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Reportagem em Douma deita por terra justificativa de ataque aéreo na Síria

Relato traz explicação alternativa e altamente plausível para o que aconteceu na cidade de Douma - uma hipótese que precisa ser investigada

por Jonathan Cook | Common Dreams

Carta Maior - 20 de abril, 2018

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Poder-e-ContraPoder/Reportagem-de-Robert-Fisk-em-Douma-derruba-justificativa-de-ataque-aereo-na-Siria/55/39949

Parece que muitos que apoiaram os ataques aéreos do fim de semana na Síria estão ignorando a importância da reportagem de Robert Fisk em Douma, o local de um suposto ataque com armas químicas na semana passada.

Fisk foi o primeiro jornalista ocidental a chegar à área e falar com os locais. Um deles é um experiente médico da clínica que tratou as vítimas de, segundo um vídeo, supostas armas químicas que teriam sido usadas pelo governo sírio. O incidente foi usado como justificativa para os ataques aéreos lançados em conjunto pelos EUA, Reino Unido e França.

O médico diz que o vídeo é real, mas não mostra os efeitos de um ataque com armas químicas. Mostra outra coisa. Eis o que o médico diz segundo a reportagem:

“Eu estava com minha família no porão de minha casa a trezentos metros daqui, à noite, mas todos os médicos sabem o que aconteceu. Houve extenso bombardeio [feito pelas forças do governo] e sempre havia aviões sobre Douma à noite – mas naquela noite, havia vento e enormes nuvens de poeira começaram a entrar nos porões e caves onde as pessoas viviam. As pessoas começaram a chegar aqui sofrendo de hipóxia, falta de oxigênio. Então alguém na porta, um "Capacete Branco", gritou "Gás!". E começou o pânico. As pessoas começaram a se jogar água umas nas outras. Sim, o vídeo foi filmado aqui, é genuíno, mas o que se vê são pessoas sofrendo de hipóxia – não envenenamento por gás”.

Nas minhas páginas de mídia social há muitos militantes de poltrona negando furiosamente a importância deste relato, alegando que o médico inventou a história ou que Fisk é um porta-voz do regime de Assad, ou quem sabe ambos.

Essas teorias não serão levadas a sério por razões óbvias – mesmo que o testemunho se revele incorreto.

Os ataques aéreos contra a Síria no fim de semana foram claramente ilegais, de acordo com a lei internacional. Continuariam ilegais mesmo que tivesse havido um ataque de armas químicas em Douma, em parte porque teria sido necessário que inspetores independentes determinassem primeiro quem era responsável pelos ataques, se o governo sírio ou os jihadistas no local.

Os ataques aéreos também seriam ilegais mesmo que tivesse sido comprovado o ataque com armas químicas, e a ordem pudesse ser atribuída a Assad. Isso porque ataques aéreos precisam de autorização do Conselho de Segurança da ONU. É para isso que existe o direito internacional: regular os assuntos entre estados, prevenir o militarismo do tipo "poder é direito" (might is right) que quase destruiu a Europa há 80 anos e evitar confrontos desnecessários entre países que, em uma era nuclear, podem ter repercussões terríveis.

Se a responsabilidade de Assad tivesse sido provada, a Rússia teria sofrido enorme pressão internacional para autorizar algum tipo de ação contra a Síria – pressão à qual a Rússia teria muita dificuldade para resistir.

Se resistisse a essa pressão, teríamos que lidar com seu veto no Conselho de Segurança. E novamente, Israel, os EUA e o Reino Unido utilizaram munições de urânio empobrecido no Oriente Médio, e Israel e EUA usaram fósforo branco. Mas quem de nós consideraria razoável que a Rússia ou a China realizassem ataques aéreos unilaterais em Maryland (EUA), Porton Down (Reino Unido) ou Nes Ziona (Israel), e justificassem a medida com o argumento de que os EUA e Reino Unido poderiam vetar qualquer ação contra eles ou seus aliados no Conselho de Segurança? Quem defenderia ataques beligerantes a esses estados soberanos como “intervenção humanitária”?

Mas tudo isso é irrelevante, porque qualquer informação supostamente irrefutável que os EUA, Reino Unido e França aleguem ter de que a Síria tenha realizado um ataque com armas químicas na semana passada não é mais confiável do que suas alegações sobre um programa iraquiano de armas de destruição em massa em 2002.

Fisk não precisa provar que seu relato é verdadeiro – assim como uma pessoa no banco dos réus não precisa provar sua inocência. Ele tem que mostrar apenas que fez um relato preciso e honesto, e que o depoimento que coletou era plausível e consistente com o que viu. Tudo no histórico de Fisk e nessa reportagem em particular sugere que não deveria haver dúvidas sobre isso.

A reportagem de Fisk mostra que há uma explicação alternativa altamente plausível para o que aconteceu em Douma – uma hipótese que precisa ser investigada. O que significa que um ataque à Síria nunca deveria ter ocorrido antes que inspetores pudessem investigar e apresentar suas conclusões.

Em vez disso, EUA, Reino Unido e França lançaram ataques aéreos horas antes de os inspetores da ONU começarem seu trabalho na Síria, passando por cima da lei. No momento em que os ataques aéreos ocorreram, os estados agressores não tinham nem justificativa legal nem provas para apoiar sua ação. Apoiaram-se simplesmente em relatos de uma das partes, como os Capacetes Brancos, que têm um particular interesse na queda do governo sírio.

Como hoje se sabe, nossos líderes mentiram sobre o Iraque e sobre a Líbia. Alguns temos alertado há algum tempo que devemos ser altamente céticos em relação a tudo o que é dito pelos nossos governos sobre a Síria, até que haja evidências independentes.

Todos nós temos a obrigação moral de simplesmente parar de acreditar no que nossos governos e seus propagandistas na mídia corporativa nos dizem, seja se acreditamos por reflexo a um impulso autoritário, ou por termos a noção romântica de que, apesar das evidências em contrário, nossos líderes são sempre os mocinhos e os outros líderes são sempre os vilões.

Considere por um momento o apoio e o envolvimento do Reino Unido na horrível guerra saudita contra o Iêmen, ou o silêncio dos políticos americanos sobre o massacre de manifestantes palestinos desarmados, cometido por Israel em Gaza. Nossos líderes não têm moral para sustentá-los. Suas decisões de política externa são tomadas em nome do petróleo, de contratos de defesa e de interesses geoestratégicos, não para proteger civis ou lutar guerras justas.

Assad pode ser muito mau, e ele é certamente um ditador, mas é responsável por muito menos mortes e muito menos sofrimento no Oriente médio do que George W. Bush ou Tony Blair.

O ex-correspondente do New York Times Stephen Kinzer apresenta uma razão muito plausível para a contínua intervenção dos EUA, Reino Unido e França. Não se trata de crianças ou armas químicas. Trata-se de impedir que o governo sírio e a Rússia derrotem os jihadistas, como já estão próximos de fazer há algum tempo.

Esses países do Ocidente se opõem veementemente a uma solução pacífica na Síria, observa Kinzer, porque isso:

“poderia permitir que a estabilidade se espalhasse para os países vizinhos. Hoje, pela primeira vez na história moderna, os governos de Síria, Iraque, Irã e Líbano estão em uma situação de entendimento. Uma parceria entre eles poderia lançar as bases para um novo Oriente Médio.

Esse novo Oriente Médio, no entanto, não seria submisso à coalizão Estados Unidos-Israel-Arábia Saudita. Por isso, estamos determinados a impedir que esse cenário se concretize. É melhor manter esses países em miséria e conflito, pensam alguns, do que permitir que se desenvolvam e possam desafiar os Estados Unidos. [...]

Da perspectiva de Washington, a paz na Síria é um cenário de horror. A paz significaria para os Estados Unidos uma "vitória" para os nossos inimigos: Rússia, Irã e o governo de Assad. Estamos determinados a impedir isso, independentemente do custo humano”.

ATUALIZAÇÃO: O relato de Fisk é corroborado por outro repórter que está lá, Pearson Sharp, da rede de notícias conservadora One America. Ao contrário de Fisk, cujo longo histórico como repórter no Oriente Médio com grande credibilidade eu conheço, Sharp é um desconhecido para mim. Mas parece significativo que ele repita o que diz Fisk, e afirme que ninguém com quem ele falou, nem mesmo na vizinhança onde o suposto ataque teria ocorrido, parecia ciente do uso de armas químicas.

Tradução Clarisse Meireles

Jonathan Cook ganhou o Prémio Especial Martha Gellhorn de Jornalismo. Seus livros incluem "Israel e o choque de civilizações: Iraque, Irão e o plano para refazer o Oriente Médio" (Pluto Press) e "Palestina Desaparecendo: as experiências de Israel em desespero humano" (Zed Books). Seu site é www.jonathan-cook.net. Ele é um colaborador frequente da Global Research.

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