O silêncio: a pior resposta do Estado português
Seria de bom-tom que os portugueses soubessem o que têm a dizer as principais autoridades do Estado sobre as atrocidades que estão a ser cometidas na Bolívia e no Chile. O silêncio é a mais indigna das atitudes.
por José Goulão
AbrilAbril - 21 de novembro, 2019
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O chefe de Estado e o governo da República Portuguesa estão em silêncio perante as atrocidades contra a democracia e os direitos humanos praticadas na Bolívia e no Chile. Em circunstâncias onde o poder neoliberal se vê forçado a mostrar a sua verdadeira face ditatorial para evitar a aplicação plena da democracia, com todas as suas consequências, as principais figuras do Estado português escolhem o silêncio, talvez a maneira mais indigna de se identificarem com a crueldade do sistema – ao mesmo tempo que ignoram a Constituição da República.
Na Bolívia, depois do golpe com todos os velhos ingredientes político-militares, a repressão fascista com matizes racistas avança através do país e não poupa sequer os senadores eleitos que constituem a maioria absoluta do Senado. No Chile, a repressão do pinochetista Sebastián Piñera castiga cruelmente o levantamento popular que exige uma Constituição democrática e uma vida digna. A tudo isto as principais figuras do Estado português dizem nada. Respondem com um longo e profundo silêncio como se não lhes coubesse ter opinião própria e fossem obrigadas a respeitar o não menos profundo e longo silêncio da União Europeia. Tentemos decifrar o enigma – que tem, certamente, um eminente significado político.
Todos sabemos o quão loquazes são, por exemplo, o chefe de Estado e o ministro dos Negócios Estrangeiros. Essa veia comunicadora que lhes permite ter as palavras certas nos momentos certos para a comunicação social certa é de tal maneira expressiva e expectável que nos permite dispor de elementos para compreender os conteúdos dos seus silêncios sem uma exagerada margem de erro.
Na Bolívia deu-se um golpe de Estado – ainda há quem tenha pudor em qualificar assim o que está a acontecer – que derrubou e exilou o presidente eleito com mais de 47% dos votos e o fez substituir por uma senadora de uma força minoritária no Senado – que teve de usurpar dois cargos de uma assentada: o de presidente do Senado e o de chefe do Estado.
Na sequência do processo, que atropela as mais elementares normas democráticas porque não foi apresentada, até ao momento, qualquer prova de viciação dos resultados eleitorais, as forças militares e policiais entregam-se a orgias de violência, especialmente contra as camadas mais desfavorecidas, as comunidades indígenas dos campos bolivianos, precisamente as que formaram a base social maioritária que sustentou as administrações progressistas, soberanistas e anti-neoliberais de Evo Morales.
Uma informação sobre o teor fascista e selectivo da vaga repressiva, e que talvez possa interessar ao aparentemente desinformado ministro Santos Silva, decorre do conteúdo do decreto emanado pela presidente usurpadora, Jeanine Añez, e que no seu artigo terceiro estipula que «o pessoal das Forças Armadas que participe nas operações de restauração da ordem e de estabilidade política ficará isento de responsabilidade criminal quando, no cumprimento das suas funções constitucionais, actuarem em legítima defesa ou estado de necessidade».
Uma medida de encorajamento ao tiro livre que tem a sua equivalente jurídica – os golpistas bolivianos informaram-se da prática de lawfare com quem de direito, por exemplo a corte de Bolsonaro – na proposta da presidência para constituir «um aparelho especial» da Procuradoria que permita prender os senadores do Movimento para o Socialismo (MAS) que promovam «a subversão e a sublevação», ou seja, para meter na cadeia, no limite, a maioria absoluta do Senado.
Estas pinceladas abreviadas sobre a situação na Bolívia permitem deduzir que haveria matéria capaz de puxar pela palavra fácil do chefe de Estado, do ministro dos Negócios Estrangeiros, do próprio primeiro-ministro.
Correspondência no Chile
As principais figuras do Estado português permanecem igualmente silenciosas sobre o que se passa no Chile.
E o que se passa no Chile é um imenso e pacífico levantamento popular, torpedeado por fenómenos de banditismo accionados para tentar retirar legitimidade à revolta e servir de manobra de diversão para a comunicação mainstream, contra o sistema de ditadura económica herdado do regime terrorista de Pinochet.
Sebastián Piñera, presidente em exercício e admirador confesso de Pinochet, tem recorrido à violência repressiva e ao manobrismo político para se manter, comportamento em que arrastou grande parte da oposição num processo que visa estabelecer uma «nova» Constituição em que o essencial do regime continue inalterado.
Obviamente, também no Chile os mecanismos democráticos continuam a sofrer maus-tratos. Talvez interesse ao ministro Santos Silva conhecer a sádica tendência criminosa de Piñera manifestada através do aparelho repressivo: usa munições de borracha, sim, mas disparadas contra os olhos dos manifestantes. Os casos de cegueira e outros problemas de visão daí decorrentes elevam-se a cerca de 230. Muito compatível com o respeito pelos direitos humanos.
Mutismo quase absoluto
Apesar destas circunstâncias muito graves, a Presidência da República e o governo de Portugal entendem que não há razões para se pronunciarem.
É verdade que a União Europeia também está em silêncio. Será por isso que Lisboa também nada diz?
No entanto, a Constituição Portuguesa tem particularidades explícitas em matéria de soberania, respeito pelos direitos dos povos e os direitos humanos que não se encontram em outras leis fundamentais dos parceiros europeus.
Nada exigiria que o silêncio comunitário impusesse o silêncio lusitano; pelo contrário, a soberania portuguesa tal como é estipulada na Constituição exige que as autoridades do Estado tomem posições por si próprias, sem estarem à espera dos «aliados».
Mas não. Ao que parece continua a prevalecer o complexo de bom aluno.
É verdade que foi dita uma coisa sobre a Bolívia: os portugueses «devem evitar qualquer deslocação» a esse país, aconselhou o portal do Ministério dos Negócios Estrangeiros no dia 11 de Novembro; e, no dia 14, uma fonte da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros fez notar à agência Lusa que é «muito raro» o Ministério fazer recomendações deste tipo .
Portanto, na óptica ministerial o caso é grave; transformou-se até numa situação atípica de risco elevado. Mais uma razão para assumir uma posição política capaz de ajudar a população a compreender a situação.
Então, das duas uma: ou o silêncio é cúmplice com as atrocidades que estão a passar-se; ou o governo só tem margem de manobra, em termos de vínculos internacionais, para saudar a reimplantação do fascismo neoliberal – preferindo, desta feita, defender-se com o mutismo.
Talvez porque em situação anterior optou por pronunciar-se e ficou com um trambolho político nas mãos chamado Juan Guaidó. O Estado português, a exemplo de várias potências da União Europeia, mas não a comunidade em si, identificou-se com o golpe na Venezuela que tinha como objectivo instalar organizações e figuras fascistas no governo. E fê-lo pondo em risco a situação de centenas e centenas de milhares de portugueses que vivem na Venezuela, ao contrário do que aconteceu agora com escassas dezenas que vivem na Bolívia. Que merecem todo o respeito, tornando procedente a advertência governamental. Uma atenção que, por maioria de razão, deveria ter estado sempre no espírito do governo em relação à Venezuela.
Deduz-se que o governo de Lisboa tem consciência de se ter saído muito mal na Venezuela, pelo que tentará agora evitar catástrofe política idêntica. Tal como em Caracas, identificar-se-á com a usurpação do poder em La Paz mas acha melhor não dar sinal de si, fingir-se de morto, a não ser quando puder fazê-lo com a cobertura dos «nossos parceiros e aliados».
Um pau de dois bicos
O chefe de Estado, por seu lado, poderia dizer de sua justiça sobre os acontecimentos na Bolívia e no Chile, porque teve até um contexto internacional em que tal viria a propósito: a visita oficial a Itália.
Mas não; preferiu glosar o mote da NATO como entidade «defensiva» e amiga «dos desfavorecidos», como gosta de dizer o seu anfitrião de ocasião, o presidente italiano. Seguir nesse rumo até à Bolívia, porém, seria traiçoeiro: ao elogiar a NATO, Marcelo Rebelo de Sousa fez a apologia da organização que formou operacionalmente os militares decisivos para o golpe em La Paz e agora têm mãos livres para espalhar o terror fascista.
Abordar a situação na Bolívia neste contexto deixaria o presidente mal na fotografia, mesmo sendo reconhecida a sua habilidade para dar a volta a casos intrincados em termos de comunicação. O silêncio revelou algum pudor mas agride os princípios em que assenta a Constituição da República em termos de respeito pela democracia e pela liberdade dos povos.
Tudo menos o silêncio
Perante o que está a acontecer na Bolívia e no Chile, os democratas sintonizados com a Constituição da República, os princípios democráticos, a soberania e o respeito pelas direitos humanos só podem assumir uma posição: denunciar e condenar o golpe, a repressão e o manobrismo utilizado para iludir os resultados de eleições legítimas e as reivindicações populares.
Não existem dúvidas sobre quem são os agressores e os agredidos, os golpistas e as vítimas, de que lado está a legitimidade e como se impõe a trafulhice criminosa.
Mas também na Venezuela o cenário é muito claro, como aliás o fascismo sob o poder na Ucrânia, e o governo não deixou de dizer de sua justiça – ignorando os princípios democráticos.
Ao assumir agora o silêncio sobre situações dramáticas que vitimam populações carenciadas, o governo da República Portuguesa parece ter mudado de táctica na sua estratégia de cumplicidade com casos de usurpação da democracia.
Na verdade, o que está em causa, tanto na Bolívia, como no Chile, como na Venezuela é a alternativa entre a democracia com todas as suas consequências e a ditadura neoliberal.
Não é difícil perceber de que lado estão o chefe de Estado e o governo da República. O silêncio é apenas uma defesa tornada recomendável perante o indisfarçável complexo de Guaidó.
Ainda assim seria de bom-tom que os portugueses soubessem o que têm a dizer realmente as principais autoridades do Estado sobre as atrocidades à democracia e os direitos humanos que, nos dias que correm, estão a ser cometidas na Bolívia e no Chile. Porque o silêncio é a mais indigna das atitudes.
Notas:
No portal do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) pode ler-se: «Dada a situação de grande instabilidade e distúrbio social que se verifica neste momento na Bolívia, aconselha-se os cidadão nacionais a evitarem qualquer deslocação àquele país». Quanto às causas da situação, o MNE português aponta serem «consequência de movimentos indígenas na Bolívia que promovem manifestações que podem degenerar em situações de grande violência».
José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.
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