Dai-nos paz na Terra
Enquanto o atual Secretário de Defesa, Lloyd Austin, embarca em sua 12ª viagem ao Indo-Pacífico, a Nova Guerra Fria dos EUA contra a China não mostra sinais de desaceleração, mesmo sob uma segunda presidência de Trump.
por Vijay Prashad (pt-BR)
thetricontinental.org - 21 de novembro, 2024
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Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Em 31 de maio, as Forças Armadas dos Estados Unidos endossaram uma Declaração de Princípios para a Colaboração da Base Industrial de Defesa do Indo-Pacífico, a fim de fortalecer a cooperação da indústria militar com seus aliados na região. Os princípios delineiam os compromissos com iniciativas como a coprodução de sistemas de mísseis e foguetes na Austrália, o co-desenvolvimento de interceptadores de mísseis hipersônicos com o Japão e possíveis colaborações com a Coreia do Sul no desenvolvimento de tecnologias de defesa, incluindo sistemas de artilharia. Essa colaboração se soma à extensa rede de parcerias Indo-Pacíficas que os Estados Unidos criaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Como parte dessa reforçada parceria, em 15 de novembro, o Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd J. Austin III, embarcou em uma viagem pela região que incluirá paradas na Austrália, Fiji, Laos e Filipinas. A viagem de Austin começou em Darwin, Austrália, onde ele convocou a 14ª Reunião Trilateral de Ministros da Defesa com seus colegas japoneses e australianos; a Austrália também abriga a Base Tindal da Força Aérea Real Australiana (RAAF, na sigla em inglês), onde os EUA estão co-financiando expansões que permitirão que a base abrigue bombardeiros B-1 e B-52 com armas nucleares de fabricação estadunidense. No Laos, o secretário de defesa participará da Reunião dos Ministros da Defesa da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês) para discutir a chamada “agressão chinesa no Mar do Sul da China”. O objetivo da visita é destacar a continuidade da política dos EUA na região entre as administrações do presidente Joe Biden, que está por se encerrar, e a do presidente eleito Donald Trump.
No início de 2020, um grupo de pessoas começou a discutir a necessidade de criar uma plataforma para debater os perigos do fortalecimento militar dos EUA ao longo da costa do Leste Asiático – tanto por meio de seu próprio arsenal quanto de seu leque de alianças. Esse acúmulo começou a surgir após o “pivô asiático” dos EUA, que começou em 2011 sob o comando do presidente Barack Obama. A discussão levou à criação do coletivo Basta de Guerra Fria, que teve origem em uma declaração assinada por muitos indivíduos e organizações. O coletivo Basta de Guerra Fria realizou seu primeiro webinar público em 25 de julho de 2020 e, desde então, publicou 14 briefings sobre questões como a guerra na Ucrânia e a construção da máquina militar dos EUA e da Otan no nordeste da Ásia.
Após as eleições nos EUA, o Basta de Guerra Fria lançou o briefing n. 15, que explora o que a segunda presidência de Donald Trump significará para o mundo, com foco na Nova Guerra Fria dos EUA contra a China. O briefing está abaixo:
Briefing n. 15: A vitória de Trump é um sintoma mórbido do declínio do império estadunidense
Em 6 de novembro, Donald Trump foi eleito o 47º presidente dos Estados Unidos, garantindo seu retorno em janeiro de 2025 ao cargo que deixou em 2021, sob a sombra de uma crise constitucional e de um golpe fracassado da extrema-direita. Assim, garantiu uma vitória mais decisiva e incontestável do que em sua primeira eleição em 2016, quando perdeu o voto popular para Hillary Clinton, mas venceu no sistema de Colégio Eleitoral dos Estados Unidos — um mecanismo misterioso e profundamente antidemocrático por meio do qual apenas 0,03% da população votante do país pode decidir o vencedor, com consequências descomunais para o mundo inteiro devido à hegemonia militar e econômica dos EUA.
Dessa vez, Trump obteve cerca de dois milhões de votos a mais que a vice-presidente Kamala Harris, tornando-se o primeiro candidato do Partido Republicano em duas décadas a vencer o voto popular nacional (esse resultado teve muito mais a ver com a perda de quase dez milhões de votos dos democratas desde 2020 do que com o aumento do apoio a Trump.) Como resultado, Trump venceu todos os sete “estados pêndulos” [estados que ora votam em republicanos, ora em democratas] no Colégio Eleitoral.
Um dos estados indecisos mais emblemáticos dessa eleição foi Michigan, que abriga a maior proporção de eleitores árabes estadunidenses do país. Aqui, o apoio militar e diplomático total do governo Biden-Harris ao ataque genocida de Israel em Gaza e no Líbano sem dúvida selou sua derrota vergonhosa. Na cidade de maioria árabe de Dearborn, Harris obteve menos da metade dos votos de Biden em 2020, ficando atrás de Trump, enquanto a candidata do Partido Verde, Jill Stein, contrária ao genocídio, subiu para mais de 18%. Uma pesquisa nacional de boca de urna realizada pelo Conselho de Relações Americano-Islâmicas revelou que impressionantes 53% dos eleitores muçulmanos optaram por Stein, reconhecendo que ambos os principais partidos estão inelutavelmente envolvidos na agressão imperialista no exterior e na repressão violenta do movimento de solidariedade à Palestina no país.
Embora elementos centrais da base eleitoral tradicional do Partido Democrata tenham abandonado o governo Biden-Harris por causa de sua política externa assassina, a presidência de Trump não trará nenhum alívio aos palestinos após mais de um ano de genocídio em grande escala. Trump declarou em diversas ocasiões sua intenção de deixar o regime de Netanyahu “terminar o trabalho” em Gaza, e todas as indicações sugerem que ele não apenas manterá, mas acelerará o esforço de Biden por um “novo Oriente Médio” totalmente subordinado ao sionismo e ao imperialismo dos EUA. A julgar por sua belicosidade passada e presente em relação ao Irã — tendo assassinado Qassem Soleimani em seu primeiro mandato e renegado unilateralmente o Acordo Nuclear (formalmente o Plano de Ação Global Conjunto, JCPOA) —, ele provavelmente demonstrará ainda menos inibições em intensificar a crise em direção a uma guerra regional em grande escala. Um indicador claro disso é a escolha do algoz anti-Irã Marco Rubio como Secretário de Estado e de Brian Hook (autor da estratégia de “pressão máxima” contra Teerã em seu primeiro mandato) para supervisionar a transição.
A nomeação de Rubio, que historicamente tem sido também igualmente agressivo em relação à Rússia, parece jogar água fria em esperanças amplamente especulativas de que Trump pelo menos acalmaria a guerra da Otan por procuração na Ucrânia. Tais esperanças foram alimentadas pelos planos de seus conselheiros mais próximos de política externa de condicionar a ajuda militar dos EUA à disposição da Ucrânia em negociar e aceitar um cessar-fogo temporário com a Rússia, ao mesmo tempo que ameaçavam “abrir as comportas” se Moscou, por sua vez, recusasse esse acordo. Isso não foi motivado por qualquer compromisso de princípios com a diplomacia, mas por uma realpolitik igualmente beligerante que vê a China como o inimigo número um dos Estados Unidos e visa redirecionar os ativos militares dos EUA para um cerco ainda mais ameaçador ao país asiático.
Elbridge A. Colby, próximo a Trump, traçou um plano exaustivo para provocar a China a uma guerra armada por Taiwan, que seu proposto Conselheiro de Segurança Nacional, Mike Waltz, estaria bem posicionado para executar. De fato, Trump, em seu segundo mandato, quase certamente intensificará a guerra híbrida dos EUA contra a China, que cresceu enormemente em seu primeiro mandato e continuou inabalável sob Biden — não apenas no domínio militar, mas também na guerra de informação e na política comercial. Em particular, ele propôs uma tarifa mínima de 10-20% sobre todas as importações para os Estados Unidos e uma tarifa elevada de 60% sobre as importações provenientes da China. Isso aumentaria drasticamente os preços ao consumidor e, portanto, custaria a um lar mediano cerca de 3 mil dólares por ano, de acordo com o Tax Policy Center.
Tal política apenas empobreceria ainda mais uma população que já está sofrendo com o ataque do governo Biden-Harris aos padrões de vida da classe trabalhadora — a causa imediata do colapso dos democratas. Os salários semanais reais caíram visivelmente ao longo do mandato de Biden e os índices de desigualdade cresceram (em dezembro de 2023, uma em cada nove mulheres adultas vivia na pobreza, incluindo 16,6% das mulheres negras e 16,8% das mulheres latinas). Ao mesmo tempo, a riqueza agregada dos bilionários dos EUA aumentou em surpreendentes 88% (para 5,5 trilhões de dólares) entre março de 2020 e março de 2024, enquanto a riqueza de capital, conforme indicado pelo índice S&P 500, aumentou em 72%. Não é de se admirar que Trump tenha conquistado a maioria das famílias que ganham menos de 100 mil dólares por ano (incluindo 74% dos que relataram “dificuldades severas” devido à inflação) enquanto perdeu na faixa dos que ganham mais de 100 mil dólares: uma reversão completa da ruptura partidária de 2020 e de todas as eleições presidenciais anteriores da história.
No final das contas, tais queixas econômicas renderam a Trump margens de vitória tão grandes que a parcela de votos de terceiros não se mostrou decisiva: mais uma humilhação para os democratas, que fizeram esforços hercúleos para manter os candidatos progressistas contrários ao genocídio fora das urnas. À primeira vista, o fato de muitos eleitores terem ficado decepcionados com os fracassos das enormes iniciativas de gastos domésticos do governo Biden-Harris parece contradizer as narrativas que atribuem diretamente a derrota de Harris à política externa de Biden. Mas dificilmente se pode chamar o orçamento interno de um país de “doméstico” quando ele inclui seu orçamento militar — incluindo a manutenção de um império global com mais de 900 bases militares, investindo 175 bilhões de dólares na guerra por procuração na Ucrânia e 18 bilhões de dólares no genocídio contra o povo palestino cometido por Israel, e quando os gastos militares reais são mais que o dobro do valor oficial — espantosos 1,5 trilhão de dólares somente em 2022. O trumpismo, em todos os seus extremos paradoxais de isolacionismo e beligerância, populismo e nativismo, é apenas mais um sintoma mórbido desse violento declínio imperial.
Esses sintomas mórbidos, conforme observado no briefing n. 15, refletem o desejo da classe dominante dos EUA de uma guerra para minar os avanços econômicos feitos pela China. Isso é perigoso. Talvez queiramos ouvir aqueles que sabem o que as guerras trazem. Cao Cao, um chefe guerreiro durante a dinastia Han Oriental, escreveu um poema encantador que fornece tal aviso:
Piolhos e pulgas infestam a armadura usada há muito tempo;
Dezenas de milhares de civis morreram.
Ossos jazem nus nos campos,
Não se ouviu um galo cantar num raio de mil li.
De cem, um vive;
Só de pensar nisso meu coração se parte.
Cordialmente,
Vijay.
Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
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