Bem a tempo de esclarecer o que está por trás das últimas sanções de Washington, o Ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif, em um discurso proferido na reunião anual do Astana Club , em Nur-Sultan, Cazaquistão, fez um cáustico relato das relações Irã-EUA para uma plateia seleta de diplomatas de primeiro escalão, ex-presidentes e analistas.
Zarif foi o principal orador em um painel intitulado "O Novo Conceito de Desarmamento Nuclear". Em uma programação frenética, ele entrava e saía da mesa-redonda, alternando sua fala com uma conversa privada com o Primeiro Presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev.
Durante o painel, o moderador Jonathan Granoff, Presidente do Instituto para a Segurança Global, conseguiu evitar que as perguntas de um analista do Pentágono dirigidas a Zafir degenerassem em briga e gritaria.
Em ocasião anterior, tive uma longa discussão com Syed Rasoul Mousavi, ministro para a Ásia Ocidental do Ministério das Relações Exteriores iraniano, sobre uma miríade de detalhes relativos à postura iraniana em questões indo do Golfo Pérsico ao Afeganistão. Estive presente na mesa-redonda à la James Bond do Astana Club, na condição de moderador de dois outros painéis, um sobre uma Eurásia multipolar e outro sobre a Ásia Central (que tratarei artigos subsequentes).
A intervenção de Zarif foi extremamente enérgica. Ele ressaltou que o Irã "cumpriu todos os acordos sem receber nada em troca"; que "nosso povo acredita que não ganhamos nada com nossa participação" no Plano de Ação Conjunto Global; que a inflação está fora de controle; que o valor do rial caiu em 70% "em consequência das medidas coercitivas - não de sanções, porque elas são ilegais".
Ele falou sem anotações, mostrando mestria absoluta em tudo o que se refere ao emaranhado pântano das relações Irã-EUA. A fala acabou sendo uma verdadeira bomba. Aqui estão seus pontos principais.
A história contada por Zarif começa nas negociações de 1968 do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, com a postura adotada pelo "Movimento Não-Alinhado de só aceitar os termos do tratado se, em data futura – fixada para 2020 – houvesse desarmamento nuclear". Dos 180 países não-alinhados, 90 co-patrocinaram a extensão indefinida do Tratado de Não-Proliferação".
Passando ao estado de coisas vigente no presente momento, ele mencionou que os Estados Unidos e a França estão "usando as armas nucleares como meio de dissuasão, o que é desastroso para o mundo como um todo". O Irã, por outro lado, é um país que acredita que nenhum país deve possuir armas nucleares", devido a "cálculos estratégicos calcados em nossas crenças religiosas".
Zarif ressaltou que “de 2003 a 2012, o Irã sofreu as sanções mais severas que as Nações Unidas já impuseram a um país não-detentor de armas nucleares. As sanções impostas ao Irã de 2009 a 2012 foram mais pesadas que as sanções impostas à Coreia do Norte, que possuía armas nucleares".
Ao discutir as negociações para o Plano de Ação Conjunto Global, que tiveram início em 2012, Zarif observou que o Irã partiu da premissa de que "devemos ser capazes de desenvolver tanta energia nuclear quanto quisermos", ao passo que os Estados Unidos partiram da premissa de que o Irã jamais deveria possuir centrífugas". Essa era a opção "enriquecimento zero".
Zarif, em público, sempre volta à afirmação de que "em um jogo de soma zero, todos saem perdendo". Ele admite que o Plano de Ação Conjunto Global é um "acordo difícil. Não é um acordo perfeito. Ele tem elementos que me desagradam e tem elementos que desagradam aos Estados Unidos". No final das contas, "chegamos a uma aparência de equilíbrio".
Zarif propôs um paralelo bastante elucidativo entre o Tratado de Não-Proliferação e o Plano de Ação Conjunto Global: "O TNP baseava-se em três pilares: não-proliferação, desarmamento e acesso a tecnologia nuclear para fins pacíficos. Em suma, a parte que tratava de desarmamento está praticamente morta, a não-proliferação mal consegue sobreviver e o uso pacífico da energia nuclear está seriamente ameaçado", observou ele.
Por outro lado, "o Plano de Ação Conjunto Global baseava-se em dois pilares: normalização econômica do Irã, refletida na resolução 2231 do Conselho de Segurança e - ao mesmo tempo - a observância, por parte do Irã, de certos limites relativos ao desenvolvimento nuclear".
Zarif enfatizou um ponto da maior importância: que esses limites não estão sujeitos a prazos de vigência, como quer Washington: "Não vamos nos comprometer a não produzir armas nucleares para sempre".
A desconfiança como base
Então veio a fatídica decisão de Trump de maio de 2018: "Quando Trump decidiu sair do Plano de Ação Conjunto Global, acionamos o mecanismo de resolução de conflitos". Referindo-se à narrativa bastante difundida que descreve a ele e a John Kerry como obcecados por sacrificar tudo para chegar a um acordo, Zarif disse: "Negociamos esse acordo com base na desconfiança. É por isso que temos um mecanismo de resolução de conflitos".
Entretanto, os compromissos da União Europeia e os compromissos dos Estados Unidos são independentes. Infelizmente, a UE pensava que poderia procrastinar. Agora, temos uma situação em que o Irã não recebe qualquer benefício, em que ninguém está cumprindo sua parte do acordo, apenas a Rússia e a China estão cumprindo parcialmente o que prometeram, porque os Estados Unidos chegam mesmo a evitar que os dois países cumpram seus compromissos de forma integral. A França propôs, no ano passado, pagar 15 bilhões de dólares ao Irã pelo petróleo que pudéssemos fornecer a eles de agosto a dezembro. Os Estados Unidos evitou que a União Europeia sequer examinasse a questão".
O ponto central, então, é que "outros membros do Plano de Ação Conjunto Global não estão cumprindo de fato seus compromissos". A solução "é muito simples. Retornem à soma não-zero. Voltem a cumprir seus compromissos. O Irã concordou que iria negociar a partir do Dia Um".
Zarif previu que "se os europeus ainda pensam que podem nos levar ao Conselho de Segurança e acionar resoluções eles estão totalmente enganados. Porque isso faria sentido se tivesse havido uma violação do Plano de Ação Conjunto Global. Não houve qualquer violação do Plano de Ação Conjunto Global. Tomamos essas medidas em reação ao não-cumprimento por parte dos europeus e dos americanos. Isso foi uma das poucas vitórias diplomáticas das últimas muitas décadas. Precisamos apenas assegurar a existência dos dois pilares: que exista uma aparência de equilíbrio".
Isso o levou a um possível raio de luz em meio a tanta treva e tanto desalento. "Se o que foi prometido ao Irã em termos de normalização econômica for cumprido, mesmo que apenas parcialmente, estaremos prontos para mostrar boa fé e retornar à implementação do Plano de Ação Conjunto Global. Caso contrário, nós, infelizmente, continuaremos neste caminho, que é o caminho da soma-zero, um caminho que leva a perdas para todos, mas que não teremos outra escolha se não a de adotar.
A hora do HOPE
Zarif identifica três grandes problemas em nossa atual insanidade geopolítica: uma "mentalidade soma-zero nas relações internacionais que não funciona mais ", o ganhar excluindo os outros ("Temos que estabelecer diálogo, temos que estabelecer cooperação"); e "a crença de que quanto mais armas comprarmos, mais segurança iremos trazer para nossos povos".
Ele defende vigorosamente a possibilidade de implementar "um novo paradigma de cooperação em nossa região", referindo-se aos esforços de Nazarbayev: um modelo para a segurança verdadeiramente eurasiano. Mas isso, explicou Zarif, "exige uma política de boa-vizinhança. Temos que ver nossos vizinhos como amigos, parceiros, como pessoas sem as quais não poderemos ter segurança. Não poderemos ter segurança no Irã se o Afeganistão estiver conturbado. Não poderemos ter segurança no Irã se o Iraque estiver conturbado. Não poderemos ter segurança no Irã se a Síria estiver conturbada. Não poderemos ter segurança no Cazaquistão se a região do Golfo Pérsico estiver conturbada.
Ele observou que, com base em linha de pensamento semelhante, o Presidente Rouhani, na Assembléia Geral das Nações Unidas deste ano, propôs um novo enfoque à segurança da região do Golfo Pérsico, denominada HOPE, acrônimo para Hormuz Peace Endeavor (Iniciativa de Paz de Hormuz)".
A HOPE, explicou Zarif, "baseia-se no direito internacional, no respeito à integridade territorial e na aceitação de uma série de princípios e de medidas de construção de confiança; e nós podemos tomá-lo como base da mesma forma com que você [dirigindo-se a Nazarbayev] o tomou como base na Eurásia e na Ásia Central. Temos orgulho de fazer parte da União Econômica Eurasiana, somos vizinhos no Mar Cáspio, concluímos, no ano passado, sob sua liderança, a convenção legal do Mar Cáspio, e esses são os desdobramentos importantes que ocorreram no norte do Irã. Temos que reproduzi-los na região sul do Irã, com a mesma convicção de que não podemos excluir nossos vizinhos. Ou estamos condenados ou temos o privilégio de ter que conviver com eles até o fim de nossas vidas. Somos unidos pela geografia. Somos unidos pela tradição, pela cultura e pela história". Para termos sucesso, "temos que mudar nossa mentalidade".
A era da hegemonia chegou ao fim
Tudo se resume à principal razão pela qual a política externa dos Estados Unidos não consegue parar de demonizar o Irã. Zarif não tem a mínima dúvida: "Ainda há um embargo de armamentos contra o Irã a caminho. Mas temos a capacidade de abater drones norte-americanos que espionam nosso território. Estamos apenas tentando ser independentes. Nunca dissemos que vamos aniquilar Israel. Alguém disse que Israel será aniquilado. Nunca dissemos que seria por nós".
Foi Benjamin Netanyahu, disse Zarif, que se apossou dessa ameaça, dizendo: "Eu fui o único contrário ao Plano de Ação Conjunto Global". Netanyahu "conseguiu destruir o o Plano de Ação Conjunto Global. Qual o problema? O problema é que decidimos não ceder. Esse foi nosso único crime. Fizemos uma revolução para derrubar um governo apoiado pelos Estados Unidos, imposto a nosso país pelos Estados Unidos, um governo que torturava nosso povo com a ajuda dos Estados Unidos, e que nunca foi alvo de nenhuma condenação de direitos humanos. E agora as pessoas se preocupam porque alguém diz "Morte à América"? Nós dizemos morte a essas políticas, porque elas nada nos trouxeram além dessa farsa. O que elas nos trouxeram? Se alguém chegasse nos Estados Unidos, derrubasse seu presidente, impusesse um ditador que mata seu povo, você não diria morte àquele país?"
Como não poderia deixar de ser, Zarif teve que evocar Mike Pompeo: "Hoje o Secretário de Estado dos Estados Unidos diz publicamente que se o Irã quiser comer, terá que obedecer aos Estados Unidos. Isso é um crime de guerra. A fome é um crime contra a humanidade. Isso é uma manchete em novilíngua. Se o Irã quiser que seu povo tenha o que comer, terá que obedecer a ele. E o que ele diz é "Morte a todo o povo iraniano".
A essas alturas, o clima na imensa mesa-redonda estava elétrico. Podia-se ouvir um alfinete cair, ou melhor, as micro explosões sônicas vindas do alto da cúpula rasa, o sistema projetado pelo famosíssimo arquiteto Norman Foster, que aquece o vidro de alto desempenho para derreter a neve.
Zarif pôs para quebrar: "O que fizemos aos Estados Unidos? O que fizemos a Israel? Nós fizemos com que seus povos passassem fome? Quem está fazendo nosso povo morrer de fome? Digam-me. Quem está violando o acordo nuclear? Porque eles não gostavam de Obama? Isso é razão para destruir o mundo, só porque você não gosta de um presidente?"
O único crime do Irã, disse ele, "foi termos decidido mandar em nossa própria casa. E desse crime, sentimos orgulho. E sempre sentiremos. Porque temos uma civilização de sete milênios. Tivemos um império que dominou o mundo, e a vida desse império foi, provavelmente, sete vezes mais longa que toda a vida dos Estados Unidos. Então, com todo o devido respeito ao império dos Estados Unidos - eu devo minha educação aos Estados Unidos - não acreditamos que o império norte-americano vá durar. A era dos impérios chegou ao fim. A era da hegemonia há muito terminou. Agora, temos que viver em um mundo sem hegemonia - hegemonia regional ou hegemonia global".
Tradução de Patricia Zimbres
Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..
https://www.brasil247.com/blog/o-unico-crime-do-ira-e-que-decidimos-nao-ceder