Clare Montgomery e Julian Assange Num ponto inicial do processo a advogada de Pinochet, Clare Montgomery, apresentou em sua defesa um argumento que nada tinha a ver com idade ou com problemas de saúde.
"Os Estados e os órgãos do Estado, incluindo chefes de Estado e ex-chefes de Estado, têm direito à imunidade absoluta de processos criminais nos tribunais nacionais de outros países", disse Montgomery, segundo citou o jornal The Guardian. Ela argumentou que os crimes contra a humanidade devem ser definidos de forma restrita no contexto de casos de guerra internacional, tal como relatou a BBC.
O argumento de imunidade de Montgomery foi derrubado pela Câmara de Lordes. Mas o tribunal de extradição determinou que a saúde precária de Pinochet, amigo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher, o impediria de ser enviado à Espanha.
Embora os casos de Pinochet e Assange estejam separados por mais de duas décadas, dois dos participantes são os mesmos, desta vez desempenhando papéis muito diferentes.
Montgomery reapareceu no caso de Assange para argumentar acerca do direito de o promotor sueco obter um mandado de prisão europeu para Assange.
Este seu argumento acabou por falhar. Um tribunal sueco recentemente negou o mandado de detenção europeu. Mas, como no caso de Pinochet, Montgomery ajudou a ganhar tempo, desta vez permitindo que as alegações sexuais suecas persistissem e enlameassem a reputação de Assange.
Garzón, o juiz espanhol, que requisitou a extradição de Pinochet, também reaparece no caso de Assange. Ele é um conhecido defensor dos direitos humanos, "visto por muitos como o mais corajoso vigilante legal em Espanha e o flagelo de políticos e senhores das drogas em todo o mundo", como The Independent o descreveu há alguns anos.
Ele agora lidera a equipa legal de Assange.
Amigos e inimigos
A questão a destacar é se o sistema legal britânico deixou ir embora sem ser julgado um notório ditador como Pinochet mas enviará um editor como Assange para os Estados Unidos, onde enfrentará a prisão perpétua.
A maré do sentimento político tem corrido contra Assange.
Pinochet e Thatcher Perante o facto de o secretário do Interior do Reino Unido ter assinado o pedido de extradição de Assange para os EUA, levando o Tribunal de Magistrados a marcar uma audiência de cinco dias no final de Fevereiro de 2020, os legisladores britânicos pediram publicamente que o caso contra Assange prosseguisse. Poucas autoridades eleitas defenderam Assange (a sua imagem foi manchada por alegações e críticas não comprovadas da Suécia acerca da eleição dos EUA em 2016, que nada tem a ver com o pedido de extradição).
Pinochet, por outro lado teve amigos altamente colocados, Tatcher pediu abertamente a sua libertação.
"[Pinochet] teria o hábito de enviar chocolates e flores para [Thatcher] durante as suas visitas semestrais a Londres e tomar chá com ela sempre que possível. Apenas duas semanas antes de sua prisão, Pinochet foi recebido pelos Thatchers na sua casa em Chester Square, Londres", relatou a BBC e a CNN informou sobre a "famosa relação estreita".
Afeto semelhante também foi documentado entre Pinochet e o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger. The Nation relatou num memorando desclassificado uma conversa privada em Santiago do Chile, em Junho de 1976, que revelou "as expressões de Kissinger de "amizade", compreensão "simpática" e desejos de sucesso para Pinochet no auge da sua repressão, quando muitos desses crimes – tortura, desaparecimentos, terrorismo internacional – estavam a ser cometidos".
Pinochet e Kissinger Abuso sistemático e difundido
Pinochet subiu ao poder depois de um golpe de Estado violento das forças armadas chilenas em 11 de Setembro de 1973, apoiado pelos EUA, que derrubou o presidente democraticamente eleito do país, o socialista Salvador Allende. O golpe foi qualificado como "um dos mais brutais da história moderna da América Latina".
A CIA financiou operações no Chile com milhões de dólares antes e depois da eleição de Allende conforme no Senado dos EUA, em 1975, relatou a Comissão Church.
Embora o relatório da Comissão Church não tenha encontrado evidências de que a CIA financiou diretamente o golpe, o National Security Archive observou que a CIA "apoiou ativamente a Junta militar após o derrube do presidente Allende. Muitos dos oficiais de Pinochet estavam envolvidos em abusos sistemáticos e generalizados dos direitos humanos. Alguns deles eram contactos da CIA, seus agentes ou dos militares dos EUA".
A violência infligida por Pinochet ultrapassou as fronteiras do Chile. As suas ordens de extermínio estão ligadas ao assassinato de um dissidente chileno exilado, o ex-ministro Orlando Letelier, na explosão de um carro-bomba no solo dos EUA. O ataque também matou Ronni Moffitt, um cidadão dos EUA.
Mais de 40 mil pessoas, muitas apenas com ténues ligações a dissidentes, foram "desaparecidas", torturadas ou mortas durante os 17 anos do reinado de terror de Pinochet.
O Chile de Pinochet, quase imediatamente após o golpe, tornou-se um laboratório para a teoria económica neoliberal da Escola de Chicago, um novo laissez-faire aplicado na ponta das armas. Thatcher e o presidente Ronald Reagan defenderam um sistema de privatizações, comércio livre, cortes nos serviços sociais e desregulamentação dos bancos e dos negócios, o que levou à maior desigualdade num século.
Em contraste com esses crimes e corrupção, Assange publicou milhares de documentos confidenciais mostrando como as autoridades dos EUA e de outras nações estiveram comprometidas em muitos atos de crime e corrupção.
No entanto, está longe de ser certo que Assange venha a obter a mesma indulgência no processo de extradição britânico que Pinochet desfrutou.
Após a morte do ditador, Christopher Hitchens escreveu que o Departamento de Justiça dos EUA tinha uma acusação contra Pinochet completada já há algum tempo. "Mas a acusação nunca foi revelada", Hitchens reportou na [revista] Slate.
A acusação contra Assange, em contraste, não foi apenas revelada, mais acusações foram acumuladas.
Dadas as dificuldades de longa data que ele teve no acesso à justiça, é justo dizer que o Reino Unido e o resto do mundo ocidental estão a cometer um "desaparecimento forçado" em câmara lenta de Assange.
Elizabeth Vos é repórter freelancer e colaboradora regular do Consortium News. Esta é uma versão atualizada de artigo publicado originalmente em Disobedient Media.
https://www.resistir.info/varios/assange_extradicao.html