A guerra contra o Irão está em movimento
Os episódios contra o Irão integram uma estratégia de guerra híbrida, tão do agrado dos estrategos actuais do establishment e que está em movimento na Venezuela.
por José Goulão
AbrilAbril - 20 de junho, 2019
https://www.abrilabril.pt/internacional/guerra-contra-o-irao-esta-em-movimento
Segundo as mais fresquinhas informações vindas directamente das águas tépidas do Golfo de Omã, a marinha dos Estados Unidos descobriu fragmentos de minas que há uma semana terão danificado dois petroleiros que estavam de passagem pela região. E segundo as inscrições nelas registadas, agora sim não há dúvida de que o autor da maldade foi o Irão, há que castigá-lo. Razão tinham o presidente Trump e os seus guardas pretorianos Bolton e Pompeo, que juravam desde o primeiro momento ter pressentido as «impressões digitais» de Teerão no incidente.
Assim se definem hoje a guerra e a paz, os culpados e os inocentes, os juízes e os condenados em relações internacionais. Como o vídeo mal-amanhado apresentado pelo comando regional do Pentágono, e em cima do acontecimento, não convenceu ninguém da culpa do Irão – excepção feita ao Reino Unido, o mais aliado entre os aliados – eis que a incansável armada imperial, vasculhando cada polegada das águas do Médio Oriente, diz ter encontrado os despojos de uma verdade, agora sim, irrefutável. Mesmo que o proprietário japonês do navio acidentado tenha garantido que não houve quaisquer minas no casco, mas sim «um objecto voador», partindo daí para qualificar a teoria norte-americana como «falsa» e levando também o governo de Tóquio a afastar-se das maquinações bélicas do seu aliado de Washington.
União Europeia sem coragem política
Até os ministros dos Negócios Estrangeiros da sempre tão solícita União Europeia, dando sinais de desconcerto e de uma clamorosa falta de coragem política, optaram por pedir «provas independentes» susceptíveis de incriminar o Irão, como quem parte do princípio de que Teerão pode ter alguma coisa a ver com a encenação quando teria tudo a perder no caso de se dedicar a estas aventuras suicidas e inconsequentes de abrir rombos em navios alheios. O Irão, a quem o direito internacional confere toda a legitimidade para encerrar o Estreito de Ormuz e quase secar o fornecimento mundial de petróleo, só iria sofrer irreparáveis danos estratégicos se optasse por recorrer a crimes banais próprios de flibusteiros de meia tigela.
A alguns ministros dos Negócios Estrangeiros da União não bastou ainda terem sido ludibriados com o golpe na Venezuela; agora guardam alguma distância em relação aos procedimentos norte-americanos, mas são incapazes de dar um único passo para tentar travar um risco de guerra com repercussões imprevisíveis. Em nome da razão e dos direitos humanos que tantas vezes invocam têm o dever de se opor, desde já, a esta aventura criminosa em andamento.
Afinal há uma prova
Uma prova – esta sim autêntica, e já com dez anos de existência – do que está a passar-se por estes dias no Médio Oriente pode ser encontrada numa publicação de um dos pesos pesados da elaboração estratégica norte-americana, o Brookings Institution, no seu trabalho Que caminho para a Pérsia? [1], publicado em 2009. A dado passo pode ler-se:
«…Seria bastante preferível, antes de lançar os ataques aéreos, que os Estados Unidos pudessem citar uma provocação iraniana como justificação para realizá-los. Claramente, quanto mais sensacionalista, mais mortífera e mais improvável for a acção iraniana melhor será para os Estados Unidos. É claro que será muito difícil aos Estados Unidos incitarem o Irão a fazer tal provocação sem que o resto do mundo reconheça esse jogo, o que o prejudicaria».
E mais adiante:
«… No caso de Washington pretender tal provocação, poderia tomar acções que tornassem mais provável a possibilidade de o Irão a fazer (embora o risco de o processo ser demasiado óbvio poder anular a provocação). No entanto, se for deixado apenas ao Irão o movimento de criação da provocação, uma coisa em relação à qual o Irão tem sido muito reservado no passado, os Estados Unidos nunca saberão ao certo se virão a dispor da necessária provocação iraniana. De facto, ela poderá mesmo não acontecer de todo».
Em dois singelos parágrafos reconstitui-se a velha estratégia de «bandeira falsa» a que os Estados Unidos têm recorrido em quase todas as guerras que iniciam. Um método que pode ir buscar-se aos finais do século XIX, quando foi lançada a guerra contra o domínio espanhol em Cuba; ao episódio do navio Lusitânia, que abriu as portas à participação dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial; a Pearl Harbour, idem aspas para a Segunda Guerra Mundial; ao caso do Golfo de Tonquim na guerra do Vietname; e sem esquecer, com as suas características muito próprias, a encenação sobre as armas de destruição massiva que estariam em poder do Iraque de Saddam Hussein.
É certo que os episódios com os petroleiros no Golfo de Omã não têm a consistência que a Brookings Institution recomenda, mas servem para provar que o quarteto fascista Trump-Pence-Bolton-Pompeo não parece preocupado com a qualidade e a credibilidade do pretexto para avançar.
Guerra híbrida
Para já os episódios contra o Irão – haja ou não os «bombardeamentos massivos», mas «limitados», norte-americanos ou israelitas de que já se fala – integram uma estratégia de guerra híbrida, tão do agrado dos estrategos actuais do establishment e que está em movimento na Venezuela, por exemplo.
Na frente iraniana, trata-se de juntar a desestabilização provocada pela ameaça latente de uma guerra convencional aos efeitos das sanções e embargos, capazes de colocar a economia de Teerão à beira do abismo por não vender petróleo, às conspirações internas para minar o regime, ao terrorismo propagandístico. Combinam-se assim múltiplas acções com uma sobrecarga de efeitos a que um país cada vez mais isolado terá muita dificuldade em resistir.
O embargo petrolífero, depois das mais recentes medidas de Washington, fechou praticamente a torneira das exportações de hidrocarbonetos iranianos. De tal modo que as autoridades de Teerão decidiram ultrapassar os limites de enriquecimento de urânio estabelecidos no Acordo Nuclear de Genebra – do qual os Estados Unidos se retiraram – para tentar contornar dificuldades energéticas suscitadas pelo descalabro económico.
Os responsáveis iranianos advertem, contudo, que esta medida será imediatamente suspensa se a União Europeia não acatar o embargo petrolífero imposto pelos Estados Unidos – uma atitude que depende assim da coragem política de Bruxelas que, como já se viu, é pouca ou nenhuma.
A guerra contra o Irão está, portanto, em movimento. Arbitrária, desumana, ilegal mas em relação à qual as Nações Unidas permanecem inactivas, a não ser pedindo «contenção às duas partes».
Duas partes? Agressor e vítima, juiz e condenado ao mesmo nível num conflito que só tem um sentido. É assim que age a chamada «comunidade internacional» perante a prepotência imperial.
O Irão está isolado; os Estados Unidos transformam as medidas decididas pelo seu governo fora-da-lei em leis de âmbito universal. De tal modo que, até ver, potências como a Rússia e a China não parecem dispostas a desafiá-las.
Na cena internacional o crime compensa. E o criminoso talvez nem necessite – embora a vontade seja muita – de recorrer à guerra convencional.
A guerra híbrida está a cumprir o seu papel.
[1] Ver Pollack, Byman, Indyk e outros, Which Path to Persia - Options for a New American Strategy toward Iran, The Saban Center for Middle East Policy, Brookings Institution (Washington: 2009).
José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP
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