O que é que desencadeará o próximo colapso? Os 13,2 mil milhões de dólares de dívidas insustentáveis das famílias americanas? A dívida insustentável de 1,5 mil milhões de dólares dos estudantes? Os milhares de milhões que Wall Street investiu na fracturação hidráulica, setor que gastou mais 280 mil milhões de dólares do que o gerado nas suas operações? Quem sabe. O que é certo é que é inevitável uma derrocada financeira mundial, que eclipsará o colapso de 2008. Desta vez, com taxas de juro próximas do zero, as elites não têm nenhum plano de salvação. A estrutura financeira vai desintegrar-se. A economia mundial vai entrar numa espiral mortífera. Receio que o furor duma população traída e empobrecida vá reforçar os demagogos de direita que prometem a vingança contra as elites mundiais, a renovação da moral, o regresso às raízes duma época mítica em que os imigrantes, as mulheres e as pessoas de cor sabiam o seu lugar e, por fim, um fascismo cristão.
A crise financeira de 2008, como sublinha Nomi Prins, economista e colaboradora de Truthdig, "transformou os bancos centrais numa nova classe de mandatários do poder". Pilharam as riquezas nacionais e amontoaram biliões para se tornarem política e economicamente imprescindíveis. No seu livro – Collusion: How Central Bankers Rigged the World [ Conluio: Como os banqueiros centrais defraudaram o mundo , NT] – ela escreve que os banqueiros centrais e as maiores instituições financeiras do planeta se dedicam a manipulações fraudulentas nos mercados mundiais e fabricam o que ela chama "moeda falsa", para encher bolhas especulativas e delas retirar um lucro a curto prazo, empurrando-nos para um "perigoso precipício financeiro".
"Antes da crise, andavam 'em piloto automático', em especial o Federal Reserve, que, supostamente, é o principal regulador dos grandes bancos nos Estados Unidos", declarou Nomi Prins aquando do nosso encontro em Nova Iorque. "Com este comportamento, o Federal Reserve tem a terrível responsabilidade da crise financeira. Passou a ser desreguladora em vez de reguladora. No rescaldo da crise financeira, a solução que foi proposta para salvar a economia de uma grande depressão ou de uma recessão, qualquer que fosse a terminologia do momento, foi fabricar dólares virtuais aos biliões".
De acordo com investigadores da Universidade do Missouri, o Federal Reserve confiou cerca de 29 mil milhões de dólares desse dinheiro falsificado a bancos americanos. Vinte e nove mil milhões de dólares ! Teríamos podido oferecer escolaridade gratuita a todos os estudantes ou serviços de saúde gratuitos universais, restaurar as nossas infraestruturas em ruínas, fazer a transição para uma energia limpa, anular a dívida dos estudantes, aumentar os salários, salvar proprietários super endividados, criar bancos públicos para investir com juros baixos nas nossas coletividades, garantir um rendimento mínimo para toda a gente, criar um vasto programa de criação de empregos para os desempregados e para as pessoas com subempregos. Dezasseis milhões de crianças deixariam de ir para a cama de barriga vazia. Os doentes mentais e os sem-abrigo – calcula-se que há 553 742 norte-americanos sem abrigo, todas as noites – não ficariam na rua ou fechados nas prisões. A economia recuperaria. Em vez disso, 29 mil milhões de dólares de dinheiro fabricado foram entregues a escroques da finança que estão em vias de os fazer desaparecer na quase-totalidade e de nos mergulhar numa depressão comparável à do colapso mundial de 1929 .
Kevin Zeese e Margaret Flowers escrevem no sítio da Internet Popular Resistance: "Um sexto deste montante podia oferecer um rendimento de 1000 dólares por mês, o que custaria 3,8 mil milhões de dólares por ano, duplicar as prestações da segurança social para as elevar a 22 000 dólares por ano, o que custaria 662 mil milhões, oferecer 10 000 dólares de prémio aos professores do ensino público americano – 11 mil milhões – instituições de ensino superior gratuitos para todos os diplomados do secundário – 318 mil milhões – assim como jardins de infância para todos – 28 mil milhões. A melhoria da segurança na doença e a sua abertura a toda a gente permitiria à nação economizar milhares de milhões de dólares em 10 anos".
Uma cláusula de emergência da Lei do Federal Reserve, de 1913, permite que o Federal Reserve (FED) forneça liquidez a um sistema bancário em dificuldade. Mas a Reserva Federal não se limitou à criação de algumas centenas de milhares de milhões de dólares. Inundou os mercados financeiros por uma criação monetária insensata. Teve como efeito dar a impressão de que a economia havia sido relançada. Foi o caso para os oligarcas, que, ao contrário de nós, tiveram acesso a esse dinheiro.
O FED pôs as taxas de juro quase a zero. Certos bancos centrais europeus instauraram taxas de juro negativas , ou seja, pagavam aos emprestadores para que estes aceitassem endividar-se. A Reserva Federal, com um hábil jogo de contabilidade, até permitiu aos bancos em dificuldade que contraíssem empréstimos a juros zero, para comprar Títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Depois, os bancos restituíam esses títulos ao FED que lhes pagava 0,25% de juros. Em resumo, o FED emprestou dinheiro aos bancos a uma taxa de juro praticamente nula, e depois o FED pagou-lhes juros sobre o dinheiro que lhes tinha emprestado. O FED também resgatou ativos hipotecários sem valor e outros ativos tóxicos aos bancos. Como as autoridades do FED podiam fabricar todo o dinheiro que quisessem, pouco importava como é que o gastavam.
"É como ir a uma venda de garagem e dizer: "Quero aquela bicicleta sem rodas. Pago 100 000 por isso. Porquê? Porque o dinheiro não é meu", disse Prins.
"Esta gente viciou o sistema", disse ela, em relação aos banqueiros. "Há dinheiro fabricado no topo. É utilizado para inflacionar os ativos financeiros, incluindo as ações. Isso deve vir de qualquer parte. Como o dinheiro é barato, há mais empréstimos para as empresas e pelo governo".
"Onde vão buscar dinheiro para o reembolso?" perguntou ela. "À nação, à economia. São vocês que captam o dinheiro da economia real e dos programas sociais. São vocês que impõem a austeridade".
Dado o montante estarrecedor da criação monetária que terão de reembolsar um dia, os bancos não têm outra hipótese senão emprestar de qualquer modo. É por isso que, quando estamos a descoberto no nosso cartão de crédito, a taxa de juro salta para 28%. É por isso que, se declaramos falência pessoal, ficamos responsáveis pelo empréstimo a estudantes, isto enquanto um milhão de pessoas por ano deixam de pagar os seus empréstimos a estudantes, e a taxa de incumprimento destes empréstimos deverá atingir 40% daqui a 2023. É por isso que os salários estagnam, ou mesmo baixam, enquanto os preços, quer se trate de cuidados de saúde, de produtos farmacêuticos, de despesas bancárias ou de serviços públicos de base, sobem em flecha. A dívida imposta cresce para alimentar a besta até que, como no caso da crise hipotecária dos subprimes , o sistema predador sucumba devido a falências de grande dimensão. Por exemplo, como para todas as bolhas financeiras, um dia as previsões extremamente otimistas dos benefícios de indústrias como a da fracturação hidráulica, deixarão de ser uma justificação aceite para continuar a injetar fundos nas empresas em dificuldade, oprimidas por dívidas que nunca poderão reembolsar.
"As 60 maiores sociedades de prospeção e de produção não geram receitas de vendas suficientes para cobrir as suas despesas de exploração e de investimento", escreve Bethany McLean no artigo intitulado The Next Financial Crisis Lurks Underground [A próxima crise financeira espreita debaixo do chão, NT] publicado no New York Times, a propósito desta indústria em declínio. "Em média, entre meados de 2012 e meados de 2017, registaram em conjunto um défice trimestral de 9000 milhões de dólares".
O sistema financeiro mundial é uma bomba-relógio. A questão não é saber se ela vai explodir, mas quando é que vai explodir. Quando isso acontecer, os especuladores mundiais já não poderão utilizar a criação monetária para fazer face ao cataclismo, o que provocará um desemprego generalizado, preços caros para os produtos importados e para os serviços mais essenciais, assim como uma desvalorização que fará com que o dólar não sirva para quase nada, porque será abandonado enquanto divisa de reserva mundial. Esse tsunami financeiro transformará os Estados Unidos, que são já uma democracia em bancarrota, num estado policial autoritário. A vida não valerá grande coisa, sobretudo a dos mais vulneráveis – trabalhadores sem documentos, muçulmanos, pobres de diversas etnias, raparigas e mulheres, anticapitalistas e anti-imperialistas que serão catalogados como agentes de potências estrangeiras – que vão ser diabolizados e perseguidos enquanto responsáveis pelo colapso. As elites, numa tentativa desesperada de se agarrar ao seu poder sem freios e à sua riqueza obscena, desmantelarão o que restar dos Estados Unidos.
Tradução de Margarida Ferreira
Chris Hedges é jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, autor best selling do New York Times, professor do programa de nível universitário oferecido aos prisioneiros do estado de New Jersey pela Universidade Rutgers
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