O assassinato, pelos Estados Unidos, do general Qassem Soleimani,
chefe da força de elite Quds do Irã, deflagrará ataques
retaliatórios múltiplos contra alvos norte-americanos por parte dos
xiitas, que são a maioria no Iraque. Ativará insurgentes e grupos
paramilitares apoiados pelo Irã no Líbano, Síria e outras partes
do Oriente Médio. O caos de violência, Estados falidos e guerra,
resultados de duas décadas de insanidades e erros dos EUA na região,
vai converter-se numa conflagração ainda mais vasta e perigosa. As
consequências são dramáticas. Além de os norte-americanos se
verem sob cerco no Iraque, e talvez expulsos – resta apenas uma
força de 3,2 mil soldados no Iraque, todos os cidadãos foram
aconselhados a deixar o país “imediatamente” e os serviços
consulares, fechados – a situação pode descambar para uma guerra
direta contra o Irã. O Império Americano, parece, não morrerá com
um lamento, mas com uma explosão.
A execução de Soleimani, morto por mísseis de um drone Reaper
MQ-9, também tirou a vida de Abu Mahdi al-Muhandis, o
vice-comandante dos grupos apoiados pelo Irã no Iraque –
conhecidos como Forças de Mobilização Popular –, além de outros
líderes de milícias xiitas iraquianas. O ataque pode inflar
temporariamente a sorte dos dois arquitetos do assassinato, Donald
Trump e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Mas é um
ato de suicídio imperial pelos EUA. Não há chance de desfecho
positivo. Abre-se a possibilidade de um cenário de tipo Armageddon,
desejado pelos ramos lunáticos da direita cristã.
Atingido por guerra, o Irã usaria seus mísseis antinavio fornecidos pelos chineses, suas minas e sua artilharia costeira para fechar o Estreito de Ormuz, corredor de 20% do suprimento de petróleo do mundo. Os preços do combustível poderiam dobrar, talvez triplicar, devastando a economia global. Os ataques retaliatórios do Irã contra Israel e contra as instalações militares dos EUA no Iraque deixariam centenas, talvez milhares, de mortos. Os xiitas na região, da Arábia Saudita ao Paquistão, veriam um ataque ao Irã como uma guerra religiosa contra o xiismo. Os 2 milhões de xiitas na Arábia Saudita, concentrados na Província do Leste, rica em petróleo; a maioria xiita no Iraque e as comunidades xiitas no Bahrain, Paquistão e Turquia, iriam voltar-se em fúria contra os aliados vacilantes dos EUA. Haveria um aumento de ataques terroristas, inclusive em solo norte-americano, com vasta sabotagem da produção de petróleo no Golfo Pérsico. No sul do Líbano, o Hezbollah renovaria ataques contra o norte de Israel. A guerra deflagraria um longo e crescente conflito regional que, ao seu fim, liquidaria o Império Americano e deixaria montanhas de corpos e ruínas fumegantes. Só um milagre poderá retirar os EUA desta autoimolação ao estilo do Dr. Strangelove.
O Irã, que prometeu “áspera retaliação”, já patina sob as
sanções econômicas brutais impostas pelo governo Trump ao se
retirar unilateralmente, em 2018, do acordo sobre as armas nucleares
do Irã. Ampliam-se, ao mesmo tempo, as tensões no Iraque, entre os
EUA e a maioria xiita. Em 27 de dezembro, foguetes Katyusha foram
disparados contra uma base militar em Kirkuk, onde as forças dos EUA
estavam estacionadas. Um civil norte-americano que trabalhava para
empresas mercenárias foi morto; e diversos militares, feridos. Os
EUA responderam em 29/12, bombardeando bases do grupo Kataib
Hezbollah, apoiado pelo Irã. Dois dias mais tarde, milícias
apoiadas pelo Irã atacaram a embaixada norte-americana em Bagdá,
vandalizando e destruindo partes do edifício e provocando seu
fechamento. Mas este ataque logo parecerá brincadeira de crianças.
Após a invasão e ocupação norte-americana em 2003, o Iraque
foi destruído enquanto país unificado. Sua infraestrutura, antes
moderna, está em ruínas. O abastecimento de energia e água é,
quando muito, errático. Há alto desemprego e descontentamento com a
corrupção governamental generalizada, que levou a protestos
sangrentos. Milícias beligerantes e facções étnicas
entricheiraram-se em enclaves antagônicos e conflagrados.
Ao mesmo tempo, a guerra do Afeganistão está perdida para os EUA, como mostraram em detalhe os Afghanistan Papers, publicados pelo Washington Post. A Líbia é um Estado falido. O Iêmen, após cinco anos de bombardeios sauditas ininterruptos e de um bloqueio, padece um dos piores desastres humanitários do planeta. Os rebeldes “moderados” que os EUA financiaram e armaram na Síria, ao custo de 500 milhões de dólares, instigaram um cenário sem lei de terror, para serem batidos e expulsos do país. O custo monetário deste delírio, a estupidez maior na história norte-americana, é algo entre 5 e 7 trilhões de dólares.
Mas então, qual o porquê da guerra contra o Irã. Por que
abandonar um acordo nuclear que Teerã não violou? Por que demonizar
um governo que é o inimigo mortal do Talibã e de outros grupos
jihadistas, inclusive a Al-Qaeda e o Estado Islâmico? Por que
sabotar a aliança de facto com
o Irã, no Iraque e Afeganistão. Por que desestabilizar ainda mais
uma região já perigosamente volátil?
Os generais e políticos que lançaram e mantiveram estas guerras não estão dispostos a ser responsabilizados pelos pesadelos que criaram. Eles precisam de um bode expiatório. É o Irã. As centenas de milhares de mortos e aleijados, incluindo ao menos 200 mil civis, e os milhões expulsos de suas casas para campos de refugiados, não podem ser o resultado das políticas desorientadas e falidas dos EUA. A proliferação de grupos e milícias jihadistas radicais, muitos dos quais foram inicialmente treinados por Washington, assim como os incessantes ataques terroristas em todo o mundo, precisam ser culpa de outros. Os generais, a CIA, os mercenários e os fabricantes de armas que enriqueceram com estes conflitos; os políticos como George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump, além dos “especialistas” e intelectuais-celebridades que atuam como líderes de torcida em favor da guerra sem fim, convenceram a si mesmos e querem convencer o mundo de que o Irã é responsável pela catástrofe.
O caos e instabilidade que os EUA desencadearam no Oriente Médio,
especialmente no Iraque e Afeganistão, deixaram o Irã como país
dominante na região. Washington empoderou seu nêmesis. Não tem
outra ideia sobre como reverter seu erro exceto atacar o Irã.
Trump e Netanyahu, assim como o príncipe coroado saudita Mohammed bin Salman, estão envolvidos em escândalo. Acreditam que uma nova guerra irá desviar a atenção de suas crises externas e domésticas. Mas falta-lhes tanto uma estratégia racional para a guerra contra o Irã como faltou para as guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia, Yêmen e Síria. Os aliados europeus, alienados por Trump quando este abandonou o acordo nuclear com o Irã, não cooperarão, se Washington for à guerra contra Teerã. O Pentágono não possui as centenas de milhares de soldados que seriam necessários para atacar e ocupar o Irã. E é hilária a visão do governo Trump, segundo a qual o grupo de resistência iraniano Mujahedeen-e-Khalq (MEK) – marginal e desacreditado, que lutou com Saddam Hussein na guerra contra seu próprio país e é visto pela maioria dos iranianos como composto de traidores – é uma contra-força viável ao regime iraniano.
O Direito internacional, assim como os direitos de 80 milhões de seres humanos no Irã, é tão ignorado como os direitos dos povos do Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen e Síria. Os iranianos, seja qual for seu sentimento sobre seu regime despótico, não veriam os EUA como aliados ou libertadores. Eles não querem ser ocupados. Eles resistiriam.
Uma guerra contra o Irã seria vista em toda a região como uma
guerra contra o xiismo. Mas são cálculos que os ideólogos, que
sabem pouco sobre o instrumento da guerra, e ainda menos sobre as
culturas ou povos que tentam dominar, não podem dar-se conta. Um
ataque ao Irã não teria mais sucesso que os ataques israelenses ao
Líbano em 2006, que foram incapazes de quebrar o Hezbollah e uniram
a maior parte dos libaneses em apoio àquele grupo militante. Os
bombardeios de Israel não pacificaram 4 milhões de libaneses. O que
ocorrerá se os EUA começarem a atingir um país de 80 milhões de
pessoas, cujo território é três vezes maior que o da França?
Os Estados Unidos, como Israel, tornaram-se um Estado-pária que
ameaça, viola e se afasta do direito internacional. Lançam guerras
“preventivas”, que sob o direito internacional são definidas
como “crimes de agressão”, baseados em evidências fabricadas.
Os norte-americanos, como cidadãos, precisam tornar seu governo
responsável por tais crimes. Se não o fizerem, serão cúmplices na
construção de uma nova ordem mundial que teria terríveis
consequências. Seria um mundo sem direitos, acordos e leis. Seria um
mundo em que qualquer nação, de um Estado-vilão nuclearizado a uma
potência imperial, poderia invocar suas leis domésticas para anular
suas obrigações com os demais. Tal nova ordem desfaria cinco
décadas de cooperação internacional – em grade parte
estabelecida com apoio dos EUA – e nos mergulharia num pesadelo
hobbesiano. A diplomacia, a cooperação ampla, os tratados e a lei,
todos estes mecanismos criados para civilizar a comunidade global,
seriam substituídos pela selvageria.
Tradução: Antonio Martins
Chris Hedges, repórter laureado com Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/assim-os-imperios-cometem-suicidio/