O império contra-ataca
Por Chris Hedges | TruthDig
Blog do Alok - 2 de Outubro, 2016 | Tradução pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu
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Há uma década os governos de esquerda, desafiando Washington e as corporações globais, tomaram o poder no Brasil, Argentina, Paraguai, Venezuela, Uruguai, Bolívia e Equador. Parecia que a maré na América Latina estava se transformando. A interferência de Washington e a exploração pelas corporações internacionais poderia finalmente ser derrotada. Governos latino-americanos, encabeçados por líderes carismáticos, como Hugo Chávez na Venezuela, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, tiveram grandes vitórias eleitorais. Eles instituíram reformas socialistas que beneficiaram os pobres e a classe trabalhadora. Eles se recusaram a ser fantoches dos Estados Unidos. Eles tomaram o controle dos recursos e do destino de suas próprias nações. Montaram a primeira revolta bem sucedida contra o neoliberalismo e a dominação corporativa. Foi uma revolta que muitos nos Estados Unidos esperam emular aqui.
Mas os movimentos e governos na América Latina tornaram-se presas das obscuras forças do imperialismo norte-americano e da ira e do poder dos empresários. Os truques que tantas vezes Washington e seus aliados empresários e banqueiros usaram estavam de volta – propaganda negra, manipulação dos veículos de comunicação, na chamada "mídia"; suborno e corrupção de agentes do estado e políticos, generais, polícia, líderes sindicais e jornalistas; os golpes de Estado dentro dos Parlamentos nacionais; o estrangulamento econômico; o enxovalhamento de reputações de líderes democraticamente eleitos; a criminalização da esquerda; e o uso de esquadrões da morte para silenciar e fazer sumir os que lutassem em defesa dos mais fracos. É o mesmo velho jogo, o mesmo jogo sujo.
O presidente Correa, que ganhou o ódio eterno de Washington por ter garantido asilo político a Julian Assange já há quatro anos, e por ter fechado a base aérea-militar de Manta em 2009, alertou recentemente que está em marcha uma nova versão da Operação Condor, na América Latina. Operação Condor, que existiu nos anos 1970 e 80, é causa de torturas, assassinatos e do sumiço de milhares de organizadores sociais, líderes comunitários, estudantes, ativistas, políticos, diplomatas, líderes religiosos, jornalistas e artistas. Os chefes de inteligência de regimes da direita na Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai e, depois, no Brasil, supervisionavam campanhas de terror. Recebiam fundos dos EUA e apoio logístico e treinamento da CIA. Liberdade de imprensa, de organização, todas as formas do protesto pela via artística e de oposição política foram proibidas. Num esforço coordenado, esses regimes destroçaram, com brutalidade, todos os movimentos de esquerda em toda a América Latina. Só na Argentina, houve 30 mil desaparecidos.
A América Latina parece a caminho de ser novamente lançada num período de controle ditatorial e de exploração nua e crua pelas empresas em geral e pelos bancos em especial. Os governos de Equador, Bolívia e Venezuela, que está à beira do colapso, têm tido de enfrentar sucessivas tentativas de golpes de direita e enfrentam sabotagem econômica. No Brasil, o Senado depôs por impeachment a presidente democraticamente eleita Dilma Rousseff. Na Argentina, o novo presidente, Mauricio Macri, de direita, posto no poder pelos grandes hedge funds norte-americanos, imediatamente pagou seus benfeitores sob a forma de $4,65 bilhões entregues a quatro hedge funds, inclusive o Elliott Management, presidido pelo bilionário Paul Singer. O pagamento aos hedge funds que haviam comprado a dívida argentina por centavos de dólar, significou ganho, para a empresa de Singer, de 2,4 bilhões, quantia 10-15 vezes maior que o investimento original. Antes disso, o governo de Cristina Fernández de Kirchner havia resistido, inclusive em tribunais internacionais, contra pagar o que os hedge funds, que ela chamava de "fundos abutres", reclamavam.
Eu entrevistei Guillaume Longo, Ministro das Relações Exteriores e Mobilidade Humana do Equador, para o meu programa "On Contact" na semana passada. Long, que é doutor pelo Institute for the Study of the Americas da Universidade de Londres, sugeriu à ONU que criasse uma agência reguladora global de impostos. Disse que uma agência desse tipo poderia forçar corporações sonegadoras de impostos – que o FMI estima que custem aos países desenvolvidos mais de $200 bilhões ao ano, de impostos não pagos –, a pagarem aos países pelos recursos naturais que extraem e pelas perdas nacionais resultantes de negócios, quase sempre secretos, entre as grandes empresas e bancos. Ele também exigiu a abolição dos paraísos fiscais no exterior.
Long disse que as políticas econômicas neoliberais da década de 1980 e 90 foram profundamente destrutiva na América Latina. Até controles econômicos muito débeis foram abandonados em nome do "livre comércio" e da desregulação. Corporações internacionais e bancos receberam licença para operar livremente. "Essa desregulação, em ambiente já desregulado" resultou em anarquia, disse o ministro Long. "Os poderosos praticamente já não tinham qualquer controle ou quaisquer contrapesos que moderassem os seus poderes", disse ele.
"O neoliberalismo é ruim na maioria dos contextos", Long disse quando conversamos em Nova York. "Tem sido ruim na Europa. Tem sido ruim em outras partes do mundo. Ele desmantelou o estado de bem-estar. No contexto onde já temos um Estado fraco, onde as instituições não são consolidadas, onde existem fortes resquícios feudais, como na América Latina, onde você realmente não têm um forte contrato social com as instituições, com a modernidade, o neoliberalismo apenas estilhaça qualquer tipo de pacto social. Isso significava mais pobreza, mais desigualdade, enormes ondas de instabilidade."
Países viram serviços básicos, já muitos inadequadas, reduzidas ou eliminadas em nome da austeridade. As elites acumularam fortunas, ao tempo em que praticamente todos em volta mergulharam na miséria econômica. A paisagem política e econômica tornou-se instável. O Equador teve sete presidentes entre 1996 e 2006, ano em que Correa foi eleito. Em 1999, sofreu massiva crise bancária. Em desespero, Correa trocou a moeda nacional, que passou a ser o dólar norte-americano. O caos no Equador repetia-se na Bolívia e na Argentina. Em 1998, a Argentina entrou em depressão, que fez a economia encolher 28%. Mais de 50 por cento dos argentinos foram empurrados para a pobreza.
"A América Latina", disse Long, "chegou ao fundo do poço".
Foi a partir deste pântano neoliberal que a esquerda se reagrupou e tomou o poder.
"Os povos se relocalizaram, retomaram o pé da própria história, depois daquela crise avassaladora", Long analisa. "E decidiram reconstruir as próprias sociedades e combater contra o intervencionismo estrangeiro. Digo, mesmo, lutar contra o imperialismo. Ainda hoje, a principal questão é a desigualdade. A América Latina não é necessariamente o continente mais pobre do mundo. Mas é certamente o continente mais desigual do mundo."
"O Equador é um produtor de petróleo", disse Long. "Nós produzimos cerca de 530.000 barris de petróleo por dia. Recebíamos 20% a título de royalties, das multinacionais que extraem o petróleo. Hoje é o contrário. Pagamos uma taxa às multinacionais, pela extração, mas o petróleo é nosso. Tivemos de renegociar todos os nossos contratos de petróleo em 2008 e 2009. Algumas multinacionais recusaram-se a aceitar as novas regras, e deixaram o país. Nesses casos, nossa empresa estatal de petróleo entrou e ocupou os poços. Mas a maioria das multinacionais aceitaram. Pensaram "OK, podemos aceitar. Ainda assim é negócio lucrativo". Quero dizer, hoje as coisas são muito diferentes. Nós pagamos a empresas privadas para extrair o petróleo, mas o petróleo é nosso."
Long admitiu que houve graves revezes, mas insistiu que a esquerda não está acabada.
"Depende de como você mede o sucesso", disse ele. "Se você o mede em termos de longevidade, e do tempo ao longo do qual esses governos permaneceram no poder – no caso do Equador, ainda estamos no poder e, claro, vamos vencer as eleições de fevereiro de 2017 –, nesse caso é coisa de, na Venezuela, mais ou menos 17 anos; no Equador, agora, dez anos; na Argentina e no Brasil, são 13 anos."
"Uma das críticas que se fazem à esquerda é que são bem-intencionados, gente boa, com boas ideias, mas não os ponham no governo, porque o país explode," disse Long. "Mas no Equador tivemos crescimento realmente pujante, de 5 a 10% ao ano. Tivemos muitos excelentes indicadores econômicos. Diversificamos nossa economia. Mudamos, de importar, como antes, 80% de energia, para sermos hoje exportadores líquidos de eletricidade. Fizemos uma grande reforma na educação, na educação superior. Muitas coisas que são economicamente bem-sucedidas. A ortodoxia econômica neoliberal não colheu sucesso algum na década passada."
Long concedeu que seu governo fez inimigos poderosos, não só por ter garantido asilo político a Assange em sua embaixada em Londres, mas também porque processou a Chevron Texaco, tentando que pagassem pelo dano massivo que a empresa provocou na Amazônia equatorial, quando a empresa perfurava ali, do início anos 1960 até que se retirou, em 1992. Deixou para trás cerca de 1.000 poços de dejetos tóxicos. Os vazamentos, no total, equivaliam a 85 vezes o vazamento provocado pela British Petroleum no Golfo do México, e a 18 vezes o vazamento do Exxon Valdez. Um tribunal equatoriano ordenou que a Chevron Texaco pagasse $18,2 bilhões pelos danos, quantia posteriormente reduzida a $9,5 bilhões. A gigante do petróleo, no entanto, se recusou a pagar. O Equador recorreu a tribunais internacionais, para tentar arrancar deles o dinheiro.
Long disse que a diferença entre os vazamentos massivos em outras partes do mundo e o que houve no Equador é que, no Equador, não houve acidente. "[Eles] foram deliberados, um meio para tentarem cortar custos. Estavam lá no meio da Amazônia. Normalmente, o que se faz é extrair o petróleo e usam-se aquelas membranas de proteção, para impedir que o óleo se infiltre no solo. Não usaram as tais membranas. O petróleo chegou aos sistemas de água. E poluiu todo o sistema do rio Amazonas. Criaram um gigantesco problema sanitário e de saúde pública. Detectou-se aumento no número de casos de câncer."
Long diz que evidentemente o seu governo sabia que a empresa Chevron Texaco tinha [e tem] "muito poder de lobbying nos EUA, em Wall Street, em Washington."
"Há um monte de coisas que não vemos", disse ele sobre a campanha para desestabilizar seu governo e outros governos de esquerda. "Benefícios que poderíamos colher, investimentos que não vêm, porque tivemos ação soberana, de preservar nossa soberania. No caso de [o Equador fechar a base aérea militar dos EUA em] Manta, gostamos de pensar que o governo dos EUA compreendeu, e tudo bem. Mas foi movimento pensado e definitivo. Dissemos "acabou". Inscrevemos em nossa Constituição, na nova Constituição, de 2008. Foi um momento muito vibrante da nossa história. Criamos novas regras do jogo. É uma das constituições mais progressistas do mundo. Declaramos os direitos da natureza. A nossa é a única constituição que declara os direitos da natureza, não apenas os direitos do homem. O território do Equador foi declarado livre de bases militares estrangeiras. Não havia outro modo: era isso ou isso. Mas há consequências para todas e quaisquer ações."
Uma dessas consequências foi um golpe abortado em setembro de 2010 por membros da Polícia Nacional do Equador. Foi contida por força militar. Long acusou muitas das ONGs ocidentais que operam no Equador e em toda a região, de serem conduítes de dinheiro para os partidos de direita. Oficiais militares e da Polícia há muito tempo estão na folha de pagamento da CIA em toda a América Latina. Em 2008, o presidente Correa demitiu seu ministro da Defesa, o chefe da inteligência do Exército, vários comandantes do Exército e da Força Aérea e chefes do Estado-maior, sob a acusação de que os sistemas de inteligência do Equador estavam "completamente infiltrados e subjugados pela CIA."
"Há uma conspiração internacional em andamento agora, nesse momento, contra alguns governos progressistas", disse o ministro Long. "Houve uns poucos revezes eleitorais na Argentina, e a Venezuela está em situação difícil. A mídia dá a tudo um tom especial, mas, não há dúvidas de que a Venezuela enfrenta problemas graves. Há uma tentativa em curso para tirar o máximo possível da queda dos preços de algumas commodities, para criar caos social e derrubar governos. Já vimos um golpe parlamentar no Brasil. [A presidenta Rousseff] foi eleita com 54 milhões de votos. O Partido dos Trabalhadores, no Brasil [esteve] no poder durante 13 anos. O único modo que [a direita brasileira] tinha para tirar do governo os eleitos, era o golpe. les não podiam fazê-lo através do sufrágio universal."
Long disse que, mesmo com os reveses políticos sofridos pela esquerda, será difícil para os direitistas restabelecerem políticas neoliberais estritas.
"Há um campo político forte, disputado ainda pela direita tradicional e uma esquerda radical", disse ele. "Há uma esquerda radical que já provou que sabe reduzir a pobreza e a reduz, que sabe fazer e pode reduzir a desigualdade, que pode comandar a economia. Já há novos quadros com experiência de governo, ministros e pessoas que realmente assumiram responsabilidades de governar com a esquerda. Eu acho que, mais cedo ou mais tarde, ela vai estar de volta ao poder."
Os leviatãs corporativos e as agências imperialistas que trabalham em seu nome estão mais uma vez remodelando a América Latina em paraísos para fins de exploração empresarial. É a história eterna da luta dos fracos contra os fortes, os pobres contra os ricos, os mais fracos contra os poderosos, e aqueles que estariam livres contra as forças do imperialismo.
"Não há fronteiras nesta luta até a morte", disse Ernesto "Che" Guevara. "Não podemos ser indiferentes ao que acontece em qualquer lugar do mundo, porque uma vitória de qualquer país sobre o imperialismo é a nossa vitória; assim como a derrota de qualquer país é uma derrota para todos nós".
Chris Hedges é jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, autor best selling do New York Times, professor do programa de nível universitário oferecido aos prisioneiros do estado de New Jersey pela Universidade Rutgers
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