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O mundo em realidade paralela

Por que está o Irão a ser vítima de uma guerra, através de sanções económicas arbitrárias, que pode estender-se à componente militar? Procurem a resposta no mainstream: encontrá-la é como acertar no euromilhões.

por José Goulão

AbrilAbril - 27 de junho, 2019

https://www.abrilabril.pt/internacional/o-mundo-em-realidade-paralela

A elite governante mundial, em aliança com o aparelho comunicacional global que trata da sua propaganda, querem forçar-nos a viver numa realidade paralela, aquela em que a versão ficcional e oficial dos factos se transforma em verdade única, indiscutível, sendo a discordância anatemizada como fake news.

Para ter a noção da envergadura da burla basta-nos pegar em alguns factos que fazem a actualidade, segundo a agenda ditada pelo aparelho de propaganda, e aprofundá-los um pouco. Não será necessário cavar muito fundo, porque a mistificação fica exposta a partir das primeiras incisões: não pode dizer-se que haja especial cuidado em preparar algumas das farsas.

No topo da actualidade está a guerra contra o Irão: haverá ou não haverá? Quando haverá? Como haverá? O problema resume-se a estas dúvidas.

Presume-se, pois, que existam razões justas, mecanismos legais para que a guerra se faça, talvez resoluções das Nações Unidas ou coisas do género.

Não, resoluções não há; tão pouco o Congresso dos Estados Unidos deu o consentimento constitucional ao presidente para atacar o Irão. E, já agora, alguém sabe dizer o que fez o Irão para que mereça ser alvejado? Parece que uns petroleiros danificados no Golfo de Omã sem que haja provas de quem cometeu o crime; e o derrube de um drone norte-americano que invadiu o espaço aéreo iraniano, facto de que existem sobejas provas embora sejam censuradas pela comunicação global.

Digamos, porém, que estas circunstâncias poderão ser pretextos circunstanciais, os casus belli, a ignição do conflito armado.

Porque a pergunta que conta é esta: por que razão está o Irão a ser vítima de uma guerra, através de sanções económicas arbitrárias, que pode estender-se à componente militar? Procurem a resposta no mainstream: encontrá-la é tão difícil como acertar no euromilhões. Isto é, parte-se do princípio de que o Irão tem de ser punido porque sim ou por alguma coisa que já se manipulou e dissolveu algures entre notícias empolgadas, comentários e análises de uma guerra, afinal, imprescindível – é isso que interessa.

De vez em quando cita-se o presidente dos Estados Unidos dizendo que, coitado, ele não quer a guerra, Teerão é que a força; por ele, preferia negociar…

Negociar o quê? Ao que parece que o Irão se comprometa a não ter armas nucleares. Mas isso já ficou estabelecido num acordo aprovado em 2015 entre Teerão, os cinco membros do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha. Um acordo que está a funcionar, como comprova a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) nos relatórios das suas inspecções trimestrais.

Acontece que os Estados Unidos deram o dito por não dito e retiraram-se há tempos do texto que assinaram. O que não inviabiliza o acordo nem significa que o Irão o viola. Então a guerra de que se fala é uma acção unilateral dos Estados Unidos – em que quer arrastar o mundo inteiro – para supostamente negociar o que está negociado. Sendo que, por ironia da história, o único projecto nuclear militar que o Irão alguma vez teve foi criado pelos Estados Unidos quando sustentavam a ditadura criminosa do Xá Reza Pahlevi.

O mainstream, porém, não trata disto: dá muito trabalho às pessoas, ocupa-lhes a cabeça, faz pensar. Coisa que normalmente não é boa para as guerras.

E as guerras são para fazer.

Onde entra a NATO

E quando se fala em guerra surge a NATO; como se sabe, sempre com a mais louvável e indiscutível postura «defensiva» – não é assim que assegura a comunicação/propaganda?

A NATO é sempre notícia, e mais ainda quando, como agora, se reuniram os ministros dos Estados membros.

Sempre no seu estilo contido, disseram os ministros, em redor do seu secretário-geral renomeado de fresco, que ou a Rússia suspende a produção de um determinado míssil de médio alcance com capacidades nucleares ou a NATO procederá em conformidade.

Ficou dado o recado, bem distribuído pela comunicação social. E basta! O resto é dispensável, toda a gente sabe muito bem quem são os russos.

Vamos então aprofundar um pouco a matéria.

Os russos dizem que o míssil em questão não viola o tratado de mísseis de médio alcance (INF), mas isso nada vale – é dito pelos russos. Poder-se-iam confrontar as duas versões, mas o que a NATO diz está dito, é um dogma.

Além disso, as várias formas de rearmamento visando a Rússia que a NATO tem adoptado, em terra e no mar, viola esse tratado porque transforma objectivos supostamente defensivos em vantagens ofensivas e com capacidades nucleares.

Bom, mas isto é dito igualmente pelos russos e também por pessoas informadas mas cujas opiniões e factos apresentados não cabem na versão oficial.

No entanto, seria importante sublinhar que o recado é enviado pela NATO aos russos precisamente na mesma altura em que a Junta de chefes do Estado-maior das forças armadas norte-americanas – isto é, da NATO – aprovou uma nova doutrina. E esse normativo prevê o recurso a armas nucleares como meios «decisivos» para resolver situações em que não haja «vitórias convincentes» das forças do bem, as que asseguram «o nosso civilizado modo de vida».

Isto é, situações como as do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria, quiçá do Irão, da Crimeia e o mais que ao bem aprouver. Trata-se, diz a Junta, de garantir a «estabilidade estratégica, ao que parece uma situação que apenas é alcançável com vitórias plenas e domínio absoluto dos Estados Unidos e da NATO, nem que seja, a partir de agora, com bombas nucleares.

O mainstream deveria ter dito alguma coisa sobre isto, pelo menos para os cidadãos ficarem a saber que as bombas nucleares poderão passar a decidir conflitos convencionais. Dizer para quê? Isso só iria agitar consciências tão postas em sossego com a informação fast food que lhes é servida.

O humanitário Guaidó

Estando o Irão no topo da agenda parece ter amainado, por ora, a sanha contra a Venezuela e as escolhas democráticas dos venezuelanos; até a RTP reduziu a intensidade dos esforços para transformar em grandes e legítimos democratas os fascistas enviados por Trump, Bolton & Cia.

Isto não significa que a guerra travada em várias frentes, designadamente as sanções contra o povo e o roubo de bens do Estado não prossigam. O assunto é que transitou das manchetes para páginas interiores e posições intermédias dos alinhamentos.

Por isso o grande público não foi informado do episódio mais actual da «operação liberdade», aquela tentativa de golpe em Fevereiro passado montada em torno do pretexto da entrada de «ajuda humanitária» na Venezuela, com o conquistador Juan Guaidó na frente.

Pois os bens angariados por organizações tuteladas pela CIA e os milhões alcançados no concerto Live Aid ficaram na Colômbia e, segundo informações que são agora do conhecimento público, filtradas por agentes dos próprios serviços secretos colombianos, foram direitinhos para os bolsos e as contas pessoais das hostes de Guaidó, o presidente interino nomeado por Washington. Até o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luís Almagro, um dos mentores de toda a «operação liberdade», surge agora a pedir um inquérito às circunstâncias, uma vez que, por outro lado, parte da «ajuda» alimentar ficou a apodrecer em armazéns em Cúcuta, comunidade colombiana a que poderia ser útil pois está muito carente de tudo o que não lhe chega de Bogotá.

Portanto, este desfecho da tão empolgante «operação liberdade» que iria «libertar» os venezuelanos do «jugo» do democraticamente eleito Maduro ficou por contar pela comunicação/propaganda. E trata-se, afinal, de um final feliz – e rentável – para aqueles que, embora não «libertassem» a Venezuela se viram livres de hipotéticas dificuldades financeiras pessoais.

Epílogo ecológico

Viria a talhe de foice destas situações recordar palavras recentes do secretário-geral da ONU, Eng.º António Guterres, que tiveram apropriadas tonalidades autocríticas embora, mais uma vez, passassem ao lado do essencial – a mentira, o desprezo e o desrespeito em que vive mergulhada a esmagadora maioria dos seres humanos do planeta, perante a complacência das Nações Unidas.

Disse o Eng.º Guterres que a geração dos dirigentes actuais não tem estado à altura das necessidades – mas fê-lo no contexto da degradação ambiental e das alterações climáticas.

Ora há muitas situações trágicas a montante e das quais a contaminação ambiental e os problemas climáticos são óbvias consequências. Há a guerra, as desigualdades cada vez mais profundas entre Estados e povos, as armadilhas financeiras, o desprezo ostensivo pelos direitos humanos, as antigas e mais recentes formas de colonialismo militar e económico, a desenfreada corrida às matérias-primas, o destruidor expansionismo agrícola transnacional, a impunidade da exploração de matérias-primas por métodos destruidores da água e dos solos, o comércio injusto dito «livre», o descarado desrespeito do capitalismo transacional por normas que poderiam preservar o ambiente mas, no seu entender, provocam restrições à ganância intrínseca.

O meio ambiente e a ecologia não existem por si, como bolhas que possam ser tratadas isoladamente sem mudar o mundo.

Imagine-se que agora até o mainstream é ecológico, fala contra as alterações climáticas, descobriu que o plástico é nocivo para o ambiente. Falta-lhe apurar e explicar, porém, como é que o desastre ambiental afecta drasticamente a esmagadora maioria dos pobres e poupa os ricos, os que o provocam, construindo-se assim mais um sistema de apartheid.

A comunicação global e o Eng. Guterres estão, afinal, no mesmo comprimento de onda, cumprindo-se a ordem natural das coisas. Uma, porque a sua missão neste mundo é impor a realidade paralela; o outro porque contribui para fabricá-la, embora pudesse não o fazer, ao menos para respeitar os direitos humanos.

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP

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