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Os limites do progressismo pós-moderno

por Atilio Boron | atilioboron.com.ar

PCB - 19 de novembro, 2019

https://pcb.org.br/portal2/24351/os-limites-do-progressismo-pos-moderno/

Compartilho a excelente nota de Néstor Kohan sobre o assunto, que destaca a CAPITULAÇÃO TEÓRICA E PRÁTICA do feminismo e autonomismo pós-modernos, a primeira indiferente às vexações e à violência desencadeada sobre as mulheres indígenas e a segunda negando que na Bolívia houve um golpe de estado (“uma revolta popular”, dizem eles!) e o massacre perpetrado pelos conspiradores. Nomes brilhantes desta tão irreparável quanto previsível rendição ao discurso e à política do imperialismo e da direita vernacular são os de Silvia Rivera Cusicanqui, Raquel Gutiérrez Aguilar e Raúl Zibechi, aos quais cabe agregar os de Raúl “Chato” Prada, Pablo Solón e de alguns outros que, diante das circunstâncias trágicas como as da Bolívia, se puseram num silêncio que só pode ser descrito como cúmplice, caso de Luis Tapia, por exemplo. Em seguida, a nota de Nestor Kohan:

GOLPE DE ESTADO NA BOLÍVIA:

DISCUSSÕES PENDENTES E SILÊNCIOS CÚMPLICES

NESTOR KOHAN

Revista Espoiler (Universidade de Buenos Aires)

Nossa época, após a crise de 2008, é a do neocolonialismo imperialista. As cadeias de formação de valor são quebradas, terceirizadas e globalizadas, enquanto a produção capitalista – mantendo o controle das empresas e dos estados centrais – se desloca em suas unidades produtivas, movendo-se e ampliando-se para o Sul Global. A superexploração da força de trabalho (principalmente feminina e precária) é intensificada. A busca voraz e opressora pelos recursos naturais do Terceiro Mundo se torna fundamental e vital para diminuir o valor do capital constante e neutralizar a queda na taxa de lucro em meio à crise capitalista global. Um processo que, em tempos de catástrofes ambientais, mudanças climáticas e escassez de recursos não renováveis, supera o antigo colonialismo da distribuição do mundo em “áreas de influência”. As assimetrias entre diferentes formações sociais incentivam uma nova divisão internacional do trabalho, reproduzindo hierarquias, dependências, dominações e aprofundando o desenvolvimento desigual do capitalismo em todo o mundo.

Nesse contexto, Nossa América é atravessada por múltiplas contradições. Mas o fator principal e determinante é a disputa entre: (a) o domínio geopolítico, econômico e cultural do imperialismo dos EUA (principalmente as empresas multinacionais e o aparato político-militar dos Estados Unidos que as protege) e (b) o bloco latino-americano das classes subalternas (classe trabalhadora, camponeses sem terra, segmentos de trabalhadores precarizados sujeitos à superexploração do capital) e movimentos rebeldes em luta (dos quais os povos originários constituem a grande maioria em escala continental, acompanhados por outros cada vez mais mobilizados, como mulheres anti-imperialistas e ambientalistas, entre várias outras).

Em suma: múltiplas contradições e várias formas de luta, incluindo em (b) desde movimentos sociais que chegaram ao Estado a espaços de resistência extra-institucionais, legais, semilegais e clandestinos.

Nesse horizonte social, histórico e geográfico, a Bolívia constitui uma sociedade heterogênea na qual, nas últimas quatro décadas (a partir do decreto privatizante 21.060 de 29/8/1985) no campo popular, dois movimentos históricos convergiram: a tradição indígena e comunitária e a tradição operária dos mineiros. Duas correntes heterogêneas cujas rebeliões e demandas algumas vezes se encontraram e outras não. Evo Morales e o MAS, como movimento político, conseguiram articular e cruzar as duas tradições (não de um suposto “significante vazio”, segundo o jargão de Ernesto Laclau, mas propondo um projeto político-histórico integrador e descolonizador, claramente definido em suas determinações de hegemonia popular sobre a antiga “república colonial, dependente e racista”).

Os resultados à vista. Por ser o segundo país mais pobre da América Latina, a Bolívia passou a ter o maior crescimento do PIB, a maior diminuição da pobreza, a distribuição mais radical de renda e uma notável queda da inflação, contrastando com a crise econômica de todos os seus vizinhos na região. Não iniciou, porém, a transição para o socialismo, mas o século XX mostrou que o socialismo não pode ser construído em um país isolado. Até agora alcançou uma sociedade muito mais igualitária em um contexto de crise capitalista global, aguda e sistêmica, onde o capital subsumiu formal e realmente a maioria das tentativas de iniciar a transição para o socialismo. Tudo isso foi alcançado coletivamente e com a liderança política, pela primeira vez na história, de um presidente indígena. Um exemplo para todo o “altermundismo” (não apenas latino-americano) que teve que extirpar na raiz, como antes com o amigo de Evo, Hugo Chavez!

Por isso, o aparato político-militar dos Estados Unidos (país cujo embaixador fora expulso da Bolívia, bem como a USAID, o NED e outras agências de espionagem dos EUA) planejou, organizou e orientou o golpe de estado contra Evo Morales, que venceu legalmente as últimas eleições com uma diferença de 648.439 votos, ou seja, 10,5 pontos, sem nenhuma “fraude” [Long, Guillaume; Rosnick, David; Kharrazian, Cavan e Cashman, Kevin (2019, novembro): «O que aconteceu na contagem de votos das eleições na Bolívia em 2019? O papel da missão de observação eleitoral da OEA ». Washington DC, Centro de Pesquisa Econômica e Política (CEPR). Em http://cepr.net (acessado em 14/11/2919)]. Para conhecer nomes e sobrenomes específicos de funcionários dos EUA envolvidos, quantias em dinheiro, tipos de armas, rotas para introdução das mesmas na Bolívia, fundações e igrejas evangélicas envolvidas e outros detalhes dos bastidores do golpe de Estado, sugerimos consultar Jalife Rahme, Alfredo (14/11/2019): «Revelando o plano dos Estados Unidos para o golpe na Bolívia: nomes e sobrenomes, relação da Embaixada e países vizinhos» [en www.conclusion.com.ar (consultado el 14/11/2019)].

Por que desta vez os Estados Unidos não colocaram um ditador militar clássico na cabeça do golpe boliviano, como Barrientos, Banzer, García Meza ou Videla, Pinochet, Stroessner? Porque o complexo industrial militar dos EUA (Eisenhower dixit) e a Casa Branca decidiram converter as Forças Armadas da América Latina em uma polícia antinarcóticos interna muito mais dócil e administrável (sem abandonar as doutrinas contrainsurgentes), que já não se ocupe mais de exercer seu controle, mesmo despótico, sobre o mercado interno e o Estado nação. As velhas Forças Armadas doutrinadas e treinadas no Panamá, na Escola das Américas e em West Point poderiam desencadear, sem deixar de ser fascistas, genocidas nem dependentes, uma inesperada guerra das Malvinas ou produzir um Noriega que sairia do controle. Hoje as ditaduras que os Estados Unidos dirigem são civis, policiais e militares! É por isso surgem à frente que as marionetes e caricaturas de um tal Juan Guaidó ou Jeanine Añez. “Democratas” que se proclamam presidentes sem terem sido eleitos por ninguém. Sem poder real, exceto para abrir as portas à subordinação imperial e à entrega de recursos naturais. Simples fotocópias borradas de um Porto Rico oficial (não o independentista), com sonhos de se tornar filiais sulamericanas de Miami.

No caso específico da Bolívia, a esse condimento de fascismo dependente, mafioso e lumpen, acrescenta-se o racismo extremo, de origem colonial furiosamente anti-indígena, apenas comparável à ideologia neonazista em favor da “supremacia branca” dos bôeres e Afrikaners da África do Sul durante o Apartheid. Não por acaso, a Bolívia recebeu criminosos de guerra croatas em Santa Cruz de la Sierra após a Segunda Guerra Mundial, muitos deles ativos na política doméstica até hoje, assim como Klaus Barbie, outro criminoso nazista da SS que, ao chegar à Bolívia, dirigia os serviços de inteligência nativos, sendo recrutado ao mesmo tempo pela Estação da CIA. Esse racismo extremista ficou nu quando os conspiradores contra Evo Morales queimaram publicamente o Whipala, símbolo da bandeira dos povos originários e caráter plurinacional do Estado boliviano.

A sujeira desse racismo é “espiritualmente” envernizada, é claro, pelo óleo sagrado e pelos apelos ao fundamentalismo religioso e ao fundamentalismo do neopentecostalismo, dos mórmons e da extrema direita do evangelismo, cada dia mais poderosos na região, como ficou descoberto não apenas com o discurso ao estilo “Pastor / Pregador” do Camacho boliviano, mas também com o brasileiro Bolsonaro. O suposto “Deus de raça branca” retorna, mais uma vez, para acompanhar e legitimar a submissão das comunidades indígenas nativas. Uma herança da conquista europeia pelo óleo sagrado e pelos apelos ao fundamentalismo religioso e ao fundamentalismo do neopentecostalismo, dos mórmons e da extrema direita do evangelismo, cada dia mais poderosos na região, como foi descoberto não apenas com o discurso “Pastor / Pregador” Camacho boliviano, mas também com o brasileiro Bolsonaro. O suposto “Deus branco” retorna, mais uma vez, para acompanhar e legitimar a submissão das comunidades indígenas nativas. Uma herança da conquista europeia. Diante de um ataque anunciado e previsível da extrema direita golpista, por que em 13 anos de gestão estatal o MAS não preparou ou conseguiu organizar uma defesa futura do processo de mudança que não dependesse das instituições tradicionais, do exército e da polícia?

Matéria de saldos pendentes … e, talvez, de futuras autocríticas?

No entanto, sem subestimar ou ocultar deficiências dos anos de gestão do MAS ou discussões abertas no futuro, a patética intervenção [divulgada no YouTube e transcrita em: https://desinformemonos.org/esta-coyuntura-nos-ha-dejado- uma-grande-lição-contra-triunfalismo-silvia-rivera-cusicanqui-da-bolívia / (acessado em 14/11/2019)] da famosa ensaísta Silvia Rivera Cusicanqui fornece elementos para a análise. Sua intervenção controversa e indefensável, que nega sem vergonha a existência do golpe contra Evo, a torna … em nome do feminismo pós-colonial (feminismo curioso e exótico, seu, que não denuncia a vexação das mulheres indígenas por parte dos golpistas, os ataques com bazucas de grupos paramilitares contra mobilizações de mulheres que se manifestavam em apoio a Evo nem sequer a violência física exercida contra a dirigente do MAS Adriana Salvatierra, presidenta do Senado).

Além desses silêncios cúmplices, o interessante está em seus questionamentos. Desqualificando com um ar de arrogância e suposta superioridade – uma cópia do estilo de Gay Spivak e seus ataques a Marx? – Silvia Rivera ataca a “nostalgia da esquerda” [sic] na Bolívia. E daí se encoraja e acusa o nome e sobrenome Juan Ramón Quintana, ex-ministro da Presidência da Bolívia, autor de um volumoso trabalho sobre interferência americana no país andino e mão direita de Evo Morales, de tentar armar os povos originários e formar um exército indiano. Acusação que também se estende contra Hugo Móldiz. Como se fosse um pecado e houvesse um mandato para “dar a outra face” contra a violência irracional da extrema direita racista!

Diante de tal absurdo ideológico e político, não podemos deixar de interrogar: quem financia esse distinto expoente do oenegerismo “pós-colonial”?

Se para o pós-modernismo de Silvia Rivera, o golpe de estado contra o presidente constitucional Evo Morales é tão somente «uma hipótese» [sic], um relato, um discurso [os jovens mutilados, as mulheres violentadas e os indígenas assassinados pelos golpistas sofre essas agressões no imaginário e no âmbito dos discursos narrativos ou acontece no âmbito do real?], para a acadêmica Raquel Gutierrez Aguilar a derrubada violenta do presidente boliviano que ganhou as eleições com mais de 10% de diferença se explicaria pela enorme semelhança entre a Bolívia do MAS e … o autoritarismo do México do PRI [https://www.elsaltodiario.com/bolivia/bolivia-la-profunda-convulsion-que-lleva-al-desastre- (Consultado em 14/11/2019)]. Extravagante utilização do método comparativo! Como se Evo Morales pudesse ser comparado com a hierarquia corrupta do PRI mexicano! Como se a constante consulta eleitoral da Bolívia nos últimos 13 anos e o diálogo com os movimentos sociais pudessem ser associados ao fisiologismo da velha política anti-indígena mexicana. A que grau de involução ideológica e política pode levar o ressentimento das pessoas que se transformam em EX revolucionárias, perdendo a bússola na cartografia da luta de classes latino-americana!

Mas quem ganhou todos os prêmios em desorientação acadêmica diante dos trágicos eventos recentes na Bolívia foi o autonomista Raúl Zibechi. O mesmo que tentou nos explicar quem estava na rua na rebelião popular de 19 e 20 de dezembro de 2001, o que, pobrezinhos e pobrezinhas, não havíamos entendido e ele, iluminado por seu suposto “horizontalismo” ou oenegero, veio nos revelar. Superando a si mesmo, desta vez ele quebrou todos os recordes anteriores, defendendo um apoio “crítico” embaraçoso ao golpe contra Evo, chamando-o de “revolta popular” [https://desinformemonos.org/bolivia-un-levacimiento-popular-aprovechado-por-la-ultraderecha / (Acessado em 14/11/2019)]. Esse publicitário até argumenta que Evo Morales, com certeza, “fraudulento”, permaneceu no governo … graças à OEA. Por Zeus! Platão exclamaria … em um de seus diálogos pedagógicos. Agora vimos a luz, graças ao inocentes, bem-intencionados e humanitários dinheirinhos das ONGs.

Apesar dessa notável virada à direita das ONGs pós-coloniais, “feministas” e autonomistas de salões … nem tudo cheira a podre na Dinamarca, digo, na América Latina. Felizmente, outras vozes dissidentes denunciaram o golpe de estado e o encobrimento da mídia (também acadêmico) dos quatro ventos. Essas vozes desobedientes nos lembraram que a atividade intelectual pode ser exercida e até obter algum reconhecimento internacional sem a necessidade de subordinar a voz do mestre ou repetir o script “humanitário” financiado por “instituições altruístas que apoiam a sociedade civil” com dólares ou euros do império.

Por exemplo, Leonardo Boff, Enrique Dussel, Gilberto López e Rivas, Atilio Borón, Pablo González Casanova, entre tantas pessoas, se manifestaram contra o GOLPE DE ESTADO e em defesa do processo liderado por Evo Morales e os movimentos sociais. Trazendo ar fresco, Ramón Grosfogel, um defensor histórico dos estudos descoloniais, repreendeu duramente Silvia Rivera Casucanqui por sua negação pós-moderna do golpe na Bolívia.

Os desafios contra essa suposta “esquerda progressista” que fala do meio ambiente, dos povos subalternos, do patriarcado e que podem substituir Lênin, Bolívar ou Che pelo veganismo e aloe vera … mas não coram contra a queima pública da bandeira indígena Whipala na Bolívia, nem fica com vergonha de marchar a reboque da agenda política das Embaixadas (com letras maiúsculas) dos EUA ao redor do mundo, permite-nos distinguir os projetos radicalmente anticolonialistas das imposições que seguem a moda do momento.

Lembremos que esses alinhamentos já estavam surgindo diante da autoproclamação do novo rei Guaidó, da dinastia do Departamento de Estado, contra o suposto “autoritarismo” do movimento bolivariano na Venezuela. O golpe de estado contra Evo Morales aprofundou o que vinha ocorrendo na Academia desde as denúncias e pedidos contra o “autoritarismo” de Nicolás Maduro. Muitos e muitos desses denunciantes em série exigem que os povos originários continuem sem hospitais, sem asfalto, com casas precárias e sem a possibilidade de se comunicar com áreas e aldeias distantes, enquanto eles e elas viajam de avião, têm o último modelo de computador, o telefone celular mais caro e sofisticado e casas com empregadas domésticas (“a garota que me ajuda”). São defensores e defensoras hipócritas de Pachamama, desde que sejam os “bons selvagens” idealizados, mas em sua vida privada não renunciam a nenhum avanço tecnológico nem ao luxo da modernidade ocidental. Essas mesmas pessoas com discurso duplo e moral tripla agora dão as costas aos indígenas, trabalhadores e movimento popular boliviano. Estamos indignados, mas não surpresos.

Finalmente. Foi uma boa decisão se exilar da Bolívia? Somente a história pode responder. Mas lembre-se de que, quando ocorreu o golpe de Estado contra Chávez, ele entrou em contato com Fidel Castro. O antigo líder da revolução cubana o aconselhou a não se imolar como Salvador Allende. Fidel estava certo. Antes da revolta popular de seu povo, Hugo Chávez, que foi capturado pelos golpistas determinados a assassiná-lo, voltou. Evo retornará como presidente constitucional do Estado Plurinacional da Bolívia?

A resposta depende da capacidade organizacional, resistência e insurgência das comunidades indígenas e da classe trabalhadora mineira, herdeiras dos levantes de Tupak Katari, Bartolina Sisa, Zárate Wilka, da Revolução de 1952 e da rebelião de Che. Os povos da Bolívia têm uma tradição esmagadora de luta. Quem disse que tudo está perdido?

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Atilio Alberto Borón (Buenos Aires, 1 de julho de 1943) é sociólogo, politólogo, catedrático e escritor argentino. Doutorado em Ciências Políticas pela Universidade de Harvard (Cambridge, Massachusetts). É professor da Universidade de Buenos Aires e investigador do CONICET.

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