Sobre iPhone11, tecnologia e “fim do trabalho”
Relatório da OIT joga novas luzes sobre a automação. Não é o trabalho que declina, mas extração de mais valia e desigualdade que disparam. Subcontratados da Apple são 25 vezes mais explorados que tecelões ingleses do século XIX
por Vijay Prashad | The Tricontinental
Outras Palavras - 26 de setembro, 2019
https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/sobre-o-iphone11-a-automacao-e-o-fim-do-trabalho/
Um relatório recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra: há agora 3,5 bilhões de trabalhadores no mundo. Nunca o número foi tão vasto. A conversa sobre “o fim dos trabalhadores” é prematura, quando confrontada com o peso desses dados.
A OIT reporta que a maior parte desses 3,5 bilhões de trabalhadores “enfrentam ausência de bem-estar material, segurança econômica, igualdade de oportunidades ou possibilidade de desenvolvimento humano. Estar empregado nem sempre garante uma vida decente. Muitos trabalhadores precisam aceitar trabalhos pouco atraentes, normalmente informais (é o chamado trabalho flexível) e caracterizados por baixa remuneração, além da acesso escasso ou inexistente a proteção social e direitos trabalhistas”. Embora metade da força de trabalho mundial seja composta por empregados assalariados, dois milhões de trabalhadores (61% do total) estão no setor informal.
O relatório da OIT mostra que o número de trabalhadores pobres diminuiu, em grande parte graças ao abrangente impacto da China. Há controvérsias nos dados relacionados à pobreza, já que se desconfia da honestidade das estatísticas apresentadas por muitos governos. Ainda assim, os dados comprovam que mesmo com os rendimentos dos pobres aumentando, estes ainda não cresceram o suficiente para tirá-los de fato da pobreza. Jason Hickel e Huzaifa Zoomkawala expõem como houve poucos ganhos para a parte mais pobre da humanidade nas últimas décadas. “No interior do 60% mais pobre da humanidade, o cidadão comum viu sua renda anual crescer somente 1.200 dólares… ao longo de 36 anos”, escreve Hickel. Está longe de ser digno de celebração.
Mesmo com os dados evidenciando que os trabalhadores dentro da força de trabalho global não conseguem encontrar “trabalho decente”, as taxas de produtividade estão muito mais altas do que antes. Como o relatório da OIT indica, “espera-se que o crescimento da produtividade entre 2019 e 2021 alcance o seu pico mais elevado desde 2010, superando a média histórica de 2,1% para o período de 1992-2018”. A OIT refere-se à média mundial, visto que em muitos países — incluindo os EUA — o aumento da produtividade tem se mantido estagnado: ou seja, é o crescimento da produtividade em países como a China que puxa para cima a média global. Porém, os benefícios do aumento da produtividade não são satisfatoriamente distribuídos entre os trabalhadores, em termos de aumento salarial proporcional às suas contribuições. Os benefícios sobem diretamente para os donos do capital, o que aumenta a concentração de riqueza. O trabalho está produzindo um excedente maciço, que poderia muito bem ser usado para melhorar o bem-estar geral da humanidade. Em vez disso, vai parar nos bolsos dos capitalistas.
* * *
No último ano, o
Instituto de Pesquisa Social Tricontinental tentou encontrar formas de explicar alguns conceitos-chave equivocados.
1. O de que a força de trabalho mundial diminuiu. As falas sobre automação e precariedade levaram à suposição de que haveria um declínio do trabalho, em plano mundial. Não é o caso. Hoje há mais pessoas trabalhando do que nunca, muitas delas em fábricas — apesar dos “desertos fabris” e do processo de desindustrialização no Ocidente
2.
O de que a pobreza diminuiu. Se houvesse menos gente
trabalhando, haveria menos gente ganhando dinheiro — logo, haveria
maiores taxas de pobreza. O fato é: há mais pessoas trabalhando,
porém, a pobreza continua sendo um problema sério. As pessoas
empregadas aumentaram sua produtividade média e produzem muito mais
hoje do que antigamente. O que as mantém na pobreza, apesar de sua
produtividade aumentada — que vem, em parte, das melhorias
tecnológicas — é que não conseguem usufruir uma parcela maior dos
ganhos de produtividade e da mais-valia total produzida. Mas o que
também mantém a taxa de pobreza constante é a destruição do
estado de bem-estar e de uma série de provisões, desde subsídios
para habitação até cestas de alimentos, que tem sido tirados de
bilhões de pessoas.
Há,
de fato, mais pessoas empregadas, mas elas não são capazes de
ganhar a quantia suficiente, do total da mais-valia que produzem,
para superar a linha da pobreza.
O
legado da análise marxista nos fornece um conceito simples: taxa de
exploração. Marx, em O Capital (1867), trata da exploração
em duas formas. No plano moral, ele brada contra a exploração dos
trabalhadores, particularmente das crianças. As terríveis condições
de vida e de trabalho desses trabalhadores, enfureceram Marx, assim
como qualquer pessoa sensível. Além disso, no marco de sua ciência,
Marx estudou a forma como os donos do capital contratam trabalhadores
comprando sua força de trabalho. São estes trabalhadores que
produzem a mais-valia, cujos ganhos são expropriados pelos donos do
capital graças a seus direitos de propriedade. Exploração,
portanto, é a extração dessa mais-valia pelos donos do capital aos
trabalhadores que a produzem. Marx escreveu que a taxa de exploração
pode ser calculada de forma clara, se usarmos seu aparato conceitual.
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A
Apple acabou de lançar o iPhone 11. Poucas características o
diferenciam do iPhone X, embora a versão mais cara do novo telefone
celular tenha três câmeras. É importante destacar que a Apple não
fabrica esses aparelhos. Eles são manufaturados em larga escala pela
companhia taiwanesa Foxconn, que emprega mais de 1,3 milhão de
trabalhadores apenas na China. O iPhone é obscenamente caro [R$
8.999 no Brasil], e a maior parte dos recursos de sua venda vão
parar na Apple, não vai para os trabalhadores nem para a Foxconn.
Como a Apple possui a propriedade intelectual sobre o telefone, ela
delega a produção a companhias como a Foxconn, que fabrica os
telefones para o mercado. A Apple devora o grosso dos lucros graças
a este processo.
Cinco
anos atrás, E. Ahmet Tonak realizou um estudo
do iPhone 6, analisando-o desde o ponto de vista da análise marxista
da taxa de exploração. Como integrante do Instituto
de Pesquisa Social Tricontinental,
Ahmet atualizou suas análises para acompanhar o iPhone X.
Aproveitamos a ocasião para produzir o Caderno
nº 2,
que explica alguns dos conceitos centrais da teoria marxista e em
seguida utiliza a análise da taxa de exploração para olhar mais de
perto para o iPhone. A taxa de exploração nos permite demonstrar o
quanto o trabalhador agrega valor no processo de produção. Ela
demonstra que, mesmo se o trabalhador recebesse mais, só pela mágica
da mecanização e da administração eficiente do processo de
produção a taxa de exploração aumentaria. Sob o sistema
capitalista, é impossível haver liberdade para o trabalhador.
A
descoberta mais assombrosa da análise é que os trabalhadores de
nosso tempo, que fabricam iPhones, são 25 vezes mais explorados do
que os trabalhadores de fábricas têxteis dos século 19, na
Inglaterra. A taxa de exploração dos trabalhadores do iPhone é de
2.458%. Esse número nos faz lembrar de que apenas uma parte
infinitesimal da jornada de trabalho vai compor o valor do salário
que o trabalhador recebe; na quase totalidade desta jornada, os
operários produzindo para ampliar a riqueza do capitalista. Quanto
maior a taxa de exploração, mais cresce a riqueza do dono do
capital, graças ao trabalho assalariado.
O
caderno nº 2 foi criado com enorme cuidado por nossa Tings Chak e
Ingrid Neves. Nós o produzimos com a esperança de que seja
amplamente utilizado em diferentes formas de educação — seja em
escolas de política, com fins acadêmicos ou para o estudo
independente. O texto foi escrito numa linguagem clara e precisa, o
seu desenho foi formulado para melhorar o aprendizado.
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Esta
semana, a ONU organizou cinco reuniões de cúpula sobre a catástrofe
climática. Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas,
diz
que duas palavras resumem estes cinco encontros: ambição e ação.
Os protestos mundiais para defender o planeta ocorreram na última
sexta-feira (20), e há ainda mais atos marcados na sequência.
Entretanto, as conversas nos encontros da ONU permanecem estagnadas
pela recusa dos EUA e de outros países ocidentais em reconhecer sua
grande responsabilidade na catástrofe, ao terem ultrapassado os
limites de suas cotas de emissão de carbono. A esperança de que
esses países contribuíssem para o Fundo Global para o Clima
desmoronou. A quantia mínima necessária é da ordem de trilhões de
dólares, e não os poucos bilhões que foram prometidos. Pouco se
fala em mitigar, em transferir tecnologia, em desigualdade de
emissões ou tantas outras soluções substanciais que atacariam a
raiz da crise atual.
Há
alguns anos, a Oxfam lançou um importante estudo
que mostrava como a metade mais pobre do planeta era responsável por
apenas 10% das emissões globais, enquanto os 10% mais rico
respondiam por 50% das emissões de carbono. No entanto, como observa
a Oxfam, são as pessoas dos países mais pobres as mais vulneráveis
às mudanças climáticas, muitas vezes erroneamente culpadas por
causá-las. A discussão sobre desenvolvimento não tem ocorrido em
paralelo à discussão sobre mudanças climáticas. Qual o sentido de
dizer, para as bilhões de pessoas que produzem mais-valia, mas vivem
em pobreza, que devem reduzir seu consumo? Um estudo
recente da ONU diz que pelo menos 820 milhões de pessoas vivem com
fome, e pelo menos outras 2 bilhões de pessoas sofrem de insegurança
alimentar.
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Não
podemos abordar as mudanças climáticas sem falar em abolir o
sistema que vive da fome e da pobreza da maior parte das pessoas do
mundo, e sem reconhecer as sementes para um futuro melhor que estão
sendo plantadas hoje. A corrente de pensamento crítico
latino-americano nos lembra da importância disso. Num relatório
feito recentemente, pelos nossos escritórios em Buenos Aires e São
Paulo, José Seoane escreve: “não se trata apenas de imaginar
esses futuros de forma teórica, baseando-nos em nosso passado; a
questão é também refletir e difundir os projetos populares que
estão se desenvolvendo atualmente e antecipar o futuro que estamos
buscando”. Qual o ponto de salvar o planeta enquanto bilhões de
trabalhadores morrem de fome?
O
sofrimento não é uma mercadoria. Não existe mercado primário ou
secundário para ele. É terra e pedras no estômago de um ser humano
faminto. Um ser humano trabalhador da cadeia de produção de um
iPhone.
Tradução: Simone Paz
Vijay Prashad é o diretor do Tricontinental: Institute for Social Research e editor chefe da LeftWord Books. É chefe de redação do Globetrotter, um projeto do Independent Media Institute. Ele escreve regularmente para The Hindu, Frontline, Newsclick e BirGün.
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