Plutocracia.com

Bookmark and Share

O monstro que sequestrou a democracia (1)

A democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando.

por José Goulão (PT)

Abril Abril - 10 de agosto, 2023

https://www.abrilabril.pt/nacional/o-monstro-que-sequestrou-democracia-1

http://plutocracia.com/imagens/25deabril_Goulao_monstro.png

Quando roubaram outra vez a voz ao povo…

«A política, na sua ‘dignidade, utilidade e fecundidade’ não pode ser asilo de incapazes (…) A política é para os políticos»
Gonçalves Rapazote, deputado da União Nacional e ministro do Interior do regime fascista, com responsabilidade pela PIDE. Discurso de 1965

 

Novembro pariu um monstro: a classe política.

A «classe política», como ela própria se define com uma presunção assente em vocação inquestionável, direito natural, pergaminhos herdados de mil e uma linhagens sagradas, imaculados dotes democráticos – e a prosaica ganância de poder, deve acrescentar-se – começou a ganhar a forma que hoje ostenta em Portugal a partir do momento em que foi dada a primeira grande machadada na dinâmica popular criada pela Revolução de 25 de Abril de 1974.

O 25 de Abril e o derrube do fascismo não resultaram da acção de uma qualquer classe política. Foram obra do Movimento das Forças Armadas e da mobilização imediata, espontânea e fulgurante do povo, precisamente para pôr termo aos desmandos de uma classe política, a salazarista, que tratou o país e as suas gentes como coisas próprias e sem prestar contas a ninguém.

As transformações por que passou a sociedade portuguesa durante os meses seguintes ao Movimento dos Capitães também não precisaram de qualquer classe política. A iniciativa popular e as linhas programáticas definidas pelos militares do Movimento das Forças Armadas traçaram caminhos, muitos deles inovadores, para estabelecer uma democracia de todos e para todos na qual a vontade do povo nunca deixasse de contar e de estar presente. Abriam-se as portas de uma democracia coerente com a sua definição: o poder do povo.

O período em que a participação popular determinou o essencial das decisões políticas e económicas dispensou, portanto, qualquer mecanismo de governação que se aparentasse com uma «classe política». Quando esta ressurgiu como o único centro de poder no qual o povo se limita a delegar, sem depois ter mais qualquer intervenção ou controlo no desenvolvimento e desfecho do processo de decisão, a democracia encontrou uma barreira tanto mais autoritária quanto mais fortes forem a luta e as reivindicações populares. A classe política, como demonstra a história dos seus comportamentos, afunila a democracia, põe-na «a salvo» da vontade do povo, acabando rotineiramente por asfixiá-la. Fecha as portas à genuína democracia.

A liberdade reencontrada graças à Revolução de Abril foi o instrumento essencial da mudança política que associou o pluralismo dos partidos à componente militar libertadora e à criatividade popular, manifestando-se esta através de uma teia de associações de base vocacionadas para intervirem, a vários níveis, na estruturação do novo poder, na recriação do Estado, na transparência das empresas e nas tomadas de decisão. Porque a democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando.

Uma particularidade notável dessa fase foi o facto de os partidos políticos recém-criados – e outros que não tinham então mais de um ano de vida – sentirem ainda necessidade de reflectir as vontades dos seus militantes e apoiantes, vendo-se assim obrigados a associar a própria sobrevivência e a conquista de espaço político-eleitoral à genuína auscultação das bases. O impacto social do 25 de Abril fez com que os recém-criados partidos tivessem uma componente popular significativa – ainda que a contragosto dos seus fundadores e dirigentes, que preferiam massas eleitorais sossegadas, acriticamente seguidoras e obedientes, de preferência pouco ou nada esclarecidas.

Não era ainda chegado o tempo, que não demorou, em que os aparelhos dos novos partidos passaram a decidir tudo em confraria restrita, marginalizando a base militante, até extingui-la. A transformação gradual para alcançar a «estabilização» funcional dos mecanismos de decisão de cada um deles nem sempre foi e é pacífica, naturalmente, porque o número de cargos públicos, privados e partidários é sempre menor do que o número de candidatos às mordomias – e quase nunca chega para satisfazer a gula das clientelas.

Na sequência do 25 de Abril, em suma, desenhava-se uma democracia em que os partidos seriam uma parte essencial da estrutura de decisão, mas não os donos absolutos do poder. No entanto, a componente vingativa e revanchista que abocanhou o golpe de 25 de Novembro de 1975 cortou cerce essa perspectiva, apesar dos apelos à moderação lançados por alguns militares lúcidos. Anunciava-se já o embrião de uma nova classe política.

O desenvolvimento de una vera famiglia

Foi possível identificar prematuramente os traços da grande família política em formação, sequiosa de poder, na manifestação anti-25 de Abril realizada na Alameda Afonso Henriques alguns dias antes do golpe de 25 de Novembro de 1975 e já fazendo parte da conspiração. PS, PSD, CDS, grupúsculos «maoístas» e sectores terroristas órfãos do salazarismo como o ELP e o MDLP arrebanharam multidões para o evento, atemorizando-as com a iminência de uma «ditadura comunista» – sem dúvida, as provocações de bandeira falsa e as teorias da conspiração não são apenas coisas de hoje. O ambiente criado nessa noite, contudo, parecia mais a irrupção vingativa de um conclave de espectros salazaristas do que os primeiros passos de uma nova classe política vocacionada para «institucionalizar a democracia». Esse contexto sombrio marcou desde logo, e muito pela negativa, o carácter da classe política agora em funções: arrogante, intolerante, irresponsável, culturalmente indigente, vingativa, de um cinismo cruel e uma hipocrisia doentia, mentirosa contumaz, permanentemente tentada pelo autoritarismo interno e a subserviência externa.

Os últimos anos expuseram, porém, um traço de carácter ainda mais desumano e repugnante da classe política: o segregacionismo, a xenofobia e o racismo, que andaram disfarçados durante muito tempo em discursos e atitudes cobardemente demagógicas embrulhadas em virtuosas palavras. O tratamento criminoso e mortal que é dado aos refugiados africanos e do Médio Oriente tentando escapar das guerras coloniais/imperiais e das consequências trágicas de séculos de colonização ocidental pôs finalmente a nu a classe política que se define como farol da civilização.

O cenário ficou ainda mais revelador quando chegou a guerra da Ucrânia, em 2013/2014, ocasião em que o mesmo «Ocidente» apostou o bem-estar dos seus cidadãos, a economia, a vida de centenas de milhares de pessoas e até a sobrevivência do planeta Terra na defesa de um regime articulado por saudosos de Hitler, racista e supremacista, empenhado em «matar tantos sub- humanos quanto puder». Será possível apoiar militarmente e sem reservas, em nome da «democracia», um regime destes sem ser cúmplice das atrocidades que pratica?

Naquela já longínqua noite de Novembro de 1975, o dr. Mário Soares e o embaixador Carlucci, dos Estados Unidos da América – em vésperas de se tornar director da CIA –, supervisionaram o ajuntamento golpista da Alameda Afonso Henriques. Olhando o processo em retrospectiva histórica deve dar-se-lhes o crédito de serem os pais da classe política que modelou e gere actualmente este protectorado a rogo dos Estados Unidos e seus satélites. Indubitavelmente uma certeira relação de causa e efeito.

Bastou chegar ao primeiro governo constitucional, com o dr. Soares à cabeça, uma consequência lógica e merecida do processo de «correcção» do 25 de Abril, para a expressão «classe política» voltar a ser invocada como instrumento normal, imprescindível e único do poder político, agora sim considerado democrático.

E para que, desde logo, a sua afirmação fosse plena e sem estorvos era necessário devolver os militares às casernas e o povo ao seu redil de rebanho obediente e sossegado. «A política para os políticos» tornou-se, de modo contumaz e propagandístico, o slogan da tirania fascista retomado pela remoçada estrutura governante; e o povo, deixando-se anestesiar por um conformismo indutor de uma inércia auto-flageladora, apressou-se a engolir esse anzol da propaganda, cumprindo-se assim um primeiro passo para o apodrecimento do futuro: a clivagem entre o país político e o país real. Foi o momento em que voltaram a roubar a voz ao povo.

Com os militares nos quartéis, de onde – acabado o tempo de nojo da guerra colonial – foram convidados a sair para fazer guerras coloniais/imperiais da NATO na Jugoslávia (incluindo Kosovo), Iraque, Afeganistão, África Central e o mais que ainda receamos estar para ver; com o povo no seu lugar de governado, alheado, quanto muito silenciosamente revoltado – como antigamente – e muitas vezes sem saber o que fazer com o boletim de voto sazonal, a classe política sentiu condições para avançar no sentido que sempre desejou e para o qual nasceu: enterrar o 25 de Abril.

Na altura chamaram a este processo o do ingresso do país na «democracia ocidental», que era a sua «vocação natural» na antecâmara de uma «desejada» integração europeia – considerada «desígnio nacional» sem que aos cidadãos fosse dada qualquer oportunidade para se pronunciarem sobre isso. A Europa «estava connosco», garantiam os chefes e a propaganda do regime, pelo que, para o comum dos portugueses, embalado na vaga de «orgulho» e de gratidão devida à aceitação na elite dos poderosos, não havia perigo de o país cair numa armadilha, que afinal já estava montada e para a qual foi traiçoeiramente empurrado – pela classe política.

A desnecessária adjectivação da democracia e do regime foi também uma inerência da pertença à NATO, organização de que esta nova «democracia ocidental» fazia parte desde os tempos em que era uma ditadura fascista. Uma transição sem nada de intrigante ou contraditório, sabendo nós como a NATO se comporta.

À «democracia ocidental» chama-se hoje «democracia liberal», o que, a bem dizer, para o cidadão tanto faz porque a repercussão das suas vontades, necessidades e interesses nas decisões nacionais continua a ser a mesma: nula. Limita-se a sofrer os efeitos do capitalismo selvagem, o neoliberalismo, contidos na inocente e tão prometedora como mistificadora palavra «liberal».

Assim sendo, nenhuma pessoa precisa de invocar, e muito menos reclamar, os seus desejos e direitos porque, graças à classe política e aos seus apêndices, isso seria uma desnecessária perda de tempo. Não ouvimos assegurar a toda a hora, desde o presidente e o primeiro-ministro ao mais engalanado pivot de televisão ou o mais douto comentador e analista, que «os portugueses sabem…», «os portugueses conhecem…», «os portugueses estão cientes…», «os portugueses desejam»… «os portugueses nunca permitiriam…», «os portugueses jamais perdoariam»? Ora se tão poucos sabem tanto de tantos, se a elite do regime conhece de maneira tão segura – sem enganos nem dúvidas – o que pensam e querem os portugueses, nada há nada de mais cómodo para o povo. Nem precisa de abrir a boca, basta-lhe de vez em quando deitar o papelinho na urna para garantir a «legitimidade da democracia». Deve depois recolher-se ao permanente estado sonâmbulo e salazarento onde se aprende que «a minha política é o trabalho», mesmo que seja precário, sem direitos ou nem sequer exista.

A classe política, enfim, está hoje onde sempre quis estar, exercendo o direito exclusivo que considera pertencer-lhe: o do poder absoluto.

Pura ilusão, como ela mesma sabe. O que existe é uma estratégia de engano burilada com a cumplicidade, o conhecimento perfeito do seu papel e a fidelidade inteira da própria classe política à voz do verdadeiro dono: o poder financeiro, especulativo e económico transnacional e globalista, o carrossel do neoliberalismo. A «democracia liberal» extinguiu o povo; é somente um instrumento operacional da ditadura financeira e económica que ainda sonha em governar o mundo inteiro.

Tudo decorre, com os inevitáveis mas sempre sanáveis desaguisados, num ambiente de grande família, ampliada graças aos parentescos com o aparelho mediático convenientemente privatizado (incluindo o que restou mantendo a falsa chancela de «público»), as associações patronais (das quais faz parte um «sindicato» inventado para as servir), os padrinhos da economia e os barões das finanças, os lordes da advocacia, os purpurados da igreja (a Concordata continua em vigor?), sem esquecer os torcionários da troika, os sociopatas do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia.

Uma família muito alargada, afinada e unida na convergência das suas práticas; uma grande família ou, levando em consideração a teia mafiosa onde se move, uma verdadeira famiglia, una vera famiglia.

Dissolveram-se os rótulos, unificou-se a opinião

A classe política molda-se como uma medusa, é um corpo monstruoso e viscoso que se adapta à dinâmica das circunstâncias, à cadência dos oportunismos, às medidas que considera necessárias para atingir os objectivos, desde a liberalidade rigorosamente vigiada, a que chama «liberdade», até ao autoritarismo puro e simples, o fascismo, se for preciso.

Esta versatilidade, fruto da instabilidade em que o mundo se move, tem aspectos dignos de uma sumária reflexão. Existindo o liberalismo, a casta política detectou a ameaça do seu suposto contrário, o «iliberalismo». Não existem elementos suficientes para apurarmos se a classe política transnacional entende ou não o «iliberalismo» como uma forma de democracia, talvez transviada, inquinada, atrevida no sentido em que se permite desafinar no seio do coro bem comportado. Percebe-se, apreciando objectivamente o fenómeno, que afinal se trata de fazer a mesma política, recorrendo a métodos talvez menos ortodoxos, para alcançar os mesmos resultados – o primado da economia neoliberal. Porém, esta conclusão não é absoluta, ou toda a regra tem excepção. Por exemplo, sendo o regime da Hungria «iliberal», da mesma maneira que o da Polónia – aproximando-se este mais do fascismo – as cátedras onde se avalia a pureza «liberal» são mais tolerantes e totalmente cooperantes com o sistema de Varsóvia. Haverá iliberalismo liberal?

Deixemos a reflexão por aqui. Não pode esperar-se coerência nos vigilantes do «liberalismo» quando afinal este sistema arrisca a própria existência numa aliança guerreira com a governação nazi ucraniana, que considera um «modelo de democracia». Se ainda houver quem ache este quadro enigmático, acredite que é facílimo de decifrar.

O que faz mover a classe política, no fundo, é o desprezo pelas pessoas, a sua utilização como instrumentos para explorar e deitar fora. No cumprimento dessa tarefa predatória está a razão de ser da sua existência e, por conseguinte, a sua sobrevivência. A classe política é inimiga do povo e permite-se recorrer a todos os métodos que sejam necessários para o conter anestesiado. De modo a que a especulação e a roda do casino financeiro não tenham sobressaltos mesmo quando chegam as crises. O povo será então resgatado da inexistência e chamado a resolvê-las. A este processo de tortura chama-se «austeridade» – que aliás se tornou permanente.

Como entidade informe, a classe política não coincide com o universo político, embora conspire em permanência para que assim seja. E a «política» praticada pela «classe», apresentada como uma ciência extraída de uma espécie de mundo ocultista e apenas acessível aos «eleitos» – não confundir com os escolhidos pelo povo se as eleições fossem verdadeiramente livres –, nada tem a ver com uma política genuína: a gestão do nosso dia-a-dia pelo povo, em nome do povo e nos interesses do povo. Uma política em que a simplicidade do bom senso, o conhecimento da vida e da dinâmica social, a experiência acumulada de lutas e conquistas ao longo de séculos e a vontade de combater as desigualdades e desumanidades bastam para desmascarar as engenhocas mistificadoras e as ficções enganosas próprias de uma falsa ciência, tóxica, fundamentada em realidades virtuais ou simplesmente desejadas por aprendizes de feiticeiros. Em boa verdade, os «politólogos», na sua esmagadora maioria, são analfabetos quando o que está em causa é realmente a política ao serviço dos cidadãos e da dignidade das suas vidas, de acordo com os interesses da esmagadora maioria das pessoas. Os «politólogos» a quem deram voz pública como professores do povo são, afinal, videntes narcísicos, íntimos da verdade absoluta e que, abolindo as pessoas das suas fábulas académicas – a Academia reflecte cada vez mais a cultura embrutecedora e exploradora que é um dos pilares da classe política – conhecem em cada momento, porque se «mestraram» ou «doutoraram» para isso, o que interessa ao cidadão, o que este deseja e como pode alcançá-lo. Desde que não seja, como é óbvio, um looser, um perdedor, porque então a «meritocracia» tecnocrática fá-lo-á arrepender-se de estar vivo.

Não, em definitivo a política não é para os políticos; é das pessoas e para as pessoas.