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O império agonizante e os seus inimigos internos

por Chris Hedges | Truthdig

Resistir.info - 4 de novembro, 2019

https://www.resistir.info/eua/imperio_agonizante.html


Mr. Fish / Truthdig

A democracia nos EUA não está em perigo – nós não vivemos numa democracia. A imagem da nossa democracia é que está em perigo. O Estado profundo – os generais, banqueiros, líderes de grandes corporações, lobistas, chefes de serviços secretos, burocratas do governo e tecnocratas – tem a intenção de salvar o que representam. É difícil trombetear-se como o guardião e da liberdade e democracia tendo Donald Trump a dizer incoerentemente idiotices acerca de si próprio, a incitar à violência racista, a insultar os nossos aliados tradicionais, assim como os tribunais, a imprensa e o Congresso, a escrever inanidades no tweeter com erros ortográficos e a denunciar ou sabotar impulsivamente a política interna e externa bipartidária. Mas o pecado mais imperdoável de Trump aos olhos do Estado profundo é sua crítica às guerras infindáveis do império, embora lhe falte a habilidade intelectual e organizacional para supervisionar um descomprometimento dessas acções.

O Estado profundo cometeu o maior erro estratégico da história americana quando invadiu e ocupou o Afeganistão e o Iraque. Tais fiascos militares fatais, uma característica de todos os impérios na sua fase de declínio, são os chamados actos de "micro-militarismo". Impérios moribundos historicamente desperdiçam o último capital que têm, económico, político e militar, em conflitos fúteis, intratáveis e invencíveis, até que desabam. Nesses actos de micro-militarismo eles procuram recuperar uma dominância anterior e da sua perda de estatura. Desastres acumulam-se atrás de desastres Os arquitectos da espiral da morte do império, no entanto, são intocáveis. Os generais e políticos despistados que impelem o império a expandir o caos e o seu colapso orçamental têm êxito numa coisa: perpetuarem-se a si próprios. Ninguém é responsabilizado. Uma imprensa servil trata estes mandarins com uma veneração quase religiosa. Generais e políticos, muitos dos quais deveriam ter sido afastados ou julgados, estão aposentados com lugares lucrativos nas administrações dos fabricantes de armas, para os quais estas guerras são imensamente lucrativas. São chamados por uma imprensa servil a fornecerem ao público análises do caos que criaram. São apresentados como exemplos de integridade, serviço altruísta e patriotismo.

Depois de quase duas décadas, todos os objectivos apregoados para justificar nossas guerras no Médio Oriente foram postos de cabeça para baixo. A invasão do Afeganistão deveria liquidar a Al Qaeda. Em vez disso a Al Qaeda migrou para preencher os vazios de poder que o Estado profundo criou nas guerras no Iraque, Síria, Líbia e Iémen. A guerra no Afeganistão transformou-se numa guerra com os Talibãs, que agora controlam a maior parte do país e ameaçam o regime corrupto que escoramos em Cabul.

O Estado profundo orquestrou a invasão do Iraque, o qual nada teve a ver com os ataques do 11 de Setembro. Previam confiantemente que poderiam construir uma democracia ao estilo ocidental e enfraquecer o poder do Irão na região. Ao invés disso, destruíram o Iraque como país unificado, colocando facções étnicas e religiosas em guerra umas contra as outras. O Irão, estreitamente ligado ao governo xiíta dominante em Bagdade, emergiu ainda mais forte. O Estado profundo armou rebeldes "moderados" na Síria, num esforço para derrubar o presidente Bashar Assad, mas quando percebeu que não podia controlar os jihadistas – aos quais havia fornecido cerca de 500 milhões de dólares em armas e assistência – o Estado profundo começou a bombardeá-los e a armar rebeldes curdos para combatê-los. Estes curdos foram posteriormento traídos por Trump.

A "guerra ao terror" espalhou-se como uma praga desde o Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia até o Iémen, o qual após cinco anos de guerra está a sofrer um dos piores desastres humanitários do mundo. O custo financeiro de toda esta miséria e morte está entre US$5 e 8 milhões de milhões (trillions). O custo humano ascende a centenas de milhares de mortos e feridos, cidades e infraestruturas destruídas e milhões de refugiados.

Trump cometeu uma heresia política quando ousou apontar a loucura do militarismo desenfreado. Ele pagará por isso. O Estado profundo pretende substituí-lo por alguém – talvez Mike Pence, moral e intelectualmente tão vazio quanto Trump – que fará o que lhe disserem. É este o papel do executivo dos EUA: personificar e humanizar o império, fazê-lo com pompa e dignidade. Barack Obama – que especiosamente reinterpretou a Autorização de Uso da Força Militar de 2001 para dar ao executivo o direito de assassinar qualquer um no exterior, até mesmo um cidadão dos EUA, considerado terrorista – destacou-se neste jogo.

Remover Trump do cargo não ameaçaria o poder corporativo. Não restauraria as liberdades civis, incluindo o nosso direito à privacidade e a um devido processo legal. Não desmilitarizaria a polícia nem defenderia os direitos da classe trabalhadora. Não impediria os lucros das empresas petrolíferas e bancárias. Não trataria da emergência climática. Não acabaria com a falta de garantias públicas de vigilância sobre as pessoas. Não terminaria com prisões especiais, nem com o sequestro de pessoas por todo o mundo consideradas inimigas do Estado. Não impediria os assassinatos por drones militarizados. Não impediria a separação das crianças dos seus pais e o armazenamento destas crianças em instalações imundas e superlotadas. Não remediaria a consolidação da riqueza e do poder pela oligarquia e o empobrecimento dos cidadãos. Continuaria a expansão do nosso sistema prisional e de locais sinistros em todo o mundo, locais onde se pratica a tortura, assim como o abate de cidadãos pobres e desarmados em terrenos suburbanos devastados. Mais importante, as catastróficas guerras estrangeiras que resultaram numa série de Estados fracassados e desperdiçaram milhões de milhões de dólares dos contribuintes permaneceriam sacrossantas, apoiadas com entusiasmo pelos líderes dos dois partidos dominantes, fantoches do Estado profundo.

A destituição de Trump, apesar do entusiasmo da elite liberal, é sobretudo cosmética. Todo o sistema político e governamental está corrompido. Hunter Biden, como confirmado, recebia 50 mil dólares por mês para fazer parte do conselho de administração da empresa de gás ucraniana Burisma Holdings, embora não tenha qualquer experiência na indústria do gás. Ele havia trabalhado anteriormente para a corporação de cartões de crédito MBNA, a qual foi um dos maiores contribuidores da campanha de Joe Biden quando ele era senador do Delaware. Hunter Biden foi contratado pela Burisma Holdings pela mesma razão pela qual foi contratado pela MBNA. Seu pai era desde há muito tempo uma ferramenta do poder corporativo e do complexo industrial militar, em suma do Estado profundo, era senador e depois vice-presidente. Joe Biden, os Clintons e os líderes do Partido Democrata personificam o mesmo suborno legalizado que define os seus rivais no Partido Republicano.

Os candidatos corporativos nos dois partidos dominantes são pré-seleccionados, financiados e ungidos pelas grandes empresas. Se não cumprirem as exigências do Estado profundo, que protege os interesses corporativos e a administração do império, são removidos. Existe até uma palavra para isso: primarying. Os lobistas corporativos escrevem as leis. Os tribunais as aplicam. Não há forma de o sistema político americano votar contra os interesses da Goldman Sachs, Citigroup, AT&T, Amazon, Microsoft, Walmart, Alphabet, Facebook, Apple, Exxon Mobil, Lockheed Martin, United Health Group ou Northrop Grumman.

Nós, o público dos EUA, somos espectadores. Uma audiência. Quem estará sentado quando o jogo das cadeiras musicais parar? Trump será capaz de manter o poder? Pence será o novo presidente? Ou o Estado profundo elevará um mercenário político como Biden ou um apologista neoliberal como Pete Butiggieg, Amy Klobuchar ou Kamala Harris à Casa Branca? Será que vai tentar Michael Bloomberg, John Kerry, Sherrod Brown ou, Deus nos livre, Hillary Clinton? E se o Estado profundo falhar? E se a podridão no Partido Republicano, ou o que Glen Ford chama de "partido do homem branco" de Trump, for tão profunda que não signifique o fim político do presidente mais incompetente da história americana? A luta pelo poder, que inclui o bloqueio a Bernie Sanders e Elizabeth Warren de obter a indicação ao Partido Democrata, fará durante meses uma televisão notável e gerará milhares de milhões em receitas publicitárias.

A guerra entre o Estado profundo e Trump começou no momento em que ele foi eleito. O ex-director da CIA John Brennan e o ex-director da National Intelligence James Clapper – ambos são agora comentadores pagos da televisão, juntamente com o ex-chefe do FBI James Comey – logo acusaram Trump de ser uma ferramenta de Moscovo. As agências de serviços secretos divulgaram histórias obscenas sobre " pee tapes " e chantagem, além de relatos de "repetidos contactos" com serviços secretos russos. Brennan, Clapper e Comey juntaram-se rapidamente a outros ex-agentes dos serviços secretos, incluindo Michael Hayden, Michael Morell e Andrew McCabe. Os seus ataques foram ampliados por antigos líderes militares, incluindo William McRaven , James Mattis, H.R. McMaster, John Kelly, James Stavridis e Barry McCaffrey.

A conspiração russa, após a divulgação do relatório Mueller, provou ser um fracasso. Os actores do Estado profundo, no entanto, foram revigorados pela decisão de Trump de pressionar o governo da Ucrânia para investigar Biden. Trump, desta vez, parece ter dado aos seus inimigos do Estado profundo corda suficiente para enforcá-lo.

A destituição de Trump marca um capítulo novo e assustador na política americana. O Estado profundo mostrou a sua cara. Fez uma declaração pública de que não tolerará discordâncias, embora as discordâncias de Trump sejam retóricas, caprichosas e ineficazes. Porém, o esforço de destituição de Trump envia uma mensagem ameaçadora à esquerda americana. O Estado profundo não só pretende impedir, como fez em 2016, Bernie Sanders ou qualquer outro democrata progressista de alcançar o poder, mas sinalizou que destruirá qualquer político que tente questionar a manutenção e expansão do império. A sua animosidade em direcção à esquerda é muito mais pronunciada do que a animosidade em relação a Trump. E os seus recursos para destruir a esquerda são quase inesgotáveis.

O filósofo político Sheldon Wolin viu tudo isso no seu livro de 2008:   Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism . Escreveu ele:

"O papel político do poder corporativo; a corrupção dos processos políticos e representativos pelos lóbis, a ampliação do poder executivo à custa de limitações constitucionais e a degradação do diálogo político promovido pelos media são a base do sistema, não excrecências sobre ele. O sistema permaneceria em vigor mesmo que o Partido Democrata alcançasse a maioria; e se essa circunstância surgir, o sistema estabelecerá limites rígidos para mudanças indesejadas, como é evidente na timidez das actuais propostas democráticas de reforma. Em última análise, a tão louvada estabilidade e conservadorismo do sistema americano não deve nada a ideais sublimes e tudo ao facto irrefutável de que está minado de corrupção e inundado de contribuições principalmente de doadores ricos e de corporações. Quando um mínimo de um milhão de dólares é exigido aos candidatos à Câmara de Representantes ou a juízes eleitos, e quando patriotismo é para os que estão livres da conscrição na tropa enaltecerem para os cidadãos comuns servirem a tropa, em tais ocasiões é um simples acto de má fé afirmar que a política tal como é praticada agora, pode milagrosamente curar os males que são essenciais à sua existência.

Não há restrições internas ou externas ao Estado profundo. As instituições democráticas, incluindo a imprensa, que outrora davam uma voz aos cidadãos e tinham uma palavra a dizer quanto ao exercício do poder, foram neutralizadas. O Estado profundo promoverá a consolidação da riqueza e do poder corporativo, expandirá a desigualdade social que atirou metade dos americanos à pobreza ou à quase pobreza, tirará as liberdades civis que restam e alimentará os apetites vorazes das forças armadas e da indústria de guerra. Os recursos do Estado serão desbaratados enquanto o défice federal incha. A frustração e os sentimentos de estagnação entre os cidadãos privados de poder e desprezados, que contribuíram para a eleição de Trump, aumentarão.

Chegará o momento do acerto de contas, como ocorreu nos últimos dias no Libano e no Chile . A agitação social é inevitável. Qualquer população pode ser empurrada apenas até um certo ponto. O Estado profundo, incapaz de se reformar e determinado a manter o controlo do poder, transformar-se-á sob a ameaça do descontentamento popular num fascismo corporatista. Dispõe de ferramentas legais e físicas para transformar instantaneamente os Estados Unidos num estado policial. Este é o verdadeiro perigo por trás do esforço do Estado profundo para destituir Trump. É uma mensagem gritante para obedecer ou ser silenciado. Em resumo, Trump não é o problema. Nós somos. E se o Estado profundo não conseguir livrar-se de Trump, ele será usado, ainda que com relutância, para realizar o trabalho sujo. Trump, se conseguir sobreviver no poder, terá os seus desfiles militares. Nós, com ou sem Trump teremos tirania.

Chris Hedges, repórter laureado com Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

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