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Os refugiados da fome

por Jean Ziegler

Le Monde Diplomatique - 9 de março, 2008

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A noite estava negra, sem lua. O vento soprava a mais de cem quilómetros por hora. Levantava vagas de mais de dez metros que, com um barulho pavoroso, se abatiam sobre a frágil embarcação de madeira. Esta tinha partido de uma enseada da costa da Mauritânia, dez dias antes, tendo a bordo cem refugiados africanos da fome. Por um milagre inesperado, a tempestade atirou a barca para um recife da praia de El Medano, numa pequena ilha do arquipélago das Canárias. No fundo da barca, os guardas-civis espanhóis encontraram os cadáveres de três adolescentes e de uma mulher, mortos de fome e de sede.

Na mesma noite, alguns quilómetros mais adiante sobre a praia de El Hierro, afundara-se um outro barco velho: a bordo sessenta homens, dezassete crianças e sete mulheres, espectros titubeantes no limite da agonia [1].

Sempre na mesma altura, mas desta vez no Mediterrâneo, joga-se um outro drama: a cento e cinquenta quilómetros a sul de Malta, um avião de observação da organização Frontex avista um barco de borracha sobrelotado com cinquenta e três passageiros que – provavelmente na sequência de uma avaria do motor – anda à deriva sobre as ondas agitadas. A bordo do barco avariado, as câmaras do avião identificam crianças de tenra idade e mulheres. Regressado à sua base em La Valeta, o piloto informa as autoridades de Malta, que recusam agir, com o pretexto de que os náufragos andam à deriva na «zona de procura e de socorro líbia». A delegada do Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas, Laura Boldini, intervém, pedindo aos malteses para enviarem um barco de socorro. Nada foi feito. A Europa não se mexe. Perde-se todo o rasto dos náufragos.

Algumas semanas antes, um barco onde se apinhavam uma centena de refugiados da fome, tentando alcançar as Canárias, tinha-se afundado nas ondas ao largo do Senegal. Houve dois sobreviventes [2].

Milhares de africanos, incluindo mulheres e crianças, acampam junto às cercas dos enclaves espanhóis de Melilla e de Ceuta, no Rif árido. Sob a pressão dos comissários de Bruxelas, os polícias marroquinos repelem os africanos para o Sara [3]. Sem provisões nem água. Centenas, talvez milhares, morrem nas rochas e nas areias do deserto [4].

Quantos jovens africanos deixam o seu país pondo em risco a vida para tentar atingir a Europa? Estima-se que, todos os anos, cerca de dois milhões de pessoas tentam entrar ilegalmente no território da União Europeia e que, destes, cerca de dois mil morrem no Mediterrâneo e outros tantos nas ondas do Atlântico. O seu objectivo é atingir as ilhas Canárias a partir da Mauritânia ou do Senegal, ou transpor o estreito de Gibraltar a partir de Marrocos.

De acordo com o governo espanhol, 47 685 migrantes africanos chegaram à costa em 2006. É preciso acrescentar 23 151 migrantes que desembarcaram nas ilhas italianas ou em Malta partindo da Jamahiriya árabe líbia ou da Tunísia. Outros tentam atingir a Grécia passando pela Turquia ou pelo Egipto. Secretário-geral da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, Markku Niskala diz: «Esta crise está a ser completamente silenciada. Ninguém vem ajudar esta gente em desespero e as organizações não fazem mais do que estatísticas que dão conta desta tragédia quotidiana» [5].

Para defender a Europa contra estes migrantes, a União Europeia pôs de pé uma organização militar semiclandestina que se chama Frontex. Esta agência gere as «fronteiras externas da Europa».

Ela dispõe de navios rápidos (e armados) de intercepção no alto mar, de helicópteros de combate, de uma frota de aviões de vigilância munidos de câmaras ultra-sensíveis e de visão nocturna, de radares, de satélites e de meios sofisticados de vigilância electrónica a longa distância.

A Frontex mantém também sobre solo africano «campos de acolhimento» onde são encerrados os refugiados da fome que vêm da África Central, Oriental ou Austral, do Chade, da República Democrática do Congo, do Burundi, dos Camarões, da Eritreia, do Malawi, do Zimbawe... Frequentemente, eles caminham através do continente durante um ou dois anos, vivendo de expedientes, atravessando as fronteiras e tentando aproximar-se progressivamente de uma costa. São então interceptados pelos agentes da Frontex ou pelos seus auxiliares locais afim de os impedir de atingir os portos Mediterrâneo ou do Atlântico. Face aos consideráveis donativos em espécie dados pela Frontex aos dirigentes africanos, poucos de entre eles recusam a instalação destes campos. A Argélia salva a honra. O presidente Abdelaziz Bouteflika afirmou: «Nós recusamos estes campos. Não seremos os carcereiros dos nossos irmãos».

Organizar a fome e criminalizar os que fogem dela

A fuga pelo mar dos africanos é favorecida por uma circunstância particular: a destruição rápida das comunidades de pescadores nas costas atlântica e mediterrânica do continente. Alguns números.

No mundo, 35 milhões de pessoas vivem directa e exclusivamente da pesca, das quais 9 milhões em África [6]. Com efeito, 23,1 por cento do total de proteínas animais na Ásia e 19 por cento em África provêm do peixe; 66 por cento do peixe consumido é pescado no alto mar; 77 por cento em águas interiores; a criação de peixes em aquacultura representa 27 por cento da produção mundial. A gestão dos stocks de peixes cujas deslocações se efectuam tanto no interior como no exterior das zonas económicas nacionais reveste-se portanto de uma importância vital para o emprego e a segurança alimentar das populações envolvidas.

A maior parte dos Estados da África Subsariana estão sobrendividados. Eles vendem os seus direitos de pesca a empresas industriais do Japão, da Europa, do Canadá. Os barcos-fábrica destas empresas devastam a riqueza pesqueira das comunidades de pescadores até ao interior das águas territoriais. Utilizando redes de malha estreita (em princípio interditas), eles operam frequentemente fora dos períodos em que a pesca é autorizada. A maior parte dos governos africanos signatários destas concessões não possui frota de guerra. Eles não têm nenhum meio para fazer respeitar este acordo. A pirataria é rainha. As aldeias costeiras morrem.

Os barcos-fábrica fazem a triagem dos peixes, transformam-nos em ultracongelados, em farinha ou em conservas, e fazem a expedição directamente para os mercados. Exemplo: a Guiné-Bissau, cuja zona económica abriga um formidável património piscatório. Hoje, para sobreviverem, os bijagós, velho povo pescador, são obrigados a comprar no mercado de Bissau – a preço muito alto – conservas de peixe dinamarquesas, canadianas, portuguesas.

Mergulhados na miséria, no desespero, desarmados face aos predadores, os pescadores arruinados vendem a baixo preço os seus barcos a passadores mafiosos ou tornam-se eles mesmos passadores improvisados. Construídos para a pesca costeira nas águas territoriais, os barcos estão geralmente inadaptados para a pesca em alto mar.

Mas há mais... Um pouco menos de mil milhões de seres humanos vivem em África. Entre 1972 e 2002, o número de africanos subalimentados, gravemente e em permanência, aumentou de 81 para 203 milhões. As razões são múltiplas. A principal deve-se à política agrícola comum (PAC) da União Europeia.

Os Estados industrializados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) pagaram aos seus agricultores e criadores de gado, em 2006, mais de 350 mil milhões de dólares a título de subvenções à produção e à exportação. A União Europeia, em particular, pratica o dumping agrícola com um cinismo permanente. Resultado: a destruição sistemática das agriculturas alimentares africanas.

Tomemos o exemplo do Sandaga, o maior mercado de bens de consumo corrente da África Ocidental. O Sandaga é um universo barulhento, colorido, cheio de odores, maravilhoso, situado no coração de Dacar. Podem aí comprar-se, variando segundo as estações, legumes e frutos portugueses, franceses, espanhóis, italianos, gregos, etc., por um preço que é um terço ou metade do dos produtos autóctones equivalentes.

Alguns quilómetros mais longe, sob um sol escaldante, um camponês wolof, com os seus filhos e a sua mulher, trabalha até 15 horas por dia... e não tem a mínima hipótese de adquirir um mínimo de subsistência decente.

Num total de cinquenta e dois países africanos, trinta e sete são países quase exclusivamente agrícolas.

Poucos seres humanos sobre a terra trabalham tanto e em condições tão difíceis como os camponeses wolof do Senegal, bambarg do Mali, mossi do Burquina-Faso ou bashi do Kivu. A política europeia do dumping agrícola destrói a sua vida e a das suas crianças.

Voltemos à Frontex. A hipocrisia dos comissários de Bruxelas é detestável: por um lado, organizam a fome em África, e por outro criminalizam os refugiados da fome.

Aminata Traoré resume a situação: «Os meios humanos, financeiros e tecnológicos que a Europa dos Vinte e Cinco gasta contra os fluxos migratórios africanos são, de facto, os de uma guerra declarada entre esta potência mundial e jovens africanos rurais e urbanos sem defesa, cujos direitos à educação, à informação económica, ao trabalho e à alimentação são ridicularizados nos seus países de origem, que se encontram submetidos ao ajustamento estrutural. Vítimas de decisões e de escolhas macroeconómicas nas quais não têm qualquer responsabilidade, são caçados, perseguidos e humilhados quando tentam encontrar uma saída na emigração. Os mortos, os feridos e os deficientes em resultado dos acontecimentos sangrentos de Ceuta e Melilla, em 2005, assim como os milhares de corpos sem vida que dão todos os meses à costa nas praias da Mauritânia, das ilhas Canárias, de Lampedusa ou de outro lado qualquer, são outros tantos náufragos da emigração forçada e criminalizada» [7].

Por JEAN ZIEGLER *

* Escritor, professor na Universidade de Genebra. Relator especial da Organização das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação. Autor de O Império da Vergonha (Asa, Porto, 2007).

(Este artigo acompanha uma investigação e reportagem cartográfica realizada por Philippe Rekacewicz com o título «Refugiados no Sul, barreiras no Norte», publicado no número de Março de 2008 do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, actualmente nas bancas.)

domingo 9 de Março de 2008

Notas

[1] Cf. El País, Madrid, 13 de Maio de 2007. A noite é a de 11 para 12 de Maio.

[2] Le Courrier, Genebra, 10 de Dezembro de 2006.

[3] No dia 28 de Setembro de 2005, soldados espanhóis mataram cinco africanos que tentavam escalar a barreira electrificada que circunda o enclave de Ceuta. Oito dias mais tarde, seis outros jovens negros foram abatidos em circunstâncias similares.

[4] Humain Rights Watch, 13 de Outubro de 2005.

[5] La Tribune de Genève, 14 de Dezembro de 2006.

[6] Este número exclui as pessoas empregadas na aquacultura – FAO, La Situation mondiale des pêches et de l’aquaculture, Roma, 2007.

[7] Aminata Traoré, intervenção no Fórum Social Mundial, Nairobi, 20 de Janeiro de 2007.

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