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As vítimas esquecidas da guerra de classes nos EUA

Não podemos desconsiderar e demonizar os estadunidenses rurais brancos. A guerra travada pelas corporações devastou as vidas deles e das suas comunidades

por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report

Brasil 247 - 1 de agosto, 2023

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Rua Principal dos EUA - Main Street America – arte de Mr. Fish (Foto: Mr. Fish)

MECHANIC FALLS, estado de Maine, EUA – Estou sentado na barbearia de Eric Heimel, no centro de Mechanic Falls. Russ Day, que foi o proprietário por 52 anos antes de vendê-la a Eric, cortava o meu cabelo quando eu era garoto. A barbearia parece igual a antes. O piso desgastado de linóleo. A cadeira de barbeiro modelo Emil J. Paidar 1956. As duas bandeiras dos EUA na parede, ladeando o espelho oval. A placa que diz: “Se um homem está sozinho no mato, sem mulher alguma para escutá-lo, será que ele está errado, mesmo assim?” Outra placa diz: “Os homens têm 3 estilos de cabelo … repartidos, não repartidos e PARTIDOS! [mortos]” Eu quase consigo ver o meu avô, com o seu espesso anel maçônico de ouro no seu dedo mindinho, fumando um cigarro Camel sem filtro, esperando que Russ termine.

Eric cobra US$ 15 por um corte de cabelo. Ele queria ser um soldador, mas as aulas de solda estavam cheias.

“Cabelo. Solda. Tudo a mesma merda”, diz ele, vestindo uma camiseta preta que diz “Toad Suck” [expressão idiomática, uma entrada de um rio onde sapos se escondem] e tem uma imagem de um sapo montado numa motocicleta Harley-Davidson. No chapéu de Eric há uma isca feita em casa de pelo de corça, conhecida como um rato, que ele usa para pescar.

“Isca grande. Peixe grande”, diz ele.

“Há 17 mil carros e caminhões que passam por aquele semáforo por dia”, ele diz, olhando para o semáforo que fica do lado de fora da sua barbearia. “Eu só preciso que 10 ou 20 deles por dia parem para um corte de cabelo”.

A pandemia impactou duramente a sua barbearia. Durante meses, os clientes desapareceram. Eric não tomou a vacina contra a Covid. Ele não confia nas empresas farmacêuticas e não está convencido pelas garantias do governo de que ela seja segura e eficaz. Depois, além da Covid, havia a questão da placa acima da barbearia que dizia: “Barbearia do Russ Day”.

Russ queria ter a placa de volta.

“Quando eu comprei a barbearia, eu comprei a placa”, diz Eric.

Uma noite, a placa foi roubada.

“Não foi o Russ”, diz ele. “Ele tem mais de oitenta anos. Deve ter sido o genro dele”.

“Você chamou a polícia?”, perguntei eu.

“Como é que você vai ganhar no tribunal contra um cara de 82 anos?”, responde ele. Além do que, eu jamais chamei a polícia contra ninguém.

Russ informou Eric que ele queria a sua truta empalhada.“Eu já lhe dei o seu salmão”, diz Eric. “Esta truta não é mais dele. A truta é do Eric.”

Discutimos sobre o noticiário local, incluindo o homem que enfiou o seu cartão de crédito da Citgo [empresa petrolífera] no outono passado, despejou gasolina sobre a sua cabeça e pôs fogo nele mesmo. Ele morreu. Em maio, um homem intoxicado disparou vários tiros contra outro homem na Rua True. Ele errou. Também ocorreu um esfaqueamento, quando dois vizinhos brigaram. Porém, crimes sérios são uma raridade, apesar de muitas pessoas terem pequenos arsenais de armas em suas casas.

O antigo vilarejo de uma única fábrica de papel de 3.107 pessoas, como todas as localidades rurais em todos os EUA, luta para sobreviver. Não há muito trabalho desde que a usina de papel da empresa Marcal Paper – que operava em três turnos por dia e se localizava às margens do rio Little Androscoggin, que passa pelo centro de Mechanic Falls – foi fechada em 1981. A minha tia trabalhava no departamento de contabilidade. Naquela época, os dias de glória do vilarejo haviam se acabado. A Evans Rifle Manufacturing Company, que fabricava rifles de repetição, e as fábricas de tijolos e enlatados, as sapatarias, a fábrica de máquinas a vapor, W. Penney & Sons, uma das maiores fábricas de máquinas a vapor no estado, já haviam se tornado memórias distantes.

Os alicerces tomados por ervas daninhas das velhas fábricas permanecem nos subúrbios da vila, esquecidos e negligenciados. A velha fábrica de papel foi destruída por um incêndio em 2018. Há vitrines vazias na rua central e o problema onipresente de insegurança alimentar – a escola média regional tem uma refeição matinal e um almoço grátis – e os opioides e o alcoolismo. Num raio pequeno, há três ou quatro dispensários de maconha. A casa na qual meus avós moravam, a duas quadras do centro, incendiou-se. O mesmo ocorreu com a igreja do outro lado da rua. Os restos carbonizados dela jamais foram removidos. Nas manhãs de domingo, eu podia ouvir a congregação cantando hinos. O banco no centro fechou, agora é um estúdio de fotografia e um salão de beleza. Há um cassino na cidade de Oxford, o qual, como ocorre com os bilhetes de loteria, funciona como um imposto disfarçado sobre os pobres. No dia que eu visitei, uma vaquinha estava sendo feita numa sorveteria para um menino de 8 anos de idade que precisa de um transplante de rim.

O vilarejo é 97% branco. A idade média é de 40 anos. A renda média familiar é de US$ 34.864. Trump ganhou a eleição no Condado de Androscoggin, no qual se localiza Mechanic Falls, conquistando 48,9% dos votos na última eleição. Biden ganhou 47%. Republicanos como Trump jamais conquistaram votos no passado. Franklin D. Roosevelt ganhou o condado nas eleições de 1932. Em 1972, o condado votou em George McGovern. Jimmy Carter ganhou o condado nas suas duas eleições presidenciais. Porém, assim como em dezenas de milhares de enclaves rurais em todo o país, assim que os empregos se foram e os Democratas abandonaram os trabalhadores e trabalhadoras, as pessoas se desesperaram. Depois que a fábrica de papel foi fechada, com uma perda de mais de 200 empregos, Ronald Reagan e George H. W. Bush ganharam as eleições no condado, assim como ocorreu no estado. Mas as coisas não melhoraram.

Do outro lado da rua da barbearia fica o Bamboo Garden, um restaurante mantido pela única família chinesa do vilarejo. Eric diz que os proprietários o ganharam de um outro casal chinês num jogo de pôquer. Como foi a experiência deles? Como é que a filha deles lidou com o fato de ser a única menina chinesa na escola? Será que eles foram aceitos e integrados na comunidade. Eu converso com a dona, Layla Wang. Eu lhe pergunto se ela vivenciou racismo. “Pessoas muito legais”, diz ela. Eu lhe pergunto se a sua filha – que agora tem 26 anos de idade e vive em Boston – teve dificuldades na escola. “Pessoas muito legais”, diz ela.

Deve ter sido um inferno.

Meu avô pouco se importava com Negros, Judeus, Católicos, homossexuais, comunistas, estrangeiros ou qualquer um que viesse de Boston. Se você não fosse branco, protestante e nascido em Mechanic Falls, você estava num lugar muito baixo na escala racial e social. Eu não consigo imaginar que ele convidaria a família Wang para jantar.

Nas aforas do vilarejo, fica a loja Top Gun of Maine, que vende armas de fogo e mantém um estande de tiro. Há uma bandeira vermelha com estrelas e barras na parede, a qual diz: “Nação de Trump”. O proprietário coloca periodicamente mensagens num quadro na fachada da loja – como “Biden vai nos tirar as armas” e “Let's Go Brandon” (aka “Fuck Joe Biden”) [Que Joe Biden se foda].

Eu encontrei Nancy Petersons, a bibliotecária do lugar, e o seu marido, Eriks, que gerencia a sociedade histórica na biblioteca do vilarejo. A biblioteca fica onde era a sala de economia doméstica da velha escola média. Minha mãe e minha tia frequentaram as aulas de economia doméstica ali. Os estudantes da escola média agora vão a uma escola vocacional na cidade vizinha de Poland. O prédio que costumava abrigar a biblioteca do vilarejo quando eu era um menino, foi vendido.

Em uma das paredes do primeiro andar, onde se localiza o escritório do vilarejo, há uma fotografia em cor sépia do 103º Regimento de Infantaria do estado do Maine. Meu avô, que era um sargento, está sentado do lado direito, no final da primeira fila. Meu tio Maurice está em pé na fila de trás. Meu avô foi enviado ao Texas durante a Segunda Guerra Mundial para treinar recrutas. Maurice seguiu com o regimento ao Pacífico Sul, lutando em Guadalcanal, nas Ilhas Salomão, nas Ilhas Russell, nas Ilhas de Nova Georgia, na Nova Guiné e em Luzon, nas Filipinas. Ele foi ferido. Ele voltou para Mechanic Falls fisicamente e psicologicamente debilitado. Ele trabalhava na madeireira do meu tio, mas frequentemente desaparecia por muitos dias. Ele jamais falou sobre a guerra. Ele morava num trailer e bebeu até a morte.

Quando a usina metalúrgica acabou, as pessoas tiveram que trabalhar fora do vilarejo. O maior estaleiro militar do Maine, o Bath Iron Works, costumava mandar vans para pegar os trabalhadores cedo pela manhã e os traziam de volta à noite. A viagem até Bath dura 90 minutos.

O estado do Maine gera excêntricos. Nancy e Eriks me contam sobre Mesannie Wilkins, que foi enterrada no cemitério do vilarejo, a quem contaram em 1955, cinco semanas antes do seu 63º aniversário, que lhe restavam quatro anos de vida. O banco estava preparado para executar a hipoteca da sua casa. Ela decidiu, já que a sua vida seria tão curta e ela estaria sem casa, de ir a cavalo do Maine até a Califórnia. Ela saiu do vilarejo com US$ 32 no bolso. Ela montou num cavalo chamado King. O seu cão, Dépêche Toi, montou num cavalo preto-enferrujado de nome Tarzan. Mesannie, que completou a jornada de mais de 11.000 quilômetros em 16 meses, vestia uma capa de caça com protetores de orelhas e botas de feltro de lenhador, viveu por mais 25 anos. A estrada Jackass Annie Road, em Minot, foi nomeada em sua homenagem. E depois havia Bill Dunlop, um veterano da marinha e motorista de caminhão, que navegou o Oceano Atlântico em um barco de fibra de vidro de 2,7 metros chamado de Wind's Will [Vontade do Vento]. Ele levantou âncora no seu minúsculo barco para circunavegar o globo, uma viagem prevista para durar de 2,5 a 3 anos. Ele passou pelo Canal do Panamá e chegou até a metade do Oceano Pacífico, mas desapareceu em 1984 na vasta expansão de água que separa as Ilhas Cook e a Austrália.

Já é o final da tarde. Estou numa mesa no Posto 150 da Legião Americana na rua Elm com Rogene LaBelle – que foi uma garçonete durante 50 anos - e a sua amiga Linda Record. É a noite dos hambúrgueres. Os membros da Legião [veteranos de guerra] podem comprar um hambúrguer com batatas fritas por US$ 5.00. O salão está lotado. O bar está muito ocupado. Há bandeiras dos EUA na parede e uma foto do Memorial Nacional da Segunda Guerra Mundial.

As mulheres se lembram do vilarejo antes da usina metalúrgica fechar.

“Famílias inteiras trabalhavam lá, maridos e esposas”, diz Rogene. “E quando a usina acabou, os negócios locais acabaram com ela. Agora, a maioria das pessoas trabalha fora do vilarejo”.

Ela menciona uma lista de restaurantes nos quais ela trabalhou com garçonete ao longo dos anos, os quais se fecharam ou pegaram fogo.

“Antes este salão da Legião era um cinema”, diz ela. “Eu passei pelo corredor do cinema e subi no palco, quando eu estava na 8ª série, para receber o meu diploma”.

Colleen Starbird, vestindo uma camiseta-regata cinza e jeans, estava sentada na varanda com um amigo, Richard Tibbets – que completou dois ciclos de serviço nos Fuzileiros Navais, no Vietnã. O marido de Colleen fez três turnos como artilheiro em helicópteros Huey dos Fuzileiros Navais no Vietnã. Ele morreu há 17 anos de cânceres nos pulmões e nos ossos, que Colleen acredita que tenham sido causados pelo Agente Laranja. O casal era proprietário da antiga fábrica de papel, a qual eles estavam transformando em apartamentos. Eles não tinham seguro de saúde.

“Ele viu coisas ruins”, diz ela. “Eles interrogavam os Vietcong e os jogavam vivos dos helicópteros. Ele tinha flashbacks. Ele reencenava eventos. Numa noite, ele me forçou a rastejar debaixo do jipe, gritando 'Eles estão aqui! Eles estão aqui!' Ele realmente acreditava neste país. Ele não queria saber que havia ido à guerra por nada”.

Colleen tem as unhas dos pés pintadas de cor-de-rosa, longas unhas brilhantes de cor âmbar nos dedos das mãos, e os braços cheios de tatuagens. A tatuagem que ela ganhou quando se casou diz: “Eu encontrei aquele a quem a minha alma pertence”. Ela fez outra tatuagem quando seu marido morreu – esta diz: “Para Sempre no Meu Coração”.

Não podemos desconsiderar e demonizar os estadunidenses rurais brancos. A guerra de classes, travada pelas corporações e os oligarcas dominantes, devastou as vidas deles e das suas comunidades. Eles foram traídos. Eles têm todo o direito de sentir raiva. Aquela raiva algumas vezes pode ser expressa de maneiras inapropriadas, mas eles não são o inimigo. Também eles são vítimas. No meu caso, eles são a minha família. É de lá que eu venho. A nossa luta por justiça econômica deve incluí-los. Nós recuperaremos o controle da nossa nação juntos, ou não o faremos jamais.

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prémio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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