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Os jogos da fome de Gaza

Israel está usando a fome como arma. O objetivo é desmontar todos os vestígios de sociedade civil e reduzir os palestinos a bandos de catadores desesperados

por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report

Brasil 247 - 29 de junho, 2025

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Starved for Peace - by Mr. Fish

A utilização da fome como arma por parte de Israel é o modo como todos os genocídios terminam. Eu cobri os efeitos insidiosos da fome orquestrada nas Terras Altas da Guatemala durante a campanha genocida do general Efraín Ríos Montt, a fome no sul do Sudão que deixou um quarto de milhão de mortos — caminhei ao lado dos corpos frágeis e esqueléticos de famílias ao longo das estradas — e, mais tarde, durante a guerra na Bósnia, quando os sérvios cortaram o fornecimento de alimentos para enclaves como Srebrenica e Goražde.

A fome foi usada como arma pelo Império Otomano para dizimar os armênios. Foi usada para matar milhões de ucranianos no Holodomor em 1932 e 1933. Foi empregada pelos nazistas contra os judeus nos guetos durante a Segunda Guerra Mundial. Soldados alemães usavam a comida, como Israel faz, como isca. Eles ofereciam três quilos de pão e um quilo de geleia para atrair famílias desesperadas no Gueto de Varsóvia para os transportes aos campos de extermínio. “Houve momentos em que centenas de pessoas tiveram que esperar na fila por vários dias para serem ‘deportadas’”, escreve Marek Edelman em The Ghetto Fights [As Lutas dos Guetos]. “O número de pessoas ansiosas para obter os três quilos de pão era tal que os transportes, agora partindo duas vezes ao dia com 12 mil pessoas, não podiam acomodar todas elas.” E quando as multidões se tornavam turbulentas, como em Gaza, os soldados alemães disparavam rajadas mortais que atravessavam os corpos emaciados de mulheres, crianças e idosos.

Essa tática é tão antiga quanto a própria guerra.

O relato no jornal israelense Haaretz, de que soldados israelenses estão sendo ordenados a atirar contra multidões de palestinos nos pontos de distribuição de ajuda, com 580 mortos e 4.216 feridos, não é surpresa. É o desfecho previsível do genocídio, a conclusão inevitável de uma campanha de extermínio em massa.

Israel, com os seus assassinatos direcionados de pelo menos 1.400 profissionais da saúde, centenas de trabalhadores das Nações Unidas (ONU), jornalistas, policiais e até poetas e acadêmicos, sua destruição de blocos de apartamentos de vários andares que exterminam dezenas de famílias, seus bombardeios de “zonas humanitárias” designadas onde palestinos se aglomeram em barracas, lonas ou ao ar livre, seu direcionamento sistemático contra centros de distribuição de alimentos da ONU, padarias e comboios de ajuda, ou seu fogo sádico de franco-atiradores que alvejam crianças, há muito deixou claro que os palestinos são considerados vermes dignos apenas de aniquilação.

O bloqueio de alimentos e ajuda humanitária, imposto a Gaza desde 2 de março, está reduzindo os palestinos à mais abjeta dependência. Para comer, eles precisam engatinhar em direção aos seus assassinos e implorar. Humilhados, aterrorizados, desesperados por algumas migalhas de comida, são despidos de dignidade, autonomia e agência. Isso é intencional.

Yousef al-Ajouri, 40 anos, relatou ao Middle East Eye a sua jornada de pesadelo a um dos quatro centros de distribuição de ajuda montados pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF). Esses centros não foram projetados para atender às necessidades dos palestinos, que antes dependiam de 400 pontos de distribuição de ajuda, mas para atraí-los do norte de Gaza para o sul. Israel, que no domingo novamente ordenou a saída dos palestinos do norte de Gaza, está expandindo gradualmente a sua anexação da faixa costeira. Os palestinos são confinados como gado em corredores metálicos estreitos nos pontos de distribuição, supervisionados por mercenários fortemente armados. Eles recebem, se estiverem entre os poucos sortudos, uma pequena caixa de comida.

Al-Ajouri, que antes do genocídio era taxista, vive com a sua esposa, sete filhos, mãe e pai em uma tenda em al-Saraya, perto do centro da Cidade de Gaza. Ele saiu em direção a um centro de ajuda na estrada Salah al-Din, próximo ao corredor de Netzarim, para encontrar comida para seus filhos, que, segundo ele, choram constantemente “por causa da fome”. Seguindo o conselho de um vizinho de tenda, vestiu roupas folgadas “para que eu pudesse correr e ser ágil”. Levava uma sacola para alimentos enlatados e embalados, porque o esmagamento da multidão tornava impossível “carregar as caixas em que a ajuda vinha”.

Ele saiu por volta das 21h com outros cinco homens — “incluindo um engenheiro e um professor” — e “crianças de 10 e 12 anos”. Eles não seguiram a rota oficial designada pelo exército israelense. As multidões maciças que convergem pelo trajeto oficial fazem com que a maioria nunca consiga chegar perto o suficiente para receber comida. Em vez disso, caminharam na escuridão por áreas expostas ao fogo israelense, muitas vezes tendo que rastejar para não serem vistos.

“Enquanto rastejava, olhei ao redor e, para minha surpresa, vi várias mulheres e idosos seguindo o mesmo caminho traiçoeiro que nós”, contou. “Em certo momento, uma rajada de tiros ao vivo estourou ao meu redor. Nos escondemos atrás de um prédio destruído. Qualquer um que se movesse ou fizesse algum movimento perceptível era imediatamente alvejado por atiradores. Ao meu lado estava um jovem alto, de cabelos claros, usando a lanterna do celular para se guiar. Os outros gritaram para ele apagá-la. Segundos depois, ele foi baleado. Caiu no chão e ali ficou sangrando, mas ninguém podia ajudá-lo ou movê-lo. Morreu em poucos minutos.”

Ele passou por seis corpos ao longo do caminho, todos mortos a tiros por soldados israelenses.

Al-Ajouri chegou ao centro às 2h da manhã, o horário designado para distribuição. Viu uma luz verde acesa à sua frente, sinalizando que a ajuda estava prestes a ser distribuída. Milhares começaram a correr em direção à luz, empurrando, se atropelando. Ele lutou para atravessar a multidão até alcançar a ajuda.

“Comecei a tatear as caixas e peguei um saco que parecia arroz”, disse. “Mas, no mesmo instante, alguém arrancou da minha mão. Tentei segurar, mas ele ameaçou me esfaquear. A maioria das pessoas carregava facas, para se defender ou para roubar dos outros. Consegui pegar quatro latas de feijão, um quilo de trigo para quibe e meio quilo de macarrão. Em instantes, as caixas estavam vazias. A maioria ali, inclusive mulheres, crianças e idosos, não conseguiu nada. Alguns imploravam para os outros dividirem. Mas ninguém podia se dar ao luxo de ceder o pouco que conseguiu.”

Os contratados dos EUA e soldados israelenses que supervisionavam o caos riam e apontavam as suas armas para a multidão. Alguns filmavam com os celulares.

“Minutos depois, granadas de fumaça vermelha foram lançadas no ar”, lembrou. “Alguém me disse que aquilo era o sinal para evacuar a área. Depois disso, tiros pesados começaram. Eu, Khalil e alguns outros seguimos para o Hospital al-Awda, em Nuseirat, porque nosso amigo Wael machucou a mão durante a jornada. Fiquei chocado com o que vi no hospital. Havia pelo menos 35 mártires mortos no chão de uma das salas. Um médico me disse que todos tinham sido levados naquele mesmo dia. Cada um foi baleado na cabeça ou no peito enquanto esperava na fila perto do centro de ajuda. Suas famílias os aguardavam em casa com comida. Agora, eram cadáveres.”

A GHF é uma criação da Mossad, financiada pelo Ministério da Defesa de Israel, que contrata a UG Solutions e a Safe Reach Solutions, comandadas por ex-membros da CIA e das Forças Especiais dos EUA. A GHF é dirigida pelo reverendo Johnnie Moore, um cristão sionista de extrema-direita com laços estreitos com Donald Trump e Benjamin Netanyahu. A organização também contratou gangues de traficantes anti-Hamas para fornecer segurança nos centros de ajuda.

Como disse Chris Gunness, ex-porta-voz da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), à Al Jazeera, a GHF está praticando “aid washing” — uma forma de mascarar a realidade de que “as pessoas estão sendo levadas à submissão pela fome”.

Israel, junto com os EUA e países europeus que fornecem armas para sustentar o genocídio, optou por ignorar a decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ) de janeiro de 2024, que exigia proteção imediata para civis em Gaza e ampla provisão de ajuda humanitária.

O jornal isralense Haaretz, em um artigo intitulado “‘É um Campo de Extermínio’, reporta: Soldados das FDI Foram Ordenados a Atirar Deliberadamente em Palestinos Desarmados à Espera de Ajuda Humanitária”, e relatou que os comandantes israelenses ordenam que soldados abram fogo contra multidões para afastá-las dos centros de ajuda ou dispersá-las.“Os centros de distribuição normalmente abrem por apenas uma hora a cada manhã”, escreve o Haaretz. “Segundo oficiais e soldados que serviram nessas áreas, as FDI atiram em pessoas que chegam antes da abertura para impedir a aproximação, ou novamente após o fechamento, para dispersar. Como alguns dos tiroteios ocorreram à noite — antes da abertura — é possível que alguns civis não tenham conseguido ver os limites da área designada.”“É um campo de extermínio”, disse um soldado ao Haaretz. “Onde eu estava, entre uma e cinco pessoas eram mortas por dia. São tratadas como força hostil — sem medidas de controle de multidão, sem gás lacrimogêneo — apenas fogo real com tudo: metralhadoras pesadas, lançadores de granadas, morteiros. Então, quando o centro abre, os tiros param e eles sabem que podem se aproximar. Nossa forma de comunicação é o fogo das armas.”“Disparamos logo cedo se alguém tenta entrar na fila a alguns metros de distância, e às vezes apenas avançamos contra eles de perto. Mas não há perigo para as forças militares”, explicou o soldado. “Não conheço um único caso de troca de tiros. Não há inimigo, nem armas.”Ele disse que a operação nos centros de ajuda é conhecida como “Operação Peixe Salgado”, uma referência ao nome israelense do jogo infantil “Luz vermelha, luz verde”. O jogo foi retratado no primeiro episódio do thriller distópico sul-coreano Round 6, no qual pessoas financeiramente desesperadas são mortas enquanto batalham entre si por dinheiro.

Israel aniquilou a infraestrutura civil e humanitária em Gaza. Reduziu os palestinos — meio milhão dos quais enfrentam a fome — a rebanhos desesperados. O objetivo é quebrar os palestinos, torná-los maleáveis e induzi-los a deixar Gaza para nunca mais voltarem.

Há conversas vindas da Casa Branca de Trump sobre um cessar-fogo. Mas não se deixem enganar. Israel não tem mais o que destruir. Seus bombardeios de saturação por 20 meses reduziram Gaza a uma paisagem lunar. Gaza é inabitável, um deserto tóxico onde os palestinos, vivendo entre blocos de concreto quebrados e poças de esgoto, não têm comida, nem água potável, nem combustível, abrigo, eletricidade, remédios ou infraestrutura para sobreviver. O último obstáculo à anexação de Gaza são os próprios palestinos. Eles são o alvo principal. A fome é a arma escolhida.

Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prémio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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