Nas pegadas de Xuanzang pelo Quirguistão
Jornada pelo passado, que chega ao coração da estratégia chinesa das Novas Rotas da Seda do século 21
por Pepe Escobar, Lago Issyk-Kul, Quirguistão | Asia Times
Bacurau - 30 de dezembro, 2019
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Caminhão chinês vindo da fronteira Quirguistão-China. Foto: Pepe Escobar, Asia Times / Pepe Escobar
No início da dinastia Tang, nos primeiros anos do século 7º, um jovem monge errante partiu numa viagem que duraria 16 anos, da capital imperial Chang’an (hoje, Xian) até a Índia, em busca de manuscritos budistas. Àquele tempo, Chang’an era seis vezes maior que Roma no apogeu, com população de mais de um milhão – o epicentro da civilização asiática.
A história acabou por converter o monge Xuanzang em lenda e em herói nacional da China, – embora no Ocidente ele jamais tenha atingido os níveis de popularidade de Marco Polo.
Xuanzang partiu numa busca que tem ecos ainda hoje. Queria saber se todos os homens – não só uns poucos iluminados – poderiam alcançar a iluminação em Buda [ing. attain Buddhahood]. Só havia um modo de descobrir: caminhar até a Índia, e trazer na volta para a China os textos em sânscrito, especialmente da escola Yogacara de Budismo, que professava que o mundo exterior não existe: não passa de mera projeção da consciência de cada um.
Em sua jornada épica, Xuanzang passou por incontáveis terríveis dificuldades: tempestades de areia no deserto Taklamakan (“Você pode entrar, mas nunca sairá de lá”), avalanches nas montanhas Tian Shan, piratas no Ganges. Suas viagens pela antiga Rota da Seda são fantásticas, especialmente nos anos 629 e 630, quando chega a oásis na Rota da Seda do norte, como o reino de Hami.
Naqueles oásis, Xuanzang reequiparia sua pequena caravana de camelos e cavalos e conheceria reis locais, mercadores influentes e guerreiros seriais. Já estava então a caminho de se tornar o mais afamado peregrino que pôs os pés na rota comercial mais antiga do mundo.
Encontro de mentes sino-turcomenas
Durante minha viagem, em que andei por Rotas da Seda antigas e novas, cruzei o Quirguistão do sul para o norte, da desolada fronteira tadjique-quirguiz pela rodovia Pamir – até o entroncamento de Sary-Tash, com uma volta por uma estrada construída pela China, para examinar a fronteira quirguiz-China em Irkeshtam; dali até Osh, o portal para o vale Ferghana, pelo impressionante solene desfiladeiro Taldyk; pela margem do Lago Toktogul, diante de incontáveis outros desfiladeiros entre picos nevados; e a última perna do percurso, até a capital Bishkek.
O local ao qual eu realmente queria chegar eram as pastagens – nessa época do ano, sem vestígio de pastos verdes – junto ao Lago Issyk-Kul, onde Xuanzang viveu extraordinário momento histórico, quando encontrou nada menos que a imensa corte, em tendas, do grande Khan dos Canatos Turcos Ocidentais.
Foi graças ao rei de Turfan – outro oásis da Rota da Seda, não distante da atual capital de Xinjiang, Urumqi – que Xuanzang recebeu 24 cartas do rei, a serem exibidas a 24 diferentes reinos pelos quais passaria, até finalmente chegar ao grande khan dos Turcos Ocidentais. O rei de Turfan era de fato vassalo do grande khan, e pedia proteção para seu amigo chinês, invocando um código de honra medieval que se aplicava igualmente à Europa e à Asia.
O império dos Turcos Ocidentais àquela época estendia-se das montanhas Altai – hoje na Rússia – até território que é hoje parte do Afeganistão e do Paquistão. Para chegar ao grande khan, Xuanzang passou por todos os tipos de dificuldades. Descreve montanhas de gelo que chegavam ao céu e picos de gelo despencando pelas encostas com rugido terrível. Demorou uma semana só para passar pelo desfiladeiro Bedal (4.284 metros de altitude) onde então era o Turquistão chinês. Os Turcos Ocidentais usavam esse desfiladeiro para chegar à bacia Tarim. Adiante, pela mesma estrada, Xuanzang ainda teria de enfrentar o Hindu Kush e as Montanhas Pamirs.
Xuanzang e sua minicaravana esfarrapada chegaram finalmente à margem sul do Lago Issyk-Kul (“Lago Morno”), um mar interno que jamais congela, e o segundo maior do mundo, depois do Lago Titicaca na Bolívia. Ali veio a ser o quartel-general de inverno do grande khan; a capital de verão permaneceu Tashkent.
Margem sul do Lago Issyk-kul. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
Fui hospedado por uma adorável jovem mãe e seu bebê, junto ao Lago Issyk-Kul. A descrição que Xuanzang fez do lago – e que consegui de uma reimpressão de 1969, de Oriental Books, da edição original de 1884, da versão londrina de Si-yu-Ki: Buddhist records of the Western World, de autoria de Xuanzang, traduzido por S. Beal – poderia ter sido escrita hoje. Exceto, é claro, os dragões e monstros:
“Por todos os lados é cercado por montanhas, e vários cursos d’água desaguam nele e somem. A água é de uma cor preta-azulada, de gosto amargo e salgado. O lago tem ondas que rolam em tumulto. Dragões e peixes ali vivem lado a lado. Em algumas ocasiões, monstros cobertos de escamas sobem à superfície, e viajantes que passam jogam sobre eles suas preces e pedidos de boa fortuna.”
Uma iurta junto ao Lago Issyk-Kul. O desenho da trama da parte superior aparece na bandeira nacional do Quirguistão. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
Conheçam os balbals
Assim, no ano de 630 Xuanzang finalmente encontrou o grande khan dos Turcos Ocidentais, na margem noroeste do Lago Issyk-Kul, em Tokmak.
Tokmak é muito próxima da torre Burana, o único dos grandes marcos da Rota da Seda ainda de pé, no Quirguistão. Estamos no vale Chuy, que foi ramo muito ativo da Rota da Seda do Norte, na encruzilhada das civilizações sogdiana, turca e chinesa.
Torre Burana, o único marco da Rota da Seda ainda de pé, no Quirguistão. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
Tudo que resta do que, no século 11º foi uma cidade sofisticada, chamada Balasagun – que os mongóis batizaram de Gobolik quando passaram por ela em 1218 – é a torre, atualmente apenas um meio minarete. Por trás da torre encontramos as mais belas criaturas de pedra de toda a história do mundo, os balbals, pedras tumulares esculpidas há 1.500 anos.
Um balbal, pedra tumular esculpida, de 1.500 anos, perto da torre Burana. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
O encontro entre Xuanzang e o grande khan foi grande sucesso. Ele descreve “ginetes montados em camelos e cavalos, vestidos em peles e roupas de fina lã, portando longas lanças, estandartes e arcos retos.” Em tudo semelhantes aos guerreiros que se veem na extraordinárias mostras no Museu Nacional do Cazaquistão em Nur-Sultan. A multidão, escreveu Xuanzang, “era tão numerosa, que a vista não lhe alcançava o fim.”
Essa é a última descrição, de todos os tempos, da grande confederação nômade liderada pelo grande khan, que colapsou, por lutas internas, no início do século 7º.
Havia também uma questão importante a esclarecer: cavalos. O que me levou ao tradicional mercado dominical de animais em Karakol, não distante do canto sudeste do lago. Ali vi vários descendentes dos legendários cavalos Przhewalsky.
Descendente do cavalo Przhewalsky, no mercado em Karakol. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
Przhewalsky, que emprestou seu nome a uma raça de cavalos selvagens da Ásia Central, foi o principal explorador científico da Mongólia, do Gobi, do Tibete e de Xinjiang entre 1870 e 1885 – e morreu num hospital próximo de Karakol, depois de contrair tifo. Conduziu uma caravana que cruzou o Taklamakan – feito quase impossível. Um belo museu da era soviética, próximo de Karakol, presta-lhe justa homenagem.
Busto de Przhewalsky no memorial da era soviética, próximo de Karakol. Foto: Asia Times / Pepe Escobar
As relações sino-turcas ao tempo do grande khan eram excelentes. Nos primeiros anos do Imperador Tang Taizong, o grande khan estava no auge de seus poderes, controlado todas as latitudes entre as fronteiras do império chinês e da Pérsia, e da Caxemira ao sul, até as montanhas Altai no norte.
Fiel ao lendário espírito da antiga Rota da Seda, como encruzilhada em que culturas e religiões se encontravam, o grande khan sabia até sobre o Budismo (um monge indiano tentou convertê-lo). Bem próximo de Tokmak, arqueólogos soviéticos encontraram dois santuários budistas dos séculos 7º e 8º.
A grande notícia da reunião de Xuanzang com o grande khan é que o khan tentou dissuadi-lo de prosseguir para a Índia: “É terra tão quente que os habitantes são como selvagens sem qualquer decoro.” Mas o khan logo compreendeu que Xuanzang era homem que cumpria uma missão. Deu-lhe as cartas de apresentação para todos os seus incontáveis vassalos ao longo do caminho – príncipes em Gandhara, que hoje se divide entre Afeganistão e Paquistão. Xuanzang também ganhou de presente 50 peças de seda e belas roupas em cetim carmesim.
E assim nosso monge errante partiu em segurança para sua passagem épica pelo Império Turco na Ásia Central, cruzando o Syr-Darya, atravessando o Deserto de Areias Vermelhas e chegando até a lendária Samarcanda. A maior peregrinação da Rota da Seda – 16 mil km em 16 anos – estava só começando. Essa narrativa está no coração das Novas Rotas da Seda do século 21. A China visa a reviver o espírito de um, dois, mil Xuanzangs.
Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga
Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..
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Veja também:
-> Rodovia Pamir: a estrada do teto do mundo
-> Pela Rodovia Pamir, coração da Terra Central
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