de veto em todas as organizações internacionais a que aderem, incluindo as Nações Unidas e as suas agências.

A criação da NATO é muitas vezes mal compreendida. Ostensivamente, apresentava-se como uma aliança militar, originalmente para se defender da ideia de que a União Soviética poderia ter alguma razão para conquistar a Europa Ocidental. Mas o papel mais importante da NATO foi utilizar a "segurança nacional" como desculpa para se sobrepor à política interna e externa europeia e subordiná-la ao controlo dos EUA. A dependência da NATO foi inscrita na constituição da União Europeia. O seu objetivo era garantir que os líderes partidários europeus seguissem as orientações dos EUA e se opusessem a políticas de esquerda ou anti-americanas, a políticas pró-laborais e a governos suficientemente fortes para impedir o controlo por uma oligarquia financeira cliente dos EUA.

O programa económico da NATO tem sido a adesão à financeirização neoliberal, à privatização, à desregulamentação governamental e à imposição de austeridade ao trabalho. Os regulamentos da UE impedem que os governos tenham um défice orçamental superior a 3% do PIB. Isto bloqueia políticas de tipo keynesiano para estimular a recuperação. Atualmente, os custos mais elevados das armas militares e os subsídios governamentais aos preços da energia estão a obrigar os governos europeus a reduzir as despesas sociais. A política bancária, a política comercial e a legislação nacional estão a seguir o mesmo modelo neoliberal dos EUA que desindustrializou a economia americana e a sobrecarregou com dívidas ao sector financeiro, em cujas mãos se concentra agora a maior parte da riqueza e do rendimento.

Abandono do interesse económico próprio em favor da dependência à "segurança nacional" dos EUA

O mundo pós-Vilnius trata o comércio e as relações internacionais não como algo económico, mas como "segurança nacional". Qualquer forma de comércio representa o "risco" de ser cortado e desestabilizado. O objetivo não é obter ganhos comerciais e de investimento, mas tornar-se auto-suficiente e independente. Para o Ocidente, isso significa isolar a China, a Rússia e os BRICS para depender totalmente dos Estados Unidos. Assim, para os Estados Unidos, a sua própria segurança significa tornar os outros países dependentes de si próprios, para que os diplomatas americanos não percam o controlo da sua diplomacia militar e política.

Tratar o comércio e o investimento com outros países que não os Estados Unidos como envolvendo "risco", ipso facto, é uma projeção da forma como a diplomacia americana impôs sanções aos países que resistem ao domínio americano, à privatização e à subordinação das suas economias ao controlo dos Estados Unidos. O receio de que o comércio com a Rússia e a China conduza à dependência política é uma fantasia. O objetivo da aliança emergente da Eurásia, dos BRICS e do Sul Global é beneficiar do comércio externo entre si para ganho mútuo, com governos suficientemente fortes para tratar o dinheiro e a banca como serviços públicos, juntamente com os monopólios básicos necessários para proporcionar direitos humanos normais, incluindo cuidados de saúde e educação, e manter monopólios como os transportes e as comunicações no domínio público a fim de manter baixos os custos de vida e de fazer negócios em vez de cobrar preços de monopólio.

O ódio anti-China veio especialmente de Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha. A NATO é avisada para "desarriscar" o comércio com a China. Os "riscos" são: (1) a China pode cortar exportações importantes, tal como os EUA cortaram o acesso da Europa às exportações de petróleo da Rússia; e (2) as exportações podem ser potencialmente utilizadas para apoiar o poder militar da China. Quase todas as exportações económicas PODEM ser militares, até mesmo alimentos para alimentar um exército chinês.

A viagem da secretária do Tesouro, Janet Yellen, à China explicou igualmente que todo o comércio tem um potencial militar e, portanto, um elemento de segurança nacional. Todo o comércio tem um potencial militar, mesmo a venda de alimentos à China pode ser utilizada para alimentar soldados.

A exigência dos EUA e da NATO é que a Alemanha e outros países europeus imponham uma Cortina de Ferro contra o comércio com a China, a Rússia e os seus aliados, a fim de "desarticular" o comércio. No entanto, só os EUA impuseram sanções comerciais a outros países, não a China e outros países do Sul Global. O verdadeiro risco não é que a China imponha sanções comerciais para perturbar as economias europeias, mas sim que os Estados Unidos imponham sanções a países que violem o boicote comercial patrocinado pelos EUA.

Esta visão de "comércio é risco" trata o comércio externo não em termos económicos mas em termos de "Segurança Nacional". Na prática, "segurança nacional" significa juntar-se à tentativa dos EUA de manter o seu controlo unipolar de toda a economia mundial. Não se reconhece qualquer risco na reorientação do comércio europeu de gás e energia para com as empresas americanas. Diz-se que o risco é o comércio com países que os diplomatas norte-americanos consideram "autocracias", ou seja, nações com investimento em infraestruturas e regulamentação governamental ativa, em vez do neoliberalismo ao estilo dos EUA.

O mundo está a dividir-se em dois blocos – com filosofias económicas bem diferentes

Só os Estados Unidos impuseram sanções comerciais a outros países. E só os Estados Unidos rejeitaram regras internacionais de comércio livre como ameaças de segurança nacional para o controlo económico e militar dos EUA. À primeira vista, a resultante fratura global entre os EUA/NATO, por um lado, e a aliança BRICS em expansão da Rússia, China, Irão e Sul Global pode parecer um conflito entre capitalismo e socialismo (ou seja, socialismo de Estado numa economia mista com regulação pública no interesse do trabalho).

Mas esse contraste entre capitalismo e socialismo não é [uma noção] útil após uma análise mais aprofundada. O problema reside no significado que a palavra "capitalismo" adquiriu no mundo atual. No século XIX e no início do século XX, esperava-se que o capitalismo industrial evoluísse para o socialismo. Os Estados Unidos e outras economias industriais aceitavam e, na verdade, pressionavam para que os seus governos subsidiassem uma gama crescente de serviços básicos a expensas públicas, em vez de obrigarem os empregadores a suportar os custos da contratação de mão-de-obra que tivesse de pagar necessidades básicas como cuidados de saúde e educação. Os preços de monopólio foram evitados mantendo os monopólios naturais, como os caminhos-de-ferro e outros transportes, os sistemas telefónicos e outras comunicações, os parques e outros serviços como empresas públicas. O facto de serem os governos, e não as empresas e os seus trabalhadores, a pagar estes serviços aumentou a competitividade global da indústria nacional nas economias mistas resultantes.

A China seguiu esta abordagem básica do capitalismo industrial, com políticas socialistas para elevar a sua força de trabalho, e não apenas a riqueza dos capitalistas industriais – e muito menos a dos banqueiros, proprietários de terras absenteístas e monopolistas. Mais importante ainda, industrializou a banca, criando crédito para financiar investimentos tangíveis em meios de produção – e não o tipo de crédito predatório e improdutivo caracterizado pelo atual capitalismo financeiro.

Mas a política de economia mista do capitalismo industrial não foi a forma como o capitalismo evoluiu no Ocidente a partir da Primeira Guerra Mundial.

Rejeitando a economia política clássica e a sua vontade de libertar os mercados das classes proprietárias de rendas herdadas do feudalismo – uma classe de proprietários hereditários, uma classe de bancos financeiros e monopolistas – o sector rentista lutou para reafirmar a sua privatização das rendas fundiárias, dos juros e dos ganhos de monopólio. Procurou inverter a tributação progressiva e, de facto, favorecer a riqueza financeira, os proprietários de terras e os monopolistas.

O sector das finanças, dos seguros e do imobiliário (Finance, Insurance & Real Estate, FIRE) tornou-se o interesse dominante e o planeador económico do capitalismo financeiro atual. É por isso que estas economias são muitas vezes chamadas neofeudais (ou eufemizadas como neoliberais).

Ao longo da história, a dinâmica da financeirização polarizou a riqueza e o rendimento entre credores e devedores, dando origem a oligarquias. À medida que a dívida remunerada cresce exponencialmente, mais e mais rendimentos do trabalho e das empresas têm de ser pagos como serviço da dívida. Esta dinâmica financeira encolhe o mercado interno de bens e serviços e a economia sofre com o aprofundamento da austeridade provocada pela dívida.

O resultado é a desindustrialização, à medida que as economias se polarizam entre credores e devedores. Foi o que aconteceu de forma mais notória na Grã-Bretanha, na sequência de Margaret Thatcher e do Novo Partido [Anti-]Trabalhista de Tony Blair e da abordagem desreguladora "light touch" de Gordon Brown à manipulação financeira e à fraude pura e simples.

Os Estados Unidos sofreram uma transferência igualmente devastadora da riqueza e dos rendimentos para os sectores das Finanças, dos Seguros e do Imobiliário (FIRE), na sequência das reduções fiscais de Ronald Reagan para os ricos, da desregulamentação anti-governamental e da "Terceira Via" de Bill Clinton, que foi conquistada pela Wall Street. A "Terceira Via" não foi nem o capitalismo industrial nem o socialismo, mas sim o capitalismo financeiro que ganha tanto através do despojamento e endividamento da indústria como com o rendimento do trabalho.

A nova ideologia do Partido Democrata, das finanças desregulamentadas, foi coroada pelo colapso maciço das fraudes bancárias de 2008 e pela proteção de Barack Obama aos credores de hipotecas de alto risco e às execuções hipotecárias em massa das suas vítimas financeiras. O planeamento e a política económica foram transferidos dos governos para a Wall Street e outros centros financeiros – que haviam assumido o controlo do governo, do banco central e das agências reguladoras.

Diplomatas americanos e britânicos estão a tentar promover esta filosofia económica predatória pró-financeira e inerentemente anti-industrial para o resto do mundo. Mas este evangelismo ideológico é ameaçado pelo contraste óbvio entre as economias falhadas e desindustrializadas dos EUA e da Grã-Bretanha e o notável crescimento económico da China sob o socialismo industrial.

Este contraste entre o êxito económico da China e o "jardim" de austeridade endividado do Ocidente da NATO é a essência da campanha atual do Ocidente contra os países da "Selva" que procuram independência política da diplomacia americana para melhorar o seu nível de vida. Esta guerra global ideológica e inerentemente política é a contrapartida atual das guerras religiosas que dilaceraram os países europeus durante muitos séculos.

Estamos a testemunhar o que parece ser um inexorável Declínio do Ocidente. Os diplomatas americanos têm conseguido reforçar a sua liderança económica, política e militar sobre os seus aliados europeus da NATO. O seu êxito fácil neste objetivo levou-os a imaginar que, de alguma forma, podem conquistar o resto do mundo, apesar de o terem desindustrializado e de terem endividado tão profundamente as suas economias que não há forma previsível de pagarem a sua dívida oficial a países estrangeiros ou de terem muito para oferecer.

O imperialismo tradicional da conquista militar e da conquista financeira está acabado

Há uma sequência de táticas para uma nação líder criar um império. A forma mais antiga é a conquista militar. Mas não se pode ocupar e dominar um país sem um exército, e os EUA não têm um exército suficientemente grande. A guerra do Vietname acabou com a conscrição. Assim, têm de confiar em exércitos estrangeiros, como a Al-Qaeda, o ISIS e, mais recentemente, a Ucrânia e a Polónia, tal como dependem de produtos industriais estrangeiros. Os seus armamentos estão esgotados e não podem mobilizar um exército interno para ocupar qualquer país. Os EUA têm apenas uma arma: Mísseis e bombas que podem destruir, mas não podem ocupar e tomar um país.

A segunda forma de criar poder imperial foi através do poder económico para tornar os outros países dependentes das exportações dos EUA. Após a Segunda Guerra Mundial, o resto do mundo estava devastado e foi forçado a aceitar as manobras diplomáticas dos EUA para dar à sua economia um monopólio sobre necessidades básicas. A agricultura tornou-se uma arma importante para criar dependência externa. O Banco Mundial não apoiava os países estrangeiros que cultivassem os seus próprios alimentos, mas pressionava para que fossem plantadas culturas de exportação e combatia a reforma agrária. Quanto ao comércio de petróleo e energia, as empresas americanas e os seus aliados da NATO na Grã-Bretanha e na Holanda (British Petroleum e Shell) controlavam o comércio mundial de petróleo.

O controlo do comércio mundial de petróleo tem sido um objetivo central da diplomacia comercial dos EUA

Esta estratégia serviu para os EUA afirmarem o seu controlo sobre a Alemanha e outros países da NATO, fazendo explodir o gasoduto Nord Stream e cortando o acesso da Europa Ocidental ao gás, ao petróleo, aos fertilizantes e também às colheitas russas. A Europa entrou agora numa depressão industrial e numa austeridade económica, uma vez que a sua indústria siderúrgica e outros sectores de ponta são convidados a emigrar para os Estados Unidos, juntamente com a mão-de-obra qualificada europeia.

Atualmente, a tecnologia eletrónica e os chips de computador têm sido um ponto fulcral para estabelecer uma dependência económica global da tecnologia americana. Os Estados Unidos pretendem monopolizar a "propriedade intelectual" e extrair renda económica (cobrando preços elevados) pelos chips de alta tecnologia, para computadores, comunicações e produção de armas.

Mas os Estados Unidos desindustrializaram-se e deixaram-se tornar-se dependentes dos países asiáticos e de outros países para os seus produtos, ao invés de os tornarem dependentes dos EUA. Esta dependência comercial é o que faz com que os diplomatas americanos se sintam "inseguros", preocupados com o facto de outros países poderem tentar utilizar a mesma diplomacia comercial e financeira coerciva que os Estados Unidos têm exercido desde 1944-45.

Resta aos Estados Unidos uma tática para controlar outros países: as sanções comerciais, impostas por eles e pelos seus satélites da NATO, numa tentativa de perturbar as economias que não aceitam o domínio económico, político e militar unipolar dos EUA. Assim, persuadiu a Holanda a bloquear a entrada na China de maquinaria sofisticada para a gravação [litográfica] de chips e outros países a bloquearem tudo o que possa contribuir para o desenvolvimento económico da China. Um novo protecionismo industrial americano está a ser estruturado em termos de razões de segurança nacional.

Se a política comercial da China espelhasse a da diplomacia dos EUA, ela deixaria de fornecer aos países da NATO as exportações de minerais e metais necessários para produzir os chips de computador e os inputs aliados de que a economia americana necessita para exercer a sua diplomacia global.

Os EUA têm uma dívida tão pesada, os preços da habitação são tão elevados e os cuidados médicos são tão elevados (18% do PIB) que não podem competir. Não podem reindustrializar-se sem tomar medidas radicais para reduzir dívidas, desprivatizar os cuidados de saúde e a educação, acabar com os monopólios e restaurar a tributação progressiva. Os interesses criados nas Finanças, Seguros e Imobiliário (sector FIRE) são demasiado poderosos e não permitem estas reformas.

Isso faz da economia dos EUA uma economia falhada e da América um Estado falhado.

Na sequência da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos acumularam 75% do ouro monetário mundial até 1950. Isso permitiu-lhe impor a dolarização ao mundo. Mas hoje ninguém sabe se o Tesouro dos Estados Unidos e a Reserva Federal de Nova Iorque possuem ouro que não tenha sido penhorado a compradores privados e especuladores. A preocupação é que tenham vendido as reservas de ouro dos bancos centrais europeus. A Alemanha pediu que as suas reservas de ouro regressassem de Nova Iorque, mas os Estados Unidos disseram que não estavam disponíveis, e a Alemanha foi demasiado tímida para tornar públicas as suas preocupações e queixas.

O dilema financeiro dos Estados Unidos é ainda mais grave quando se tenta imaginar como poderão pagar a sua dívida externa aos países que pretendam retirar os seus dólares. Os Estados Unidos só podem imprimir a sua própria divisa. Não estão dispostos a vender os seus ativos internos, [então] como exigem que outros países devedores o façam?

O que é que os outros países podem aceitar em vez de ouro? Uma forma de ativos que podem ser tomados como garantia são os investimentos dos EUA na Europa e noutros países. Mas se os governos estrangeiros procurarem fazer isso, os funcionários dos EUA podem retaliar confiscando os seus investimentos nos Estados Unidos. Ocorreria um apoderamento mútuo.

Os Estados Unidos estão a tentar monopolizar a tecnologia eletrónica. O problema é que isso exige matérias-primas cuja produção é atualmente dominada pela China, sobretudo metais de terras raras (abundantes mas cuja refinação é destrutiva para o ambiente), gálio, níquel (a China domina a refinação), hélio russo e outros gases utilizados na gravação de chips de computador. A China anunciou recentemente que, a 1 de agosto, começará a restringir estas exportações fundamentais. Na verdade, ela tem a capacidade de cortar o fornecimento de materiais e tecnologias vitais ao Ocidente, para se proteger das sanções de "segurança nacional" do Ocidente contra a China. Esta é a profecia auto-realizável criada pelos alertas dos EUA sobre um combate comercial.

Se a diplomacia americana obrigar os seus aliados da NATO a boicotar a tecnologia Huawei da China, a Europa ficará com uma alternativa menos eficiente e mais cara – cujas consequências ajudam a separá-la da China, dos BRICS e do que se tornou a Maioria Mundial num alinhamento auto-suficiente muito mais amplo do que aquele criado por Sukarno em 1954.

Michael Hudson (nascido em 1939, Chicago, Illinois, EUA) é economista norte-americano, professor de economia na Universidade do Missouri do Kansas e pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College. Ele é ex-analista de Wall Street, consultor político, comentarista e jornalista, além de colaborador do The Hudson Report, um podcast semanal de notícias económicas e financeiras produzido pela Left Out. Na opinião de Paul Craig Roberts, Hudson é o melhor economista da atualidade.

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