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Tens o direito de te manteres em silêncio

A prisão de Assange foi um ato de vingança do governo dos EUA que fere o cerne do jornalismo

por Pepe Escobar | Asia Times

Resistir.info - 13 de abril, 2019

https://www.resistir.info/varios/assange_escobar_13abr19_p.html

O dia 11 de abril de 2019 é uma data que se manterá infame nos anais dos “valores” do Ocidente e da “liberdade de expressão”. A imagem é cruel. Um jornalista algemado e arrastado à força, publicamente, do interior duma embaixada, agarrado ao livro de Gore Vidal sobre a História do Estado de Segurança Nacional dos EUA .

O mecanismo é brutal. Julian Assange, cofundador da WikiLeaks, foi detido porque os EUA assim o exigiam desde o governo britânico Tory que, por sua vez, declarou discretamente não ter pressionado o Equador a revogar o pedido de asilo de Assange.

Os EUA esquecem, como por magia, os problemas financeiros do Equador, ordenando ao FMI que proceda ao empréstimo de uns providenciais 4,2 mil milhões de dólares . Imediatamente depois disso, os diplomatas equatorianos “convidam” a Polícia Metropolitana de Londres a entrar na sua embaixada e prender o seu hóspede de longa data.

Vamos diretos ao assunto. Julian Assange não é um cidadão norte-americano, é australiano. A WikiLeaks não é uma organização de media com sede nos EUA. Se o governo dos EUA conseguir extraditar Assange, processá-lo e encarcerá-lo, legitimará o seu direito de perseguir quem quer que seja, de qualquer modo, em qualquer parte, em qualquer altura.

Podem chamar-lhe o Assassínio do Jornalismo

Arranjem-me essa password

O processo do Departamento de Justiça dos EUA contra Assange é, no mínimo, inconsistente. Na essência, tem tudo a ver com a divulgação de informações confidenciais em 2010 – 90 mil ficheiros militares sobre o Afeganistão, 400 mil ficheiros sobre o Iraque e 250 mil mensagens diplomáticas espalhadas por todo o planeta.

Assange é acusado de ajudar Chelsea Manning, o antigo analista de informações do exército dos EUA, a obter esses documentos. Mas ainda é mais sofisticado. Também é acusado de “encorajar” Manning a reunir mais informações.

Não há outra forma de interpretar isso. Isto representa, sem quaisquer entraves, uma total criminalização da prática jornalística

De momento, Assange é acusado de “conspiração para a prática de intrusão informática”. A acusação alega que Assange ajudou Manning a decifrar uma password nos computadores do Pentágono ligados à Rede de Protocolos Secretos da Internet (SIPRNet).

Registos de conversa, em março de 2010, obtidos pelo governo dos EUA, Manning fala com alguém chamado “Ox” ou, em alternativa, “associação de imprensa”. O Departamento de Justiça está convencido de que este interlocutor é Assange. Mas tem de o provar, sem sombra de dúvida.

Manning e essa pessoa, alegadamente Assange, travam “diálogos”. “Durante uma conversa, Manning disse a Assange que “depois deste carregamento, é tudo o que tenho”. A que Assange respondeu: “Segundo a minha experiência, os olhos curiosos nunca deixam de ver”‘.

Nada disto faz sentido. As empresas de media publicam rotineiramente fugas ilegais de informações confidenciais. Manning ofereceu os documentos que já havia descarregado para o New York Times e o Washington Post – e que foram recusados. Só depois disso se aproximou a WikiLeaks.

A alegação de que Assange tentou ajudar a decifrar uma password de computador tem sido avançada desde 2010. O Departamento de Justiça, no tempo de Obama, recusou-se a aceitá-la, consciente do que isso significaria em termos de possível ilegalização do jornalismo de investigação.

Não admira que as empresas de media norte-americanas, privadas de um importante furo jornalístico, tenham começado a difamar a WikiLeaks como um agente russo.

A opção nuclear

O grande Daniel Ellsberg – dos Documentos do Pentágono – já havia advertido em 2017: “Obama abriu a campanha legal contra a imprensa, perseguindo as raízes das notícias investigativas sobre segurança nacional – as fontes – e Trump vai perseguir os investigadores (e os seus patrões, os editores). Para usar uma metáfora, a acusação de Assange é um “primeiro uso” da “opção nuclear” contra a Primeira Emenda, de proteção duma imprensa livre”.

As atuais acusações do Departamento de Justiça – basicamente, o roubo de uma password de computador – são apenas a ponta da avalanche. Pelo menos por enquanto, a publicação não é um crime. Mas, se for extraditado, Assange pode ser acusado adicionalmente por conspirações extra e até violação da Lei de Espionagem de 1917.

Mesmo que ainda tenham de obter o consentimento de Londres para aumentar as acusações, não faltam advogados no Departamento de Justiça para arranjar subterfúgios e fabricar um crime a partir do nada.

Jennifer Robinson, a competente advogada de Assange, sublinhou corretamente que a detenção dele é “uma questão de liberdade de expressão” porque “trata-se das formas como os jornalistas podem comunicar com as suas fontes”. O inestimável Ray McGovern, que sabe uma ou duas coisas sobre a comunidade de informações dos EUA, evocou um requiem pelo quarto estado .

O contexto total da detenção de Assange surge em plena luz quando examinado na sequência de Chelsea Manning ter passado um mês em prisão solitária numa cadeia da Virgínia por se recusar a denunciar Assange perante um grande júri. Não restam dúvidas de que a tática do Departamento da Justiça é fazer Manning ceder através de quaisquer meios disponíveis.

Esta é a equipa legal de Manning : “A acusação contra Julian Assange, hoje revelada, foi obtida um ano antes de Chelsea ter comparecido perante o grande júri e ter-se recusado a prestar testemunho. O facto de esta acusação já existir há mais de um ano confirma o que a equipa legal de Chelsea e a própria Chelsea têm dito desde que ela recebeu a primeira intimação para comparecer perante um Grande Júri federal no distrito leste de Virgínia – ou seja, que obrigando Chelsea a depor seria uma duplicação da prova já na posse do grande júri e não seria necessária para os advogados dos EUA obterem uma acusação de Assange”.

O Estado Profundo ataca

A bola agora está do lado de um tribunal britânico. Assange certamente vai permanecer na prisão durante uns meses, sem fiança, enquanto decorre o dossiê dos EUA para a extradição. Provavelmente, o Departamento da Justiça tem conversado com Londres sobre como um juiz “correto” pode proferir o resultado desejado.

Assange limitou-se a publicar. Não revelou absolutamente nada. O New York Times, tal como o Guardian, também publicou o que Manning descobriu. Collateral Murder , entre dezenas de milhares de peças de provas, devia estar sempre na primeira linha de todo o debate – trata-se dos crimes de guerra praticados no Afeganistão e no Iraque.

Portanto, não admira que o Departamento de Estado dos EUA não perdoe a Manning e a Assange, mesmo que o New York Times, em mais uma ocasião de descarados critérios duplos, possa escapar. O drama necessitará por fim de ser encerrado no distrito leste de Virgínia, porque os aparelhos de segurança nacional e de informações há anos que trabalham neste guião a tempo inteiro.

Enquanto diretor da CIA, Mike Pompeo foi direto ao assunto: “Chegou a altura de chamar à WikiLeaks o que ela é na realidade: um serviço de informações não estatal e hostil, incitado com frequência por atores estatais como a Rússia”.

O que representa uma verdadeira declaração de guerra: sublinha que a WikiLeaks é perigosa só por ter praticado jornalismo de investigação.

As atuais acusações do Departamento de Justiça nada têm a ver com o anunciado Russiagate. Mas espera-se que o subsequente futebol político seja bombástico.

O campo de Trump, neste momento, está dividido. Assange ou é um herói popular que combate o pântano do Estado Profundo ou um modesto fantoche do Kremlim. Simultaneamente, Joe Manchin, um senador democrata sulista, tal como o proprietário de uma plantação do século XIX regozija-se por Assange ser agora “propriedade nossa”. A estratégia dos Democratas será usar Assange para chegar a Trump.

E há a União Europeia, da qual mais tarde ou mais cedo a Grã-Bretanha poderá já não fazer parte. A União Europeia estará vigilante quanto à extradição de Assange para a “América de Trump”, enquanto o Estado Profundo não garantir que todos os jornalistas, estejam onde estiverem, têm o direito de se manterem em silêncio.

Tradução de Margarida Ferreira

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Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..

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https://www.resistir.info/varios/assange_escobar_13abr19_p.html


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