“A NATO não se moverá uma polegada para Leste”
(Promessa dos dirigentes ocidentais a Gorbatchev em troca da liquidação da União Soviética)
A promessa é mais do que conhecida. Foi declarada e repetida, em diversas circunstâncias, no início dos anos noventa do século passado, ao então presidente soviético, Mikhail Gorbatchev, pelos dirigentes dos mais importantes países da Aliança Atlântica: o secretário de Estado norte-americano, James Baker; o chanceler alemão, Helmut Kohl; o presidente francês, François Mitterrand; o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Hans Dietrich Genscher; o primeiro ministro britânico, John Major; o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Douglas Hurd. Eventualmente, outros mais.
Está abundantemente comprovado, hoje em dia, que dessa promessa feita por honrados políticos, modelos da democracia liberal e do “nosso civilizado modo de vida”, sem falar dos direitos humanos e da inquestionável superioridade moral, nada resta. Foi feita em pó, espezinhada, abatida a tiro e depositada sobre centenas de milhares ou mesmo milhões de cadáveres humanos, resultantes de uma nova ordem mundial à margem do direito internacional, fundada nesses tempos sobre os escombros da guerra fria e do muro de Berlim. Uma situação trágica, revoltante, tornada possível porque essas palavras não valeram nada, transformadas num vazio equivalente à honra e ao respeito à palavra dada dos dirigentes de Washington e de uma “nova Europa” colonizada pelos Estados Unidos da América, ontem como hoje. Há coisas que não mudam, porque foram estruturadas para serem assim com base na força militar, nos poderes oligárquicos, na chantagem, no desprezo pelas pessoas, na sucessão de chefes políticos formados na submissão às oligarquias económicas e financeiras e no exercício do controlo autoritário sobre os mais fracos – os seus povos, em especial as camadas mais desfavorecidas. Para isso tornaram-se praticantes convictos da mentira, da manipulação, da falsificação da democracia, tecendo classes políticas humanamente deformadas e nas quais abundam os traços de sociopatia.
Uma casta doente
Diz-se que a promessa não ficou escrita, pelo menos procuram convencer-nos dessa suposta insuficiência diplomática. Demonstraremos a seguir que não é bem assim.
Para os opinantes que se multiplicam como cogumelos, sobretudo desde que a Academia se transformou num eco e numa servidora da corrente de opinião uniformizada, com perseguição do contraditório como estipula a doutrina única do neoliberalismo-neoconservadorismo, essa omissão parece ser um problema inultrapassável. Se não está escrito, não existe. Apertos de mão, acordos de cavalheiros, seriedade da palavra dada são comportamentos anacrónicos, não é apenas no futebol que uma verdade de hoje pode deixar de sê-lo amanhã.
Mark Kremer, director de Estudos da Guerra Fria da Universidade norte-americana de Harvard, escreveu na revista Washington Quaterly de Abril de 2009 que “não foi feita qualquer promessa sobre um alargamento da NATO porque não havia nenhum documento escrito assinado entre os dois lados, incorporando-a”. Mais diz Kremer: “o materiais desclassificados mostram inequivocamente que tal promessa não foi feita. Podem ser apresentados argumentos válidos contra o alargamento da NATO, mas este argumento específico é espúrio”.
Para apurarmos a seriedade do “estudo” basta ler que, segundo o mesmo Mark Kremer, “em 7 de Fevereiro de 1990, o secretário de Estado dos EUA, James Baker, reuniu-se em Moscovo com o ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, Eduard Chevardnaze, usando a formulação do [ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans Dietrich] Genscher, de que se a Alemanha (unificada) fosse incluída na NATO os Estados Unidos e seus aliados garantiriam ‘que a jurisdição ou as forças da NATO não se moveriam para o leste"’.
Ou seja, segundo este “historiador” da Ivi League, a promessa existiu e, ao mesmo tempo, não existiu. O problema, segundo ele, é que Mikhail Gorbatchev foi “ingénuo” e “optimista”, dispondo-se a fazer o que os chefes da NATO exigiram para ter em troca a garantia de que a NATO ficaria no mesmo sítio (anexando apenas a República Democrática Alemã) sem que o negócio ficasse escrito. Ao que consta, o próprio Chevardnaze aconselhou Gorbatchev a não se contentar com as promessas verbais, provavelmente por não confiar tanto nos interlocutores e tendo ainda em conta a envergadura histórica, social e geoestratégica das exigências impostas ao dirigente soviético.
De acordo com os documentos sobre o assunto que têm vindo a ser desclassificados, e que expõem mais uma vez a falta de carácter de uma classe política doente tanto na NATO como em Moscovo, seja nos anos noventa ou na actualidade, a tarefa imposta a Gorbatchev para garantir a imobilidade da Aliança Atlântica foi de monta: extinção da União Soviética, erradicação do socialismo, a instauração de uma “democracia ocidental”, a unificação da Alemanha e respectiva integração no clube atlantista, o desmantelamento do Tratado de Varsóvia.
A realidade em que vivemos demonstra que o último presidente soviético, ao mesmo tempo chefe da comissão liquidatária do seu país, cumpriu zelosamente a tarefa, enquanto os seus interlocutores procederam como se nada tivessem dito ou prometido. O que não surpreende quando o que estava em construção era a “ordem internacional baseada em regras”, a principal das quais é a de que vale tudo, incluindo a chacina de seres humanos por atacado, desde que estejam em causa, seja em que lugar do mundo for, os “interesses” coloniais e imperiais dos Estados Unidos, da NATO e, por arrastamento, da União Europeia. Novos ventos fazem hoje oscilar essa estrutura, apesar de sustentada por profundas raízes que vêm até da Idade Média, mas são ainda tortuosos, e assustadores, os caminhos para uma nova realidade capaz de restaurar o primado do direito internacional.
“Ingenuidade” ou “optimismo” de Gorbatchev? A procura de uma resposta levar-nos-ia noutra direcção que não a deste texto. Registemos apenas o facto de não ser segredo que o dirigente soviético revelou uma invulgar admiração, e até um deslumbrado orgulho provinciano, por conviver com a nata do Ocidente; isto é, personalidades tão recomendáveis como os presidentes norte-americanos Ronald Reagan e George Bush (pai), os primeiros-ministros britânicos Margaret Thatcher e John Major, os chefes da NATO e da União Europeia e até o Papa João Paulo II, que conspirou sem disfarçar pela mudança de regime no seu país natal, a Polónia, e pelo fim do socialismo enquanto visitava o sanguinário Pinochet e se alinhava com a poderosa vaga neoliberal. Cujas consequências hoje conhecemos muito bem.
Também é significativo, para tentar aprofundar-se o verdadeiro papel histórico de Gorbatchev, que o presidente soviético não tenha, em momento algum, tentado negociar a lógica dissolução simultânea dos dois blocos militares: NATO e Tratado de Varsóvia. Seria o caminho natural para encerrar a guerra fria uma vez que, como se repetia, deixara de haver antagonismos ideológicos e militares dos dois lados da, supostamente demolida, cortina de ferro.
Nas andanças de cimeira em cimeira com tão empáticos interlocutores, Mikhail Gorbatchev repetia, como um chavão, uma frase através da qual pretendia fazer crer que se guiava pelos interesses do seu país e dos seus povos: “confia mas verifica”.
O certo é que confiou, mas esqueceu-se de verificar. E, num ápice, os países membros do Tratado de Varsóvia transferiram-se para a NATO, juntando-se-lhes, pouco depois, os restos do sangrento esfacelamento dos Balcãs montado à moda atlantista. A Aliança Atlântica cavalgou assim para as fronteiras da Rússia anexando países emergentes dos escombros da União Soviética. Até à tragédia da Ucrânia, cozinhada em Washington com os temperos inconfundíveis da NATO, que nos coloca à beira de uma hecatombe inimaginável.
Inequívoco padrão mafioso
E, no entanto, a promessa de que a NATO não se moveria “uma polegada para leste” existiu mesmo. Se dúvidas houvesse, documentos recentemente desclassificados e outros na altura deixados ao alcance de várias instituições políticas confirmam as garantias dadas pelos nobres representantes do Ocidente ao “crédulo” Gorbatchev. Trata-se de testemunhos escritos por várias personalidades que acompanharam o processo dito do “fim da guerra fria” e tomaram conhecimento directo das promessas feitas a Moscovo, fazendo assim cair pela base as teorias de que a palavra dada só é válida quando inscrita no silêncio do papel ou de qualquer suporte informático.
Na Câmara dos Lordes britânica está depositado desde Fevereiro de 2015 – significativamente em pleno desenvolvimento da crise da Ucrânia gerada pelo golpe neoliberal-nazi – um documento de Rodric Braithwaite, antigo embaixador na União Soviética e na Rússia, no qual confirma “as garantias (a Moscovo) que foram dadas em 1990 pelos Estados Unidos (James Baker, secretário de Estado) e pela Alemanha (Helmut Kohl, chanceler alemão), e em 1991, em nome do Reino Unido (pelo então primeiro-ministro, John Major, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Douglas Hurd) e da França (pelo presidente François Mitterrand)”. Ainda de acordo com o texto de Braithwaite, “este registo factual não foi contestado com êxito no Ocidente”.
Em Agosto de 2009, o antigo senador por New Jersey Bill Bradley, que foi candidato pelos democratas à corrida presidencial de 2000, escreveu na revista Foreign Policy que, “quando falei com Baker, ele concordou que disse a Gorbatchev que se a União Soviética permitisse a reunificação da Alemanha e a sua adesão à NATO, o Ocidente não expandiria a aliança ‘um centímetro para o Leste’”.
A palavra agora para Lawrence Wilkerson, coronel na reserva, político republicano, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado Collin Powell. Numa entrevista ao Real News Network em 3 de Outubro de 2014 – igualmente quando se sentiam os primeiros efeitos do golpe ucraniano –afirmou: “Eu estava lá quando dissemos aos russos que íamos torná-los membros (da NATO); primeiro seriam observadores e depois membros”.
Na realidade, em plena época de encantamento manifestado durante os contactos com os principais dirigentes ocidentais, Mikhail Gorbatchev solicitara a adesão da URSS à Aliança Atlântica, uma vez que, como se dizia e repetia à boca cheia, os conflitos ideológicos e militares tinham sido ultrapassados. Foi o secretário de Estado James Baker, significativamente dedicado agora à “ecologia”, quem deitou água na fervura declarando que “a segurança pan-europeia é um sonho”.
Mary Elise Sarotte, historiadora, membro do influente Conselho de Relações Externas e titular de posições destacadas nas Universidades Johns Hopkins e Harvard, onde preside ao Gabinete de Estudos Europeus, testemunhou que, no início de 1990, “Kohl (o chanceler alemão) garantiu a Gorbatchev que ‘naturalmente a NATO não poderia expandir o seu território para o território da Alemanha Oriental’”. Acrescentou que, “em conversações paralelas, Genscher (ministro alemão dos Negócios Estrangeiros) transmitiu a mesma mensagem ao seu homólogo soviético, Eduard Chevardnaze, dizendo: ‘para nós, mantém-se firme: a NATO não se expandirá para Leste’”. Duas publicações de Mary Elise Sarotte foram consideradas “livros do ano” por The Economist e Wall Street Journal.
“P’ró diabo com a promessa!...”
Os testemunhos aqui deixados são conclusivos: os principais dirigentes ocidentais prometeram aos últimos dirigentes soviéticos que a NATO continuaria a existir mas sem expandir o seu território, pelo menos “para Leste”.
Mais de trinta anos passados, vivendo a situação aterradora de hoje e rememorando a maneira como aqui chegámos, percebe-se quanto vale a palavra dada pelos dirigentes ocidentais.
Há dois documentos, porém, que são absolutamente explícitos e ilustram como podem ser escabrosas as metodologias do regime ocidental dominante nas suas versões de duas ou mais caras, em privado ou em público, verbalmente ou por escrito, oficialmente ou em segredo. Torna-se inequívoco o padrão mafioso desses comportamentos.
Os documentos são as transcrições oficiais norte-americana e alemã, citadas também pela historiadora Mary Elise Sarotte, do encontro entre o presidente norte-americano George H.W. Bush e o chanceler alemão Helmut Kohl, na noite de 24 de Fevereiro de 1990, em Camp David.
Quando o dirigente alemão abordou o assunto do compromisso sobre a NATO assumido com Moscovo, a reacção de Bush (pai) foi histórica no pior sentido que o adjectivo possa ter: “P’ró diabo com isso! Fomos nós que vencemos, não foram eles!”.
A partir de então nunca mais se ouviu falar oficialmente da promessa sobre o congelamento territorial da NATO. A mensagem inequívoca do presidente dos Estados Unidos, o verdadeiro comandante-em-chefe da aliança, foi certamente transmitida por Kohl a todos os aliados, na verdade súbditos.
Precavendo a possibilidade de haver alguma dissonância entre Berlim e Paris, uma vez que Mitterrand tinha um peso que torna irrelevantes figuras como Macrons, Scholzs e Hollandes, Bush enviou um telegrama confidencial para o Eliseu informando que a NATO continuaria a ser a organização da segurança europeia e não qualquer outra entidade pan-europeia do género Comunidade Económica Europeia, União Europeia, Exército Europeu.
O império definira o futuro imediato – e a prazo indeterminado – do mundo e, sobretudo, do continente europeu, ditado pela fusão fascizante entre a ortodoxia económica neoliberal e a teoria política e social neoconservadora que assumira o poder no complexo militar, industrial e tecnológico dos Estados Unidos durante os consulados de Reagan (anos oitenta) – dissolvendo as já ténues fronteiras que ainda poderiam separar democratas e republicanos. Institucionalizando, em suma, o partido único.
William Clinton e Hillary Clinton iriam chegar a seguir para o demonstrar. Recordemos, apenas de passagem, as carnificinas na ex-Jugoslávia, na Líbia e na Síria e os papéis nelas representados por cada um dos membros do casal.
A NATO desestabilizou primeiro e avançou depois para os Balcãs – os resultados estão à vista – e, um após outro, e alguns simultaneamente, a esmagadora maioria dos países do Tratado de Varsóvia, juntamente com os ex-territórios soviéticos do Báltico, entraram de rompante na Aliança Atlântica. Em vez de uma polegada ou um centímetro, a NATO cavalgou sem freios mais de milhar e meio de quilómetros, para as fronteiras da Rússia. Onde Boris Ieltsin, o ex-secretário da organização de Moscovo do Partido Comunista da União Soviética, se tornara presidente da recém-declarada Federação Russa franqueando as portas para o saque neoliberal e sem limites das riquezas naturais e do aparelho produtivo e científico soviético, ao mesmo tempo que hipnotizava os cidadãos com as maravilhas da sociedade de consumo e dos mágicos poderes do mercado.
O que George H.W. Bush dissera a Kohl, naquela noite de 24 de Fevereiro de 1990, é que o império pretende, então como hoje, ter o poder sobre toda a Europa até à Rússia e conquistar este país, desmantelando-o, garantindo o acesso irrestrito às suas imensas riquezas. Isto é, retomar a saga sangrenta de Hitler e alcançar o que este não conseguiu, objectivo para o qual a guerra fria foi insuficiente.
Mais de 50 dias depois de o presidente norte-americano ter deixado claro ao chanceler alemão que as garantias dadas a Moscovo eram falsas, o engodo lançado a Gorbatchev ainda continuava presente no discurso oficial. Manfred Woerner, o alemão que então exercia o cargo de secretário-geral da NATO, como sempre um simples funcionário da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono, pronunciou em Bruxelas, em 19 de Maio de 1990, um discurso que sabia ser fraudulento: “o simples facto de estarmos dispostos a não enviar tropas da NATO para além do território da República Federal (da Alemanha) dá à União Soviética garantias firmes de segurança.” Na mesma alocução, Woerner recorreu ao mantra absurdo segundo o qual “a nossa estratégia e a nossa Aliança são exclusivamente defensivas”. Sabemos muito bem o que isso quer dizer.
São assim sucessivos os casos comprovativos de que o discurso e os comportamentos dos dirigentes do chamado “Ocidente alargado” se revelam, por regra, contraditórios e traduzem uma estratégia contumaz de mentira. Enfim, gente não respeitável para quem as pessoas são meros instrumentos a manter sob controlo férreo, se possível, mas não necessariamente, sob aparência benigna dita democrática.
Gente falsa, desprezível e perigosa
Definido o sentido da nova ordem na frase ditatorial de George H.W. Bush na noite de 24 de Fevereiro de 1990, as estruturas começaram a ser desenvolvidas, funcionando como o enquadramento das “regras” que iriam suprimir, como suprimiram, o direito internacional do cenário geoestratégico de decisão. Publicamente, Bush não assumiu na totalidade o objectivo traçado na reunião que teve com Kohl: limitou-se a proclamar no seu discurso de 1992 sobre o Estado da União que “pela graça de Deus, a América venceu a guerra fria”.
Ainda em 1992, o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Paul Wolfowitz, publicou o Guia de Planeamento da Defesa para os anos de 1994-1999, que deveria ter ficado secreto mas foi divulgado pouco depois pelo New York Times. Conhecido como “doutrina Wolfowitz”, o documento estipula que “o nosso primeiro objectivo é evitar o ressurgimento de um novo rival quer no território da antiga União Soviética, quer noutro local”. Devemos, acrescenta, “dissuadir ou derrotar os ataques de qualquer origem”; “temos de manter os mecanismos para dissuadir os potenciais concorrentes de aspirarem mesmo a um papel regional ou global mais vasto”.
Em suma, ditou Wolfowitz, “a ordem mundial é, em última análise, apoiada pelos Estados Unidos e será um importante factor de estabilidade”, porque “não podemos permitir que os nossos interesses críticos dependam exclusivamente de mecanismos internacionais que podem ser bloqueados por países cujos interesses possam ser muito diferentes dos nossos”. A actualidade desta resenha da “ordem internacional baseada em regras” é flagrante e, funcionando na altura também como um recado firme à União Europeia, ajuda a perceber o papel secundário e de submissão reservado a esta entidade e que hoje se concretiza de maneira humilhante.
No cenário programático surgira entretanto o “Projecto para o Novo Século Americano”, elaborado pela dupla democrática e republicana formada por William Kristol e Robert Kagan para promover “a liderança mundial dos Estados Unidos”. Dessa base teórica nasceram os conceitos segundo os quais os Estados Unidos são “a única nação indispensável” e “a nação excepcional” (o “excepcionalismo”). Trata-se, segundo os autores, de prosseguir “a política reaganiana de poderio militar e de transparência moral” – o domínio “de espectro total” da associação fascizante entre a selvajaria neoliberal e as políticas sociais retrógradas, o neoconservadorismo. O princípio deste catecismo é o de que “a liderança americana é, ao mesmo tempo, boa para a América e para o mundo”. A caminho do globalismo, como estipula o império principalmente através do Fórum Económico Mundial (Davos).
Robert Kagan, um dos principais expoentes neoconservadores, é esposo de Victoria Nuland, a secretária de Estado adjunta de Obama e Biden e a golpista operacional da ascensão do nazi-banderismo ao poder em Kiev, em 2014, através da chamada “revolução de Maidan”. Esta mudança de regime definida em Washington foi apresentada como um projecto de “democratização do país” e esteve na origem da guerra e do martírio do povo ucraniano, que hoje continua.
A influência da família Kagan-Nuland não se fica por aqui porque Kimberly Kagan, cunhada de Victoria Nuland, fundou e dirigiu, a partir de 2007, o Instituto dos Estudos de Guerra, agora um dos think-tank mais influentes na propaganda da guerra na Ucrânia, sobretudo através da manipulada comunicação social corporativa. Ainda em 2007, a própria imprensa norte-americana baptizou o casal Kagan como os “warmongers” (fanáticos da guerra, em tradução livre) pela sua insistência no “reforço” da presença militar dos Estados Unidos e outros países da NATO no Iraque.
O peso dos neoconservadores nas administrações norte-americanas desde os anos oitenta, principalmente nas democratas porque foi menos evidente com Donald Trump, pode avaliar-se pela questão ucraniana e a aposta total na guerra, apesar de os resultados no terreno continuarem a ser desfavoráveis ao regime terrorista vigente na Ucrânia Ocidental. E já lá vão dois exércitos arrasados, enquanto o terceiro começa a estar em risco.
A Ucrânia foi identificada, desde a extinção da URSS, como o pilar essencial da ordem internacional baseada em regras e consequente cerco intimidatório da Rússia – tornado estratégico à luz da doutrina Wolfowitz. Zbigniew Brzezinski, conselheiro de vários presidentes norte-americanos e autor do Grande Jogo de Xadrez, obra de referência considerada indispensável para conhecer o lado imperial da geoestratégia das últimas décadas, estipulou que “quem dominar a Ucrânia domina a Eurásia”. E quem domina a Eurásia domina o mundo, pode deduzir-se.
Na Ucrânia reside assim o problema da sobrevivência da ordem internacional baseada em regras na qual assenta actualmente o poder imperial. A doutrina Wolfowitz foi ultrapassada, entretanto, pela ascensão consolidada da Rússia, da China e das organizações internacionais mobilizadas em torno da “aliança estratégica” estabelecida entre estas duas potências; o “novo século americano” está a ser posto seriamente em causa pela nova situação gerada pela convergência de interesses, pontuais ou mais alargados – sobretudo o da soberania nacional - entre países da Ásia, África e América Latina reunindo cerca de 85% da população mundial. Os quais começam a aperceber-se de que podem escapar ao destino fatal da submissão a uma única potência.
Resta ao imperialismo “excepcionalista”, levando a reboque as taras coloniais que persistem nos cérebros distorcidos da maior parte dos dirigentes ocidentais, insistir no caminho trágico e afunilado da guerra da Ucrânia para desmantelar e conquistar a Rússia (ou o que dela restaria), conforme foi sentenciado em 24 de Fevereiro de 1990 como objectivo da continuação de guerra fria, transformada em conflito armado. Daí as interrogações que permanecem enquanto os países ocidentais continuam a despejar milhares de milhões de euros e dólares e milhões de toneladas de armamentos no regime falhado e de inspiração nazi em Kiev: o desespero ocidental levar-nos-á à “Terceira Guerra Mundial”, que seria o princípio do fim da humanidade? Insistem os lunáticos dirigentes ocidentais em alcançar o êxito onde Napoleão e Hitler fracassaram?
Pelo caminho deste conflito ficaram os Acordos de Minsk de 2015 e até o acordo de Istambul, já em Março de 2022, que poderiam ter aberto oportunidades à interrupção da guerra e à negociação da paz. O seu fracasso, provocado pelos dirigentes atlantistas, comprova que, segundo Washington e os seus cobardes vassalos da NATO, apenas a conquista e o desmantelamento da Rússia podem ser os resultados aceitáveis desta guerra.
Como se sabe, através de confissões da ex-chanceler alemã Angela Merkel, do ex-presidente francês François Hollande e dos anterior e actual presidentes nazis-banderistas da Ucrânia, Poroshenko e Zelensky, os Acordos de Minsk foram assinados pelo Ocidente para serem violados, como expediente com o objectivo de ganhar tempo e equipar militarmente a Ucrânia de maneira a poder confrontar-se com a Rússia e ganhar; e o acordo de Istambul foi inutilizado por uma expedição colonial a Kiev do ex-primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, certamente a rogo de Washington.
Merkel dizia ter em Helmut Kohl a sua referência; Hollande representava a herança política de François Mitterrand, que aliás liquidou; Poroshenko e Zelensky são apenas idiotas úteis para “garantir a liderança mundial dos Estados Unidos”, replicando o papel de súbditos assumido pelos dirigentes dos países da NATO.
Num desenvolvimento seguindo uma lógica irrepreensível, os vergonhosos episódios relacionados com os acordos de Minsk e Istambul são réplicas metronómicas dos argumentos inventados para desencadear as guerras imperiais do Iraque, do Afeganistão, as chacinas na Líbia, na Síria, no Iémen, as intermináveis mentiras a propósito das questões palestiniana e do Sahara Ocidental; em suma, mais do mesmo no seguimento da falsidade das promessas sobre a imobilização territorial da NATO feitas a Gorbatchev em troca, entre outras coisas, do desmantelamento da União Soviética. Sempre o mesmo registo mafioso, só os nomes dos dirigentes se alteram e se sucedem neste processo explorador e mistificador de governo através da burla institucionalizada do qual são vítimas dezenas de milhões de cidadãos ainda convictos de que os seus votos contam para alguma coisa.
São muitas as provas, ao alcance da vista de quem as queira ou saiba avaliar, demonstrando que somos governados por gente desprezível que transformou a política numa teia de mentiras, viciou a democracia, joga com as vidas das pessoas como se nada valessem e, quando os “interesses” exigem, não hesita em cultivar guerras criminosas; portanto, gente que exala polimento mas desumana, sem limites, muito perigosa. Ou, como diria o transtornado “intelectual” Robert Kagan, padrinho ideológico desta seita, trata-se de prosseguir “a política reaganiana de poderio militar e de transparência moral”.
Não se trata de uma avaliação comparativa com outros dirigentes ou situações em outras partes do mundo. Não é isso que está em causa. Ela é o resultado da observação e da leitura de provas proporcionadas, ao longo de décadas, pelos dirigentes do chamado “mundo ocidental”, aqueles que nos governam, que se consideram exemplares, impolutos, civilizados, sempre do lado certo da história. Uma história que, pelos exemplos arrolados, pode chegar a ser escabrosa.
Cabe-nos por termo a esta deriva cada vez mais penalizadora das pessoas, dos seres humanos, recusar submeter-nos aos desvarios sociopáticos dos governantes, deveras assustadores. Ou aceitamos ou rejeitamos, neste caso através da expressão legítima de um inconformismo imparável e mobilizador, ser transformados em idiotas, continuar a ser burlados, zombificados, anulados, tratados como lixo. Esse é o combate pela liberdade e a democracia que ainda temos de travar.
José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.
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