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A guerra na República Democrática do Congo chegará ao fim

Esta carta semanal busca uma compreensão mais profunda do conflito em curso no Congo hoje, e apresenta uma análise do roubo de recursos e dos processos de imperialismo e colonialismo que há muito assolam esta parte de África, incluindo a luta pelas matérias-primas essenciais na era eletrônica.

por Vijay Prashad (pt-BR)

thetricontinental.org - 4 de julho, 2024

https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/a-guerra-na-republica-democratica-do-congo-chegara-ao-fim-carta-semanal-27-2024/

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Monsembula Nzaaba Richard ou “Monzari” (RDC), Le peuple a gagné [O povo ganhou], 2024. Fotografia de referência: Congopresse via Wikimedia.

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 20 de junho, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) condenou os ataques contra civis na República Democrática do Congo (RDC) “nos termos mais fortes”. Em sua declaração à imprensa, o Conselho de Segurança da ONU escreveu que esses ataques – tanto pelas forças armadas da RDC quanto por vários grupos rebeldes apoiados por países vizinhos, como Ruanda e Uganda – “estão piorando a segurança e a estabilidade – já frágeis – na República Democrática do Congo e na região e esgarçando ainda mais a atual situação humanitária”. Cinco dias depois, em 25 de junho, a força de paz das Nações Unidas no leste da RDC se retirou, de acordo com uma resolução do Conselho de Segurança da ONU de dezembro de 2023, que se comprometeu a fornecer segurança para as eleições gerais da RDC em 20 de dezembro e a começar a retirar gradualmente a força de manutenção de paz do país.

Enquanto isso, os rebeldes do M23, apoiados por Ruanda, continuam a avançar continuamente para as províncias do leste da RDC, onde há um conflito ativo desde o genocídio de Ruanda em 1994. Ao longo de três décadas, raramente houve uma paz duradoura, apesar de vários acordos de paz (principalmente o Acordo de Lusaka de 1999, o Acordo de Pretória de 2002, o Acordo de Luanda e em 2003 o Acordo de Sun City). O número total de mortos não é registrado adequadamente, mas, segundo todas as estimativas, mais de 6 milhões de pessoas foram mortas. A irracionalidade da violência no leste da RDC levou a um sentimento de desesperança quanto à possibilidade de acabar permanentemente com a carnificina. Isso é acompanhado por uma ignorância em relação às questões políticas desse conflito e de suas raízes profundas, tanto na história colonial da região dos Grandes Lagos quanto na luta por matérias-primas que são essenciais para a era eletrônica.

Para dar sentido a esse conflito, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social fez uma parceria com o Centre Culturel Andrée Blouin, o Centre for Research on the Congo-Kinshasa (Cereck) e o Likambo Ya Mabele [Movimento de soberania pela terra] para produzir um novo e poderoso dossiê, Os congoleses lutam por sua própria riqueza. Há oito anos, reunimos uma equipe para estudar a guerra em andamento, com ênfase especial no imperialismo e no roubo de recursos que assolou essa parte da África no século passado. A colonização do Congo veio junto com o roubo da mão de obra, da borracha, do marfim e dos minerais da região nos anos 1800, sob o domínio do rei Leopoldo II da Bélgica. Atualmente, as corporações multinacionais continuam esse legado criminoso roubando minerais e metais que são essenciais para a crescente economia digital e “verde”. Essa riqueza de recursos é o que atrai a guerra para o país. Como mostramos no dossiê, a RDC é um dos países mais ricos do mundo, e suas reservas minerais inexploradas valem, sozinhas, 24 trilhões de dólares. No entanto, ao mesmo tempo, 74,6% da população vive com menos de 2,15 dólares por dia, sendo que um em cada seis congoleses vive em extrema pobreza. O que explica essa pobreza em um país com tanta riqueza?

Com base em pesquisas de arquivos e entrevistas com mineiros, o dossiê mostra que o principal problema é que o povo congolês não controla sua riqueza. Eles têm lutado contra o roubo desenfreado desde a formação do Mouvement National Congolais [Movimento Nacional Congolês], em 1958, que buscava a libertação da Bélgica e o controle sobre os extensos recursos naturais do Congo, mas também antes, por meio da resistência da classe trabalhadora entre as décadas de 1930 e 1950. Essa luta não tem sido fácil nem bem-sucedida: a RDC continua sendo dominada pela exploração e opressão nas mãos de uma poderosa oligarquia congolesa e de corporações multinacionais que operam com a permissão da primeira. Além disso, o país sofre, por um lado, com as guerras de agressão de seus vizinhos Ruanda e Uganda, auxiliados por grupos de milícias por procuração, e, por outro, com a interferência de instituições multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que impõem políticas neoliberais como requisito para receber empréstimos.

Poucos dias antes das eleições da RDC em dezembro de 2023, o FMI forneceu 202,1 milhões de dólares porque se sentia confiante de que quem quer que ganhasse a eleição preservaria “os objetivos do programa, incluindo a limitação de desvios macroeconômicos e a continuação da implementação da agenda de reformas econômicas”. Em outras palavras, o FMI acreditava que poderia continuar privatizando a eletricidade e elaborar códigos de mineração que foram excessivamente “generosos” com as corporações multinacionais – independentemente dos resultados das eleições (a palavra “generoso” é do próprio chefe da missão do FMI para a RDC, Norbert Toé). Uma ninharia do FMI é capaz de abafar o pedido de soberania sobre os recursos consideráveis da RDC.

A região dos Grandes Lagos da África tem sido impedida, em várias frentes, de resolver os problemas que a afligem: estruturas neocoloniais arraigadas impediram a construção de uma infraestrutura social bem financiada; o extraordinário poder das empresas de mineração, até recentemente de origem australiana, europeia e estadunidense, inviabilizou os esforços para alcançar a soberania dos recursos; as potências imperiais usaram seu dinheiro e poder militar para subordinar as classes dominantes locais aos interesses estrangeiros; a fraqueza dessas classes dominantes locais e sua incapacidade de forjar um projeto patriótico forte, como os almejados por Louis Rwagasore, do Burundi, e Patrice Lumumba, da República Democrática do Congo (ambos assassinados pelas potências imperiais em 1961), prejudicaram o progresso regional; há um desejo urgente de criar um projeto que reúna as pessoas em torno dos interesses comuns da maioria, em vez de cair nas divisões étnicas (há 400 grupos étnicos diferentes somente na RDC) e no tribalismo que separam as comunidades e enfraquecem sua capacidade de lutar por seu destino.

Esse projeto prosperou após a independência da RDC em 1960. Em 1966, o governo aprovou uma lei que lhe permitia controlar todas as terras desocupadas e seus respectivos minerais. Porém, em 1973, a Lei Geral de Propriedade da RDC permitiu que os funcionários do governo expropriassem terras à vontade. O estabelecimento de um projeto que use recursos materiais para a melhoria de todos os povos, em vez de alimentar divisões étnicas, deve se tornar novamente o foco central. No entanto, a ideia de cidadania na região continua emaranhada com ideias de etnia que provocaram conflitos por conta das divisões étnicas. Foram essas ideias que levaram ao genocídio em Ruanda em 1994. A ausência de um projeto comum permitiu que os inimigos das massas se infiltrassem nas rachaduras e explorassem as fraquezas do povo.

Uma sopa de letrinhas de frentes políticas e militares – como ADFL, FDLR, RCD e MLC – catapultou a região para guerras por recursos. As reservas de coltan, cobre e ouro, bem como o controle das estradas fronteiriças entre a RDC e Uganda, que ligam o leste da RDC ao porto queniano de Mombasa, enriqueceram esses grupos armados e algumas pessoas poderosas. A guerra não era mais apenas sobre o consenso pós-colonial, mas também sobre a riqueza que poderia ser desviada para beneficiar uma classe capitalista internacional que vive longe dos Grandes Lagos da África.

É fascinante notar que foi somente quando o capital chinês começou a contestar as empresas domiciliadas na Austrália, na Europa e na América do Norte que a questão dos direitos trabalhistas na RDC se tornou uma grande preocupação para a “comunidade internacional”. As organizações de direitos humanos que antes faziam vista grossa para a exploração começaram a se interessar muito por essas questões, cunhando novas expressões, como “coltan de sangue” e “ouro de sangue” para se referir às commodities primárias extraídas pelas empresas chinesas e russas que se estabeleceram em vários países africanos. No entanto, como nosso dossiê e a edição da revista Wenhua Zongheng (As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda) mostram é que a política e os interesses chineses contrastam fortemente com a agenda orientada pelo FMI para a RDC, já que a China busca “manter o processamento de minerais e metais na RDC e construir uma base industrial para o país”. Além disso, as empresas chinesas produzem bens que geralmente são feitos para os consumidores do Norte Global, uma ironia que é convenientemente ignorada na narrativa ocidental. A comunidade internacional alega estar preocupada com as violações dos direitos humanos, mas não tem interesse nas esperanças e nos sonhos do povo africano; em vez disso, ela é movida pelos interesses do Norte Global e pela Nova Guerra Fria liderada pelos EUA.

Artistas jovens e talentosos passaram semanas no estúdio criando as ilustrações apresentadas no dossiê e nesta carta semanal, resultado de uma colaboração entre nosso departamento de arte e o coletivo de artistas do Centre Culturel Andrée Blouin em Kinshasa. Leia nossa quarto Boletim de Arte para saber mais sobre esse processo criativo e assista ao vídeo sobre Artists for Congolese Sovereignty [Artistas pela soberania do Congo], feito por André Ndambi, que apresenta estes trabalhos.

Nosso dossiê termina com as palavras de jovens congoleses que anseiam por terra, por uma cultura patriótica e por pensamento crítico. Esses jovens nasceram na guerra, foram criados na guerra e vivem na guerra. E, no entanto, sabem que a RDC tem riqueza suficiente para permitir que imaginem um mundo sem guerra, um mundo de paz e desenvolvimento social que supere as divisões estreitas e o derramamento de sangue interminável.

Cordialmente,

Vijay.

Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

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Veja também:
O Assassinato de Patrice Lumumba - documentário - 2000


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